sábado, 26 de setembro de 2015

Sobre Estatuto da Família ou deixem a Idade Média fora disso!


Que o tal Estatuto da Família é uma atrocidade, todo mundo já gritou.  Ainda que para que ele se efetive, tenha que passar talvez pelo plenário da Câmara e do Senado, terminará em um possível veto da presidenta (*ou quem estiver lá na cadeira*).  Se houver insistência, deve cair por inconstitucionalidade lá no STF.  Obviamente, é absurdo que deputados - e poucas deputadas - católicos (*sim, o relator é católico*) e evangélicos tenham se dedicado a produzir um texto tão discriminatório, cruel e burro, discuti-lo em comissão especial do Congresso e posar para foto no final.  17 à 5 foi o placar, e minha deputada, Erika Kokay, é uma das cinco que votou contra e vai lutar para derrubá-lo ainda na Câmara.

Idade Média, este período que parece chamar para si as ofensas.
Enfim, esse Congresso que temos é caso perdido, mas sabe uma coisa que me aborrece nessa discussão toda do famigerado Estatuto da Família? A mania de atrelar essa afronta à Idade Média. Povo não lê uma linha sobre um período riquíssimo de 1000 anos (*cronologia tradicional*) e tudo que há de ruim, de podre, de atrasado, é "medieval". Ficam repetindo as bobagens que ouviram em alguma aula de Iluminismo, ou leram em alguma matéria rasinha de revista ou site por aí.  

Uma olhadinha rápida no que era família - termo que só foi usado como usamos hoje no século XVII - neste período em suas múltiplas encarnações para jogar por terra essas afirmativas bobas.  Havia famílias de todos os jeitos e isso independia da aprovação da Igreja Católica, que, aliás, era bem mais flexível do que a proposta desse Estatuto que aprovaram na sexta-feira.

Recomendação para quem quiser ler sobre família na Idade Média.
Aliás, o que esses sujeitos - e poucas sujeitas - estão tentando inventar nada tem de medieval, muito menos de bíblico. É fantasia, re-imaginação do passado, coisa fruto de mentes perturbadas mesmo.

Querem um exemplo bonito de não-família segundo o estatuto e tirado direto da Bíblia? Não, não vou pegar nenhuma família polígama, incestuosa ou trágica, vou pegar um exemplo bonito que poderia, sim, ocorrer nos dias de hoje.  Noemi e Rute, sogra e nora, a mais jovem se recusando a abandonar a idosa que perdera marido e filhos, saindo da sua terra (Moabe) e seguindo com ela de volta para Israel sem saber o que encontraria.  "Para onde quer que tu fores, irei eu, e onde quer que tu fica­res, ficarei eu também. O teu povo será o meu povo e o teu Deus o meu Deus." (Rute 1:16)  E esse texto lindo que fala de família e de amizade é usado por muita gente para legitimar a ordem patriarcal nos casamentos.  A esposa segue o marido, não é mesmo?

A minha família está coberta pelo Estatuto, mas ela não é o modelo para todas.
Família tem a ver com amor, cuidado, entrega, em formar uma comunidade que independe de laços de sangue, que não se fia em orientação sexual ou papel para dar-lhe legitimidade. Rute e Noemi não é invenção moderna, é Bíblia, família por eleição, por afeição, duas mulheres que decidiram caminhar juntas por toda a vida.

E, por favor, quando tiver o ímpeto de dizer que alguma coisa é MEDIEVAL, dê uma pesquisadinha.  Ajuda, não dói e evita certos vexames. A medievalista aqui agradece.  E não diga que é bíblico, também, sem pesquisar, porque esse povo que se diz baseado na Bíblia tende a fantasiar em cima dos textos.  E, normalmente, a fantasia é uma daquelas viagens que nem LSD explica.

1 pessoas comentaram:

Infelizmente, parece que no Brasil temos um compromisso inadiável com o retrocesso.
É muito triste constatar que a composição atual do Congresso é fruto de um desejo e de uma sintonia de ideias entre seus membros e seus eleitores.
Afinal, nenhum dos deputados e senadores que lá estão se transformou magicamente e de repente nesses crápulas que vemos agora. Não são nenhuma surpresa para quem votou neles.
Fica difícil ter esperança de melhorias neste país.

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