sábado, 19 de março de 2016

Comentando A Bruxa (The Witch: A New England Folktale)



Quinta-feira, assisti A Bruxa (The Witch), filme que foi antecedido por uma série de resenhas destacando o quanto era assustador e diferente dos filmes de terror que costumam ser produzidos hoje em dia.  Fui ao cinema imaginando que, finalmente, veria um filme de terror que me lembrasse os que eram produzidos nos anos 1970 e que de fato assustavam, tinham um bom roteiro, mesmo com uma produção modesta.  Não é o caso.  A Bruxa é muito bem executado, mas o descreveria mais como uma fantasia de época com pitadas de horror do que um filme de terror propriamente dito.  Não consegui me assustar em nenhum momento, menos ainda sentir desconforto ou as reações exageradas que li em algumas críticas.  Mas vamos lá, segue o resumo da história. 

Nova Inglaterra, 1630, nossa história começa com um homem, William (Ralph Ineson), rejeitando a correção dos oficiais religiosos de uma plantação puritana e sendo expulso da comunidade junto com sua esposa, Katherine (Kate Dickie), seus filhos e filhas.  A família então se estabelece em uma clareira perto da floresta.  Cristãos devotos, eles levam uma vida austera, marcada pelas orações e repetições dos textos bíblicos.  Um dia, enquanto a filha mais velha, Thomasin(Anya Taylor-Joy), cuida do bebê, a criança desaparece.  Somado a isso, a colheita de milho da família se mostra um fracasso e a fome começa a rondá-los.  A partir daí, a vida da família começa a se deteriorar, já que o pai se recusa a voltar para a comunidade puritana aceitando a disciplina do grupo.

Um pai fanático e orgulhoso arrastando a família para a destruição.
O pai quer convencer a si e a todos de que o bebê foi devorado por um lobo.  A mãe cai em profunda depressão e começa a questionar sua fé e o amor de Deus para com a família.  Já as crianças, cada uma reage de uma forma.  Thomasin fica acuada, pois é acusada pela mãe de ser a causa dos problemas e teme ser colocada a serviço de uma família da comunidade puritana.  Caleb (Harvey Scrimshaw), o filho mais velho, agarra-se na sua fé e tenta buscar meios de conseguir alimento para a família, ignorando a ordem dos pais de nunca entrar na floresta.  Enquanto isso, os gêmeos Jonas (Lucas Dawson) e Mercy (Ellie Grainger) permanecem quase alheios nas suas brincadeiras com o bode Black Phillip.   Já o mal ronda a todos e termina por destruir a família.

Aviso que não dá para escrever este texto sem spoilers significativos.  É necessário começar assim, porque, bem, A Bruxa não deixa dúvidas desde o início quanto à atividade sobrenatural em torno da família.  Nada é revelado de forma imediata, uma das marcas do filme é o ritmo lento, mas sabemos desde que o bebê Samuel é sequestrado que há algo de terrível na floresta e que o mal tem a forma de uma mulher, de uma velha.  O título completo do filme em inglês “A New England Folktale” ou “Um conto popular/folclórico da Nova Inglaterra” e é isso que o filme é.  Ele bebe pesadamente – e isso é dito nos créditos – nos relatos sobre bruxaria que circulavam na Europa e nas colônias entre o final do século XIV e XVIII. 

Katherine não consegue perdoar ninguém, nem filha, nem marido, nem Deus.
Não é objetivo do filme questionar esses relatos e os utiliza como base para a história que conta.  Thomasin aterroriza sua irmã menor dizendo-se bruxa e usando de referências que eram conhecidas e reforçadas nos meios religiosos da época: participar de Sabbaths, dançar e cantar nua, assinar seu nome no livro de Satã etc.  Tudo fazia parte de discursos que era legitimados pelo conjunto da sociedade.  No fim das contas, apesar de ter lido que havia dúvida entre se os acontecimentos eram frutos da histeria coletiva produzida por um ambiente religioso repressor, ou eram verdade, não resta dúvidas dentro do filme de que Satã está agindo e que as bruxas são, sim, uma realidade.  Como nos contos populares que o subtítulo evoca, aliás.

Eu gostei do filme pela execução competente e excelente interpretações.  É difícil conseguir atores e matrizes mirins que interpretem bem e A Bruxa reuniu um punhado deles.  Anya Taylor-Joy, a protagonista, não é bem uma criança, mas uma jovem atriz que defende bem a personagem, uma menina enredada pelo mal e pressionada pelas crenças religiosas de seus pais. Seu desespero é convincente, a entrega da atriz fica marcada em cada cena.  A menininha Ellie Grainger é espetacular, ela faz o papel da criança irritante com perfeição, quando expressa medo e tensão é igualmente competente e, bem, dá vontade de torcer o pescoço dela em algumas cenas, afinal, a situação é dramática e suas acusações poderiam levar sua irmã mais velha para a morte.  

Caleb, entre a fé e os desejos pecaminosos.
Já o garoto Harvey Scrimshaw consegue passar toda a angustia da personagem, um menino que, em um momento de crise, tenta assume responsabilidades de adulto.  Um garoto que está descobrindo a sexualidade (*e a única mulher jovem perto dele é sua irmã, Thomasin*) e que vive oprimido por uma leitura religiosa que enfatiza o pecado à espreita em cada ato.  Ele passa toda a angustia necessária e não decepcionou nas cenas de possessão.  Acho que é  o melhor elenco infanto-juvenil que já vi atuando em um filme.  Os três brilharam e tornaram a história mais realista.

O que vou escrever agora não significa uma crítica propriamente dita, mas simplesmente uma expressão de uma preferência.  Como historiadora, compreendo a caça às bruxas, afinal, a maioria dos mortos foram mulheres, como um momento de histeria coletiva e a materialização da perseguição aos saberes que se tornavam marginais, saberes que eram em sua maioria femininos, ou acessíveis às mulheres.  A universidade não queria concorrentes, os teólogos também não queriam, os poderes civis constituídos, idem.  Nesse ambiente de controle cada vez maior dos saberes e discursos, as mulheres curandeiras, sábias de aldeia ou dos subúrbios das cidades, mulheres que faziam não somente o mal como no filme, mas o bem, também tornaram-sse perigosas para a ordem. 
Pobre Thomasin!  Parece que está metida em todas as encrencas do filme.
Mulheres que, em muitos casos, eram pobres, socialmente vulneráveis, e ganhavam seus sustento prestando serviços à comunidade passaram a ser perseguidas, especialmente, se os objetivos e pedidos não eram alcançados.  Imagine um filtro do amor ou amuleto para engravidar que não funcionasse, ou que uma mulher sábia se negasse a fazer um feitiço para matar um desafeto.  Ela poderia facilmente ir parar diante da Inquisição, em um país católico, ou diante de uma autoridade clerical ou civil em uma nação protestante.  Em todo caso, a existência da bruxaria era consenso, que o diabo e seus demônios agiam na terra idem, que as mulheres eram seu alvo principal, também.  Agora, os castigos e o tratamento (*a depender de quem era acusado/a*) variavam e muito.

De qualquer forma, o filme A Bruxa não fala da bruxaria idealizada nos discursos neopagãos, ou por algumas feministas.  Não se fala de culto da Deusa, ou ao feminino.  O filme fala de mulheres que estão à margem da sociedade, é verdade, mas que fogem de um discurso religioso masculino repressivo para se colocarem à serviço de um poder que é igualmente masculino.  Elas são servas de Satã, então, não vejo nada de empoderamento feminino em A Bruxa.  Vejo, sim, uma revisitação de discursos inquisitoriais mais correntes, das ilustrações aterrorizantes dos Sabbaths imaginários. E olha que depois do que elas fizeram, eu não veria mal algum em apoiar uma caçada.  Thomasin não se liberta, portanto, mas é novamente agrilhoada, caindo presa de poderes que são muito superiores aos dela.

Quer coisa mais óbvia que um BODE PRETO?????  Pois é...
Se vocês viram o meu resumo, devem ter percebido que comecei pelo pai, William.  Motivo? Sei que não é o objetivo do filme, mas eu poderia fazer uma pregação cristã altamente conservadora usando a trajetória da personagem. Querem ver? Toda a tragédia é causada pela atitude insubordinada e orgulhosa do patriarca.  Ele rejeita a correção dos pastores e oficiais de sua igreja, prefere abandonar a proteção dos muros da comunidade puritana e se aventurar no ambiente selvagem com sua família, acredita-se suficiente para garantir-lhes a conduta espiritual e a segurança. Não se preocupa mesmo nem em batizar o bebê recém-nascido, o que leva sua esposa e Caleb ao desespero, afinal, morrer sem batismo – e a maioria dos protestantes batizavam os bebês – não era algo de menor importância no século XVII, a criança poderia ir para o inferno em caso de morte.

William permite com suas atitudes orgulhosas, algo que ele mesmo admite no final, que o diabo entre na vida de sua família.  Pequenas e grandes mentiras, o silêncio diante das acusações infundadas da mãe contra Thomasin.  Os castigos sobre a família são variados, desde o sumiço do bebê até a colheita fracassada e tudo é responsabilidade do patriarca que foge dos seus deveres de pai e marido cristão e coloca todos a perder.  Em seu confronto com o pai, Thomasin, já desesperada por se ver crida como bruxa, o acusa, inclusive, de não conseguir que sua mãe comporte-se de forma submissa, ou seja, William é um fracasso espiritual em todos os sentidos.  

A família ora unida, mas não conseguiu resistir ao diabo, não.
Enfim, A Bruxa pode ser usado para várias coisas, mas, dificilmente, como propaganda de uma bruxaria empoderadora ou registro histórico das práticas que levaram muitas mulheres à morte e sofrimentos diversos.  Uma visitinha aos livros do Carlo Ginzburg poderia mostrar coisas muito mais variadas a respeito das bruxas e bruxos do século XVI, um filme como As Bruxas de Salem me parece um registro mais interessante e maduro sobre a histeria religiosa puritana em relação à bruxaria, mas como o objetivo do filme era ser um conto folclórico, A Bruxa atingiu os objetivos plenamente.  

A Bruxa mostra bem os extremos da crença religiosa e os seus efeitos sobre a saúde mental dos envolvidos.  Crianças conduzidas a histeria, jovens traumatizados e reprimidos em suas ações e pensamentos, afinal, o pecado poderia agarrá-los a qualquer momento, e adultos querendo manter a todo custo à ordem temendo que todos perdessem a salvação.  Não sei se os produtores do filme tinham o intuito de mostrar as bruxas como elementos livres, não percebi assim, mas, com certeza, elas não estavam menos agrilhoadas que os membros da família que somos convidados a observar.

As bruxarias são pesadas no filme.
Terminando, o filme cumpre a Bechdel Rule?  Sim, com certeza.  Trata-se de um filme protagonizado por uma adolescente, Thomasin.  Fora isso, em um elenco tão pequeno, as mulheres são mais ativas e falantes.  Mercy, a irmã menor, é uma personagem completa, enquanto o pequeno Jonas está lá para compor o fundo.  De resto, as personagens femininas, Thomasin, sua mãe e irmã, conversam entre si e, não raro o assunto é a protagonista.  De resto, fiquei com a pulga atrás da orelha quanto ao nome Thomasin.  Não tive tempo de aprofundar a pesquisa, mas acredito que não fosse um nome comum entre puritanos que preferiam nomes bíblicos – Caleb, Jonas – ou que tivessem um sentido religioso claro, como Mercy.  É a primeira vez, aliás, que tropeço neste nome, Thomasin.

Recomendo A Bruxa.  Trata-se de um bom filme, com boa reconstituição de época e boas interpretações.  Não me entregou os sustos que as resenhas prometeram, nem o vejo como um material de terror, mas é um filme que, ainda que óbvio em muitos momentos, não é raso nem fácil.   Fora isso, os poucos problemas técnicos - como o som estridente demais no início - são logo resolvidos. Espero, aliás, que os jovens atores em cena recebam outros papéis tão bons no futuro.  

2 pessoas comentaram:

As Bruxas de Salem é uma história que me marcou muito. Foi a primeira peça que li na vida, quando tinha 11/12 anos. Entrei para o grupo de teatro da escola e era essa a história que iríamos adaptar. Pena que nunca conseguimos apresentar. Só fizemos uma amostra com três cenas, se não me falha a memória (o povo largava o grupo toda hora e acabamos tendo que desistir). Já tinha decorado as falas de todos os personagens até, mas meu papel era o do pastor que chega na cidade para investigar os supostos casos de bruxaria. ^^

Você já assistiu a Orgulho e Esperança (Pride), Valéria? É um filme da BBC do ano retrasado que parece interessante e divertido. Aqui o trailer:
https://www.youtube.com/watch?v=pcDP3mNtjvw

Lembrando q é primeiro filme dirigido e produzido pelo diretor/produtor em questão, ou seja o cara tem um potencial. A atriz principal tbm só tinha feito pequenos papéis até hoje Eu achei um filme com tensão e suspense, e q quebra os clichês dos filmes tradicionais. Pelo ritmo e faltas d clichês eu achava q deveria ter sido produzido em um país estrangeiro q não fosse os EUA. Mas,pelo q li é um filme co-produzido no Reino Unido, Canadá e EUA. Admito q não levei aqueles sustos tradicionais d filmes d terror, mas sinceramente tensão o filme consegue causar e bastante.

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