sábado, 15 de junho de 2019

Comentando A Espiã Vermelha (Inglaterra/2018): Mostrando que o Poder nem Sempre está nas Mãos dos Homens



Depois de três filmes um tanto decepcionantes, assisti uma película que me agradou, A Espiã Vermelha (Red Joan).  Mais um daqueles casos de filme que estão há semanas em cartaz e que só depois de um tempão foi para um horário que me ajudasse.  E, sim, valeu a pena!  Trevor Nunn, o diretor, sabe dirigir  histórias com e sobre mulheres.  Judi Dench estava excelente como a velha espiã acima de qualquer suspeita.  Fora isso, o filme usou de forma criativa o material histórico.  Não é baseado em uma história real, como venderam por aí, mas, sim, inspirada em fatos reais, na verdade, em dois casos distintos de espionagem, o de Melita Norwood e o dos Cambridge Five, mas volto a isso ao longo do texto.

Ano 2000, Joan Stanley (Judi Dench), uma respeitável viúva, ex-bibliotecária, é presa pelo serviço secreto britânico acusada de ter espionado para os soviéticos nos anos 1940.  Sua ação teria ajudado a URSS a produzir a bomba atômica.  Ela nega, mas somos levados ao passado através de suas memórias e das acusações dos agentes durante o depoimento.  Joan realmente era uma espiã e sua história é bem extraordinária.

Uma velhinha inofensiva.
Voltamos para 1938, a jovem Joan (Sophie Cookson) acabou de entrar em Cambridge para estudar Física. Ela termina se envolvendo com um grupo de estudantes comunistas graças a uma colega mais velha chamada Sonya (Tereza Srbova), uma russa que morou muitos anos na Alemanha.  O primo de Sonya, Leo (Tom Hughes), um judeu alemão, é um líder nato, excelente orador e Joan termina se apaixonando por ele.  A 2ª Guerra e o fato de Leo ser alemão separam os dois.  O tempo passa e Joan vai trabalhar como secretária na Tube Alloys, uma companhia fantasia que encobre o projeto britânico de desenvolvimento da bomba atômica.  

Leo, Sonya e outro colega do núcleo comunista de Cambridge, William Mitchell (Freddie Gaminara), assediam Joan para que ele espione para os soviéticos.  Ela resiste, mas termina cedendo ao perceber o estrago das bombas de Hiroshima e Nagasaki.  Ela passa a espionar o projeto, não por amor ao comunismo, mas para "nivelar o campo de jogo" no mundo do pós-guerra, pois somente haveria segurança e equilíbrio de ambas as super potências, EUA e URSS, tivessem a bomba.  E ela estava certa, não estava?

O interrogatório é longo.
Red Joan é inspirado em fatos reais, é verdade, mas em nenhum momento o filme tenta se vender como relato fiel dos episódios históricos.  A narrativa vai e volta em flashbacks e temos duas atrizes interpretando a protagonista.  Judi Dench interpreta a protagonista idosa de forma muito dúbia.  Será que tudo o que ela diz é verdade?  Mesmo acuada, mesmo diante da perplexidade e raiva do filho advogado, Nick (Ben Miles), ela parece nao se deixar abalar.  O filho nunca desconfiou da mãe, mas termina se questionando que sempre a achou culta demais para uma simples bibliotecária... 

Agora, o mais importante: será que tudo o que ela parece lembrar aconteceu realmente daquele jeito?  A memória é seletiva, mas Joan é astuta, ou não teria enganado tanta gente, e talvez estejamos assistindo não a história como ocorreu, mas como a protagonista quer que vejamos.  A manipulação dos fatos é crucial para que Red Joan se salve e os olhinhos de Judi Dench sempre nos deixam sem ter certeza.  E há até uma pequena piada.  O filho, logo no início, pergunta atônito se a mãe era comunista.  Ela responde trêmula que "claro que não", mas a xícara de chá em suas mãos tem vários rostos de Che Guevara.  😁  

O filho nunca poderia imaginar.
A outra atriz, Sophie Cookson, que interpreta Joan jovem, tem menos recursos.  Eu não sabia de onde lembrava dela, mas ela é a agente Lancelot dos dois filmes  Kingsman (*resenha: 1 e 2*).  Pois bem, a atriz deve mostrar as várias fases da personagem, da moça ingênua e romântica seduzida por Leo, passando pela profissional competente, mas cheia de dúvidas, até se tornar a espiã que tenta controlar seus medos e cumprir sua missão.  Acredito que ela deu conta do recado, mas entendo que haja gente criticando sua atuação, porque cabe a ela ficar com a parte mais romantizada da história.  E ela não é Judi Dench, pode vir a ser uma grande atriz, mas temos um desequilíbrio claro nessa história.

Agora, um ponto importante para nós aqui: A Espiã Vermelha é um filme feminista, sim, e bastante.   Um dos pilares da película é discutir o quanto as mulheres eram subestimadas, especialmente, nas ciências exatas, que em inglês podemos reduzir à sigla STEM, ou ciência (science), tecnologia, engenharia e matemática.  Não sei se isso é trabalhado no romance original de Jennie Rooney, mas foi bastante explorado no roteiro de Lindsay Shapero.  Ao conhecer Joan, Sonya pergunta se ela é de "humanas", mais tarde, percebemos que a moça é a única mulher em sua turma de graduação em Física.  

Joan se deixa fascinar pelo revolucionário.
Apesar de contratada como secretária por ser cientista e entender o que estava sendo feito na Tube Alloys, seu chefe, Max Davis (Stephen Campbell Moore), valoriza seus talentos, ela é tratada por alguns com desdém.  Ela é só "a moça do chá", apesar de desenhar todos os diagramas e dar algumas ideias importantes para o andamento do projeto.  Quando se torna espiã, ela usa essa complacência e discriminação que a incomodavam a seu favor.  Quem desconfiaria que uma mulherzinha poderia ter tanto poder?  Poderia ajudar os soviéticos a chegar à bomba?

Mas tudo isso é ficção e esse fator tem que ficar bem claro, porque certas resenhas do filme, as primeiras que li, por exemplo, quase anunciavam que veríamos na tela a história de Melita Norwood (1912-2005).  Não vemos.  Aliás, uma das coisas que o filme faz deliberadamente, e isso talvez seja uma influência direta do momento histórico em que vivemos, é tentar separar Joan do comunismo. Na película, a protagonista nunca foi socialista, ou comunista, ela simplesmente se insurge contra aquilo que considera traição, afinal, a URSS era uma aliada, e uma injustiça. Ela também age segundo a sua consciência, negando-se a aceitar o discurso de que os cientistas devem fazer ciência, eles (*e elas*) não tem nada a ver com o que os políticos fazem com aquilo que eles inventam.  Joan é ética e se insurge contra essa ideia.

Leo seduz as multidões.
Voltando aos tempos em Cambridge, quando Joan entra na universidade estamos nos momentos decisivos da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), havia toda uma solidariedade juvenil (*e não somente*) com os republicanos contra os fascistas.  Se interessar pelo socialismo não era incomum.  O que é normal, e o filme mais uma vez tenta desvencilhar Joan do comunismo, é que ela é capaz de erguer a voz e questionar a veneração que os colegas tinham em relação à Stálin.  Isso seria praticamente impossível naquele momento, pois ninguém sabia detalhes dos crimes de Stálin, e todos, fascistas e nações imperialistas, como a Inglaterra, tinham seus crimes genocidas nas costas e não se importavam muito com isso. 

O filme, no entanto, não insiste nessa seara.  É mostrada a rede de espionagem que reúne Leo e Sonya, dois estrangeiros, além de aristocratas como William Mitchell e seu amigo e amante, Kharak (Raj Swamy, não está listado nem no IMDB), que acabam indo trabalhar no ministério das relações estrangeiras.  Joan perde contato com eles por um tempo, mas é localizada pelo grupo quando já está trabalhando para a Tube Alloys.  A empresa fantasia realmente existiu e foi onde trabalhou a espiã que inspirou a personagem de Joan.  Falamos muito do Projeto Manhattan, mas os americanos receberam muita ajuda das pesquisas britânicas, até decidirem seguir seu próprio caminho.  

William foi inspirado em Guy Burgess,
ou, talvez, seu amante tenha sido.
Meu marido me explicou que os britânicos estavam a frente dos americanos nas pesquisas no início da guerra, da mesma forma que rivalizavam com os alemães na pesquisa de motores à jato.  Foi a Inglaterra que cedeu essa tecnologia para os soviéticos e norte-americanos, mas, no caso da bomba, sonegou informações para os russos.  Já na pesquisa da bomba, os americanos se afastaram e depois de ler sobre os feitos de Melita Norwood e dos Cambridge Five, não tiro a razão deles.

Melita Norwood, diferente da Joan criada para o filme, ou para o livro, tinha pedigree comunista.  Seu pai imigrante era comunista, sua mãe, também.  Ela era membro do partido, seu marido, idem. Ainda assim, segundo a Wikipedia, foi contratada como secretária para um projeto super secreto e quando levantou-se a questão da segurança, seu chefe simplesmente fez pouco caso e disse que não a deixaria saber o suficiente.  Norwood não era cientista das exatas, era de humanas e não tinha concluído seus estudos na Universidade de Southampton.  

O Dr. Davis se apaixona perdidamente por Joan
e seria capaz de sacrificar sua vida por ela.
Ela espionou TRINTA ANOS para os soviéticos.  E, o pior, se eu for confiar na Wikipedia, o serviço secreto sabia das atividades dela nos anos 1960 e não a desmascarou, porque seria uma vergonha admitir que tinham uma infiltrada por tanto tempo.  Acho essa versão meio exagerada, mas tanto o caso Norwood, quanto Cambridge Five me mostrou um serviço secreto britânico que eu não conhecia.  O fato é que Melita Norwood só foi exposta em 1999, graças aos documentos entregues por um espião soviético que desertou e entregou vários arquivos.  Ela estava aposentada desde 1972 e acabou sendo perdoada pelo governo, dada a sua idade avançada.

Mas eu estou falando dos Cambridge Five e não expliquei até agora.  Enfim, o fato de não terem colocado Joan estudando em Southampton teve como objetivo costurar as duas tramas de espionagem. Os Cambridge Five foram um grupo de rapazes aristocratas, ou de boas famílias, que se tornam comunistas, ou foram seduzidos pelos riscos, e espionam para a URSS.  O grupo era formado por Donald Maclean e Guy Burgess terminaram fugindo para a URSS em 1951; Kim Philby fugiu em 1963; Anthony Blunt, que confessou em 1979 e John Cairncross, que permaneceu em segredo até 1990.  

A verdadeira Melita Norwood, lendo a
declaração de culpa em seu quintal.  Joan faz isso no filme.
Todos esses caras estavam dentro do ministério das relações exteriores britânico e passando informações diversas, inclusive sobre a bomba para os soviéticos.  Realmente, não tem como confiar no serviço secreto britânico.  A adolescência de Guy Burgess, sua homossexualidade e início do flerte com o comunismo, foi representada no filme Another Country, que eu resenhei muito tempo atrás.  Já a história dos Cambridge Five foi contada na minissérie da BBC Cambridge Spies, que eu tenho no meu HD faz anos e nunca vi.  Estou tentada a assistir e resenhar.  

Acho que estou me perdendo, esse texto está uma bagunça!  Enfim, o filme reduz a relação da Joan com o comunismo, ou seja, vende a ideia de que ela nunca traiu seu país.  Também encurtou seu tempo como espiã, poucos anos entre o final da 2ª Guerra e, se muito, 1949.  Durante seu trabalho na Tube Alloys, ela resiste em entregar os segredos, mas, além do seu senso de justiça, pesa o dispositivo amoroso.  Ele ainda está apaixonada por Leo, ainda que estabeleça uma relação muito próxima com o cientista que era seu chefe.

A secretária que era, também, cientista.
De todas as personagens masculinas do filme, Max Davis é a mais decente, por assim dizer.  Ele tem profundo respeito pela competência de Joan e intervém quando tentam diminuí-la.  No fim das contas, como não poderia deixar de ser em uma estrutura como essa, ele se apaixona pela secretária.  E Joan, ferida e solitária, não recusa a atenção do homem mais velho.  A questão é que ele é casado e um cavalheiro, ainda que ele tenha caído em tentação a caminho do Canadá, se recusa a ter um caso com a moça, porque ela não merece essa situação.  Ela conta sobre Leo e ele diz que o sujeito era um idiota.  E era mesmo, arremato.

A personagem é o cavalheiro quase perfeito, ainda que venha com o papo mole de que cientistas fazem ciência e deixem os políticos decidir o que será feito da bomba.  É isso, aliás, que precipita a traição da moça.  No fim das contas, ele termina por romper seu casamento e se declarar adequadamente para a jovem.  Já caminhando para o final, e não vou contar o desfecho do filme.  Descobre-se a espionagem e Max é acusado de traição.  Ele é preso e a pena para esses casos na Inglaterra da época é a morte.  Resta à Joan tentar salvá-lo, ou não.  Confessar seus crimes, ou se calar.  O que ela faz, ou como faz, só assistindo ao filme.  No mais, o ator Stephen Campbell Moore me parecia bem mais velho do que é na realidade.  Ele é nascido em 1979, a diferença em relação à atriz que interpreta Joan é de meros dez anos, ele, no entanto, parece muito mais velho.

Sonya é perigosa e eu bati o olho na câmera
e vi que ela não estava ali à toa.
O filme cumpre a Bechdel Rule?  Sim, por causa das conversas entre Sonya, a personagem mais sinuosa e perigosa da história, e Joan.  Elas são as duas personagens femininas com nome e personalidade bem definida.  Uma é capaz de tudo, a outra tem princípios.  Ambas, no entanto, estão enredadas pelo mesmo sujeito, Leo, que é muito sedutor, mas me pareceu o típico revolucionário de corredor de faculdade.  Desculpem, mas é o tipo de personagem (*e lembrei da minha bronca com o Xavier de Liberdade, Liberdade*) contra quem sempre vou torcer, porque convivi com gente assim no tempo de graduação.  Curiosamente, a agente de polícia que aparece muito no filme, tem um monte de falas e tudo mais, não tem nome.  ela é interpretada por Nina Sosanya.  Outra coisa, o figurino do filme é muito elegante e bonito, também, quer dizer, a parte de época, a nos dias atuais nada tem de especial.

É isso.  Red Joan é um bom entretenimento.  Não é um filme denso, não é um filme de arte, é um misto de filme de espionagem com drama psicológico e algum romance.  Não é um filme histórico e está contaminado pela forma como muitos veem o comunismo em nossos dias, confirmando a máxima de que um filme histórico fala muito sobre o momento em que foi produzido.  Enfim, vale muito pela atuação de Judi Dench e pela sua trama.  E, no fim das contas, ela estava certa e não se arrepende de nada.  Se você quiser ler o romance, e eu fiquei com vontade, há edição nacional, e pode ser lido no original, também.

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