sábado, 26 de janeiro de 2013

Comentando Django Livre (Django Unchained)



Terça-feira fui assistir Django Livre (Django Unchained) com meu marido e um amigo comum, e, embora muita gente possa achar absurdo, foi o primeiro filme de Tarantino que eu assisti. Isso, claro, se eu descontar um dos episódios do fraquíssimo filme Grande Hotel (Four Rooms, 1995)  dirigido por ele. Desenvolvi uma espécie de aversão por Tarantino por conta de algumas de suas entrevistas e as temáticas dos filmes dele nunca me atraíram muito, especialmente, a temática da vingança que domina alguns dos seus últimos filmes. Vingança não me leva ao cinema, só que gostei do trailer de Django, porque ele evocou os velhos faroestes que costumava ver com meu pai. No geral, achei o filme bem divertido e, por mais que eu tenha algumas críticas, o espetáculo foi bem satisfatório.

A história do filme nada tem de complicada, em linhas gerais é isso aqui: Sul dos Estados Unidos, 1858, Django (Jamie Foxx) é comprado por um alemão, o Dr. King Schultz (Christoph Waltz) que é um caçador de recompensas. Schultz quer que Django o ajude a reconhecer os Irmãos Brittle. Depois de cumprido o trato, Schultz libertaria Django que receberia um cavalo e 75 dólares. Só que Schultz acaba tomado de simpatia por Django e seu desejo de libertar sua esposa, Broomhilda (Kerry Washington), uma escrava que fala alemão, e que foi revendida depois de uma fuga mal sucedida. Schultz se propõe a ajudá-lo desde que ele o ajude no seu trabalho durante o inverno. Assim, Django aprende o ofício, se torna exímio atirador, e juntos Django e Schultz descobrem que Broomhilda foi comprada por Calvin Candie (Leonardo DiCaprio), um riquíssimo plantador. Para se aproximar de Candie e poder chegar até Broomhilda, eles bolam um plano que envolve uma proposta irrecusável de comprar um dos escravos de Candie, na verdade, não qualquer escravo, mas um que fosse um excelente lutador de Mandingo, um “esporte” brutal no qual homens negros eram colocados por seus donos para lutar até a morte.


Amor e vingança movem o filme Django, que é embalado o tempo inteiro por uma trilha sonora das mais interessantes, pois mistura Enio Morricone, country music, baladas italianas e sons contemporâneos. Tudo sugere um saudosismo em relação aos westerns spaghetti, daí o empréstimo do nome do filme – referência a um filme de 1966 – e a presença do Django original, Franco Nero (*que foi o mais belo dos Lancelote*), fazendo uma ponta foi um momento bem legal. Outra homenagem é ao movimento cinematográfico dos anos 1970 chamado de Blaxploitation (*aprendi o termo lendo a resenha do Thiago Siqueira para o Cinema com Rapadura). Assim como assisti vários faroestes italianos na infância e adolescência, vi vários filmes do movimento Blaxploitation, também. O nome completo de Broomhilda que é “von Shaft” é uma homenagem a um dos grandes ícones desses filmes. E, bem, Samuel L. Jackson – que está em Django – participou de um filme homenagem à Shaft (*que eu assisti no cinema*). Essas duas referências são fortes e algo que, pelo que li, não é novidade na obra de Tarantino.

Django convence como diversão e isso eu não discuto. É muito fácil comprar a missão do herói, que é salvar a mocinha em apuros. Aliás, a função de Broomhilda se limita a isso mesmo: ser bonita, sorrir para o herói de forma encantadora, chorar, desmaiar e bater palmas para ele. Incomoda? Sim, eu achei todas as mulheres do filme uma nulidade. Meu marido que estava comigo (*a amou o filme*) ponderou que nos faroestes italianos, ao contrário do que acontecia nos filmes americanos, era raro uma personagem feminina ter algum destaque. O herói – que muitas vezes era um anti-herói – raramente tinha um interesse amoroso. Será que a intenção foi essa? Pode ser que sim, pode ser que não. O fato é que não preciso ter assistido nada de Tarantino para saber – e existem artigos acadêmicos feministas sobre isso – que o diretor sempre se preocupou em dar espaço privilegiado para as personagens femininas. Pode ser, portanto, que seja uma homenagem aos westerns spaghetti, mas volto a questão das mulheres no final do texto.


O filme se sai muito bem ao construir uma dupla que começa, sim, com o mentor branco, que ensina tudo para Django, desde que é questão de educação tirar o chapéu ao entrar em um recinto fechado, até ler e, claro, o ofício de caçador de recompensa. Essa situação de tutelado de Django, não dura muito e isso é importante para que o filme possa caminhar bem, o herói logo mostra que tem personalidade própria e a relação com Schultz deixa de ser a de mestre e discípulo. O próprio Schultz – um espetacular Christoph Waltz – percebe bem que não tem mais controle sobre a criatura, ainda que Django respeite o seu bom senso. Schultz nunca conseguiu ser duro como Django, já que o sofrimento da escravidão tornou o protagonista impermeável a uma série de sentimentos e capaz de grandes crueldades.

Todos estão falando da cena, e foi a minha seqüência favorita, que é a da proto-Ku Klux Klan e a discussão sem fim sobre usar ou não usar capuz. Foi a seqüência mais Monty Python sem ser do grupo de ingleses que eu já vi. “Ah, mas a KKK não existia!” Sim, ela foi criada depois da Guerra Civil, durante a chamada Reconstrução Radical (1865 -1877). Mas a tal KKK-fake é introduzida para colocar em evidência uma outra questão, mesmo que os tais Irmãos Brittle sejam criminosos, ter um negro matando um branco – e Django perde o controle em sua primeira missão – é inaceitável. Se um negro pode matar um branco e sair impune, outros negros podem se mirar no seu exemplo. E, bem, o que seria de Django sem a seqüência dos capuzes?


Outro detalhe ligado à morte dos Irmãos Brittle é bem interessante, também. Um deles é a crítica ao uso da religião – mais especificamente da Bíblia pelos protestantes sulistas – para justificar a escravidão. Um dos Irmãos Brittle usava folhas de Bíblia costuradas a sua roupa. Perceberam? Para o sulista padrão, importava muito mais a interpretação bíblica da maldição de Noé sobre seu filho Cão, ou da marca de Caim associada aos negros do que as explicações sobre frenologia dadas pela personagem de Leonardo DiCaprio lá pela metade do filme. Até hoje entre os grupos religiosos, a ciência só é convocada para reforçar a legitimidade dos discursos canônicos e na maioria dos casos, ela é somente um adereço.

Fala-se muito da violência dos filmes de Tarantino. Bem, ainda que eu não considere Django como um filme “para criança” – e havia uma na minha sessão com o pai ou o avô – trata-se de uma violência tão exagerada, tão falsa, um excesso de sangue tão digno de Cavaleiros do Zodíaco que é difícil levar aquilo a sério. Obviamente, um sujeito gargalhando atrás de mim em todas as cenas nas quais um tiroteio deixava um homem gritando no chão e sendo alvejado várias e várias vezes, era um pouco difícil de digerir, mas não dá para considerar a violência de Django algo impactante. É no jogo de palavras que o filme consegue ser mais efetivo. No uso da palavra “nigger”, considerada ofensiva em língua inglesa, para ressaltar (*talvez*), o quanto os Estados Unidos caminhou em termos de direitos civis. A tradução na legenda para “crioulo”, termo igualmente ofensivo em nossa língua, foi perfeita. O uso sutil – sim, pois fugia da violência exagerada da média das cenas – do vermelho sobre branco, como no caso do sangue sobre o algodão, também serviu para ilustrar bem que a riqueza daquela sociedade se assentava no sangue dos negros. Mas não é Django que alveja o feitor à cavalo que rende essa bela imagem brutal, é Schultz.


Django poderia ser mais curto. Deveria terminar no primeiro tiroteio em CandyLand, mas temos ainda uns vinte minutos de filme. Meu marido pontuou que a seqüência da prisão de Django e da dinamite é outra referência a um filme italiano, então, ainda que eu ache que ela não precisasse estar lá, ela tem uma função nostálgica e de homenagem a Sergio Leone. Obviamente, que Django encontrar Broomhilda “pelo cheiro” (*só podia ser*) foi bem exagerada. E a morte da irmã da personagem de Leonardo DiCaprio foi ridícula e covarde, para dizer o mínimo.

Agora, algumas ponderações necessárias. Filme, mesmo um como Django, não são mera diversão, eles passam mensagens e reforçam ou questionam representações sociais. A coisa se torna mais dramática ainda, pelo menos para mim, quando o diretor, no caso Tarantino, quer chamar para si um peso de seriedade que sua obra não tem. Em primeiro lugar, ele disse que seria uma vingança contra a escravidão. Vejam bem, em nenhum momento do filme, Django se apresenta como um vingador contra a escravidão como sistema de opressão. Aliás, a impressão que eu tive é que Django tem desprezo pelos outros escravos, porque eles são assujeitados. E, bem, Candie diz que Django é 1 em 10 mil (*ou algo assim*). Em nenhum momento o filme desmente isso, ele reforça. Quando na cena da fuga final de Django para resgatar a amada, pensei que ele teria alguma palavra de apoio para os outros três escravos que estavam em cena. Ele não tem nenhuma. E, bem, se ele foi hostil e cruel antes para manter uma personagem e enganar Candie e seus homens, ali não havia necessidade. Logo, a vingança de Django é pessoal, não compartilhada, sem simpatia pelos outros negros e negras que sofrem, é algo individualista do tipo os mais fortes sobrevivem. Eu particularmente não gosto disso.



Há quem queira ver em Schultz, e no seu nome “Dr. King” há uma referência/homenagem à Martin Luther King, um representante de uma Europa que virou as costas para a escravidão, que é culta e civilizada.  De novo, cuidado! Schultz é, também, um ser único.  O incômodo que sente em relação à escravidão, seu respeito e simpatia por Django, sua repulsa por Candie, não podem ser ampliadas para todos os alemães ou todos os europeus.  Que havia muita gente contra a escravidão dos dois lados do Atlântico em 1858 é fato, mas a maioria das teorias racistas eram importadas da Europa.  Mesmo entre os que eram contra a escravidão, eram poucos os que acreditavam em igualdade entre as “raças”, a maioria comprava tranqüilamente as teorias frenológicas, por exemplo, entre outras.  E, como Django ressalta a singularidade do herói, é difícil ter certeza se o filme não concorda com elas.

Outro ponto que me incomodou deveras, e você pode pular estes dois parágrafos, pois pode ser spoiler, é o papel de Samuel L. Jackson no filme. Primeira coisa a pontuar é que o ator está espetacular como o velho escravo que é, na verdade, o senhor de CandyLand. Ele deveria ter sido indicado ao Oscar de Coadjuvante, trata-se de uma injustiça sem tamanho. Agora, em um filme no qual a passividade da massa de escravos é ressaltada, assim como a singularidade do herói, colocar um negro como o grande gênio por trás da riqueza e crueldade de Candie é bem perverso. Havia escravos que eram fiéis servidores e defensores de seus senhores? Sim. Houve revolta de escravos que foram denunciadas por escravos? Sim. Havia hierarquia entre os escravos, troca de favores? Sim. Mas mais cedo ou mais tarde, alguém lembrava a esse privilegiado seu verdadeiro lugar.




Podem tomar como exagero, mas parece aquela ladainha de que os culpados pela escravidão foram os próprios negros e que eles foram seus maiores beneficiários. E não convém comparar Samuel L. Jackson com a mammy, pois a personagem de E o Vento Levou queria que Scarlett se comportasse de acordo com as normas sociais mais estritas, a repreendia em público e tudo mais. Já a personagem de Samuel L. Jackson finge-se de submisso em público e, por trás dos panos, é ele quem controla o patrão, quem domina tudo, que dá ordem de torturar escravos e tudo mais. Não há um traço de submissão ao senhor no comportamento da personagem de Jackson. De novo, ver um filme que se vende como vingança contra a escravidão ter um negro como seu grande vilão é muito, muito incômodo. E mais, a personagem foi meio que escondida nos trailers. E, claro, já se tornou a personagem negra mais detestável do cinema e uma das mais brilhantes, também.

De resto, o filme não cumpre a Bechdel Rule. Temos várias personagens femininas com nomes. A maioria delas não conversa entre si, quando o faz, é sobre um homem. As personagens femininas são mais adereço, sem função ativa real. Há até uma escrava que parece vestida para atender em um Maid Café.  Aliás, uma coisa que Django não faz é negar que as mulheres negras fossem alvo do assédio sexual dos homens brancos.  Isso era real e concreto, coisa que, por exemplo, é ignorado em Histórias Cruzadas.  Mesmo a irmã do fazendeiro não aparece fazendo nada que justificasse sua morte. Sua vilania tinha que ficar marcada, a não ser que a equação seja qualquer branco é vilão. Se vocês prestarem atenção, há pelo menos uma mulher entre os cidadãos armados na cena com o delegado logo no início do filme. Mais adiante, entre os empregados de Candie que participam da caçada ao escravo D’Artagnan, há uma mulher. Ela usa pano vermelho no rosto e só seus olhos ficam a mostra. Colocar uma mulher em um meio masculino e altamente brutalizado exigiria alguma função. Ela não tem nenhuma. Falando em D'Artagnan, aprendi alguma coisa vendo Django.  Não sabia que Alexandre Dumas era neto de uma escrava e, portanto, tecnicamente negro para os sulistas na época.



Ah, sim, e Mandingo Fighting não é algo historicamente comprovado no Sul, ainda que Tarantino diga que existiram. Mandingo é o nome de um filme de 1975 sobre escravos “gladiadores” no Sul. O filme é baseado em um romance de 1957. Faltam fontes que apontem para um sistema organizado de lutas, ainda que isso pudesse ter acontecido pontualmente. Outra coisa que a tal história de Mandingo Fighting reforça é aquele mito que os americanos adoram sobre gladiadores de que as lutas seriam sempre “até a morte”. Não, um gladiador (*ou gladiadora*) era muito caro, lutas até a morte era raríssimas e quem as bancasse deveria pagar somas exorbitantes. Outra coisa que algumas pessoas levantaram é que não havia casamento entre escravos. Formalmente, papel passado, não havia, mas eram comuns os casamentos informais, por imposição dos patrões, ou por afeto, permitido, ou não. Aliás, a possibilidade de ter uma família, do patrão não separar esposos e filhos já rendia para muitos escravos a sensação de liberdade. Nem todos os escravos eram iguais, ainda que eu continue enfatizando que colocar um escravo como o vilão da trama é racismo, ainda que inconsciente.


É isso! Django no geral é um grande divertimento. Muita correria, muito sangue, diálogos espirituosos, a maravilhosa seqüência da Klan, um herói impenetrável e capaz de tudo. Não é um faroeste às antigas, mas uma boa homenagem. Jamie Foxx, Christoph Waltz e Samuel L. Jackson pagam o filme e ainda sobra. Poderia ser um tiquinho mais curto, mas ninguém vai se cansar vendo Django, acredito eu. Não é um filme politicamente engajado, nem crítica à escravidão como sistema, é uma peça que exalta ações individualistas. Nesse sentido, deveriam parar de querer vender o filme como algo que ele não é e ficar com a diversão.  Não me fez ver Tarantino com melhores olhos, ou querer sair loucamente atrás de seus outros filmes. Aliás, a idéia de vingança como satisfação, ou catarse, não me toca e só me faz lembrar da barbárie que ainda habita dentro de muitos seres humanos. Mas é um filme legal e entrou para a categoria “filme para assistir com meu pai” e irei fazer isso nas próximas férias.


1 pessoas comentaram:

Eu amei o filme. Começando pela trilha sonora que é maravilhosa. As que tinham rap então me deixaram extasiado. Depois as cenas de ação. O que eu amo no Tarantino é ele fazer cenas tão impactantes e parecer que não usa nada da tecnologia que temos hoje. E por último e não menos importante, as personagens super carismáticas. É muito show de interpretação num único filme. A brincadeira com as várias referências bacanas, os cenários e a comédia deixa tudo muito viciante e com vontade de ver de novo. Tudo o que o tarantino faz é muito pop.

Eu concordo com você Val, quando diz que o filme não serve para levantar bandeiras. Realmente não serve para isso. É só diversão mesmo. Sobre a personagem de Samuel L Jackson, também senti um incômodo, ainda que a personagem seja brilhante. Mas também acabei gostando dele ser o big boss da parada. Enfim, podemos definir como incômodo e interessante. Racismo de forma não consciente? Talvez.

E Django realmente não luta por nenhum dos escravos, com exceção de Brommhilda (amei a cena dela dizendo "Meu nome é Broomhilde, mas me chama de Hilde" Graciosa), mas ele os inspira. Percebi isso na cena pós cativeiro. Sim, ele foi arrogante, mas isso não fez diferença. Os escravos olharam ele como um exemplo. A postura altiva de nada os incomodou. Aliás, acho que essa palavra defini bem o Django. Altivo.

De resto, fiquei radiante com o fato de você ver o seu primeiro Tarantino. Adorei sua análise e espero que um dia você veja outros para eu poder ver sua opinião aqui no blog. Grande abraço, Val.

PS1: Notou que era o Tarantino na cena do branco que explode junto com a bomba? Eu ri muito hahahahaa

PS2: Django pelado me deixou louco. Será que era montagem? Geeeeeente!

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