sábado, 17 de agosto de 2013

Comentando o Documentário O Renascimento do Parto (Brasil, 2013)


Ontem, assisti com meu marido ao documentário brasileiro O Renascimento do Parto de Érica de Paula (produtora) e Eduardo Chauvet (diretor).  Trata-se de um filme importantíssimo, porque conseguiu levar para a tela grande discussões que nem sempre chegam ao público mais amplo.  Trata-se de uma crítica contundente à política cesarista que vigora no Brasil, ao caráter pseudocientífico de certas práticas médicas e, também, um incentivo ao empoderamento das mulheres.  O Renascimento do Parto recebeu muita promoção e ainda rende matérias em várias mídias.  Márcio Garcia foi seu principal garoto propaganda, fizeram várias sessões de pré-estréia e exibições gratuitas ainda estão acontecendo em algumas cidades. Como gestante, militante do direito de toda mulher parir de forma respeitosa e que todo bebê seja recebido da melhor forma possível e no seu tempo, estava ansiosa para assistir ao filme.  Saí satisfeita, ainda que tenha algumas críticas pontuais à produção.  

O filme dá voz a especialistas – médicos, doulas, enfermeiras obstétricas, parteiras tradicionais, uma antropóloga, professores de medicina, etc. – e para mulheres que foram enganadas e empurradas para uma cesariana desnecessária.  No Brasil, recordista mundial de cesarianas – mais de 52% das crianças nasce por cirurgia neste país, quando os índices recomendados pela OMS são de 15% – é fácil conduzir uma gestação para este desfecho.  As desculpas, como lista a médica Melania no filme são várias e geralmente mentirosas: circular de cordão, bebê grande ou pequeno demais, pouco ou muito líquido, enfim, visitem o site dela, pois lá a lista é extensa.  Por trás dessas motivações há quase sempre a conveniência dos médicos, que recebem pouco por parto, daí ser mais interessante abrir logo a barriga da gestante e tirar o bebê, pois não querem ou podem esperar o tempo do bebê e da mulher, ou dos hospitais particulares que não querem ajustar seus centros cirúrgicos com tempo de um parto normal.  Na rede privada, os índices de cesariana chegam a quase 90% nos grandes centros urbanos. É pontuado no filme, por exemplo, que praticamente nenhuma criança nasce mais em grandes feriados no Brasil e para a alegria dos capitalistas da saúde, as UTIs neonatais ficam lotadas.  Aliás, um dos pontos que deveriam ficar mais claros no filme é o papel do capitalismo para essa situação.  Medicina, assim como a educação em nosso país, foram mercantilizadas e a ética e o cuidado com o ser humano nem sempre são prioridades.  


Empurrar uma gestante para uma cesariana não é difícil, afinal, a voz dos médicos é a voz da ciência, a voz da verdade.  E a mulher pode ser jovem ou madura; rica ou pobre; com nível superior ou sem o fundamental completo; ela possivelmente passará por rotinas semelhantes e poderá sofrer violência obstétrica do mesmo jeito.   Somos reduzidas a não-sujeitos, nossa condição de gestante é usada para nos chantagear.  Afinal, quem quer que seu bebê corra riscos?  As entrevistas no filme são tocantes, alguns de cortar o coração.  Sim, comover é um dos objetivos da película, além de fazer pensar.  Estatísticas apontam que 80% das gestantes desejam um parto normal no início da gravidez, poucas irão persistir.  O filme abre e fecha com a mesma mulher, uma bióloga, que, conduzida a uma cesárea desnecessária, passou a se culpar pela sua incapacidade de parir e por ter deixado que sua primeira filha fosse submetida a tal violência; seu segundo parto, humanizado, doméstico, foi um bem a si mesma e a sua segunda filha.  Uma cura.  O único pai a ter voz no filme é Márcio Garcia, pois sua esposa, Andrea Santa Rosa, passou por três situações de parto diferentes: a cesariana desnecessária, com direito à violência obstétrica (*quem disse que gente rica não passa por isso?*), um parto normal hospitalar, e o parto domiciliar.  Mas todas as experiências mostradas são importantes, tristes ou felizes, ajudam a tornar o filme relevante.

Uma das questões que o documentário aborda muito bem é de como, ao se apropriar do parto, que deixou se ser assunto de mulheres, os médicos (*o saber masculino é ainda masculino nas suas bases*) tornaram gravidez e parto estados patológicos. Além de salvarem efetivamente mulheres e bebês em necessidade, conseguiram convencer quase todas nós de que somos incapazes de parir sozinhas, daí as intervenções desnecessárias, o fiasco e a necessidade do médico salvador.  Eu já sabia, e li isso no primeiro livro feminista que li lá nos anos 1980, que a medicina moderna transformou o corpo feminino em um corpo doente; o que nunca tinha parado para refletir é de como tal situação se agrava com a gravidez.  Parece que, pelo menos nos meios urbanos brasileiros, a maioria das mulheres é defeituosa, incapacitada para parir, como se milênios de experiência tivessem se esvaziado em pouco mais de meio século.  


Algumas das melhores falas do filme são do médico Ricardo Jones, ele pondera sobre a necessidade de combinar saberes tradicionais com a ciência, questionando a medicina sem evidências.  Junto com o pediatra Ricardo Chaves, ele denuncia o quanto as rotinas hospitalares que envolvem bebês e gestantes podem ser vazias e violentas.  E foi muito boa a ponte feita entre a magia e a (pseudo)ciência médica, ambas conjurando rituais para controlar o parto, experiência que uniria vida, morte e sexualidade.  Ricardo chaves se concentra em condenar as rotinas que envolvem todos os bebês nascidos em centros cirúgicos, traumáticas e desnecessárias; já Ricardo Jones se concentra na violência contra as mulheres e fala em uma tragédia ecológica no horizonte da humanidade.  

Essa tragédia, que meu marido ficou sem entender, já que o filme peca em não explicitá-la, se referia ao fato de que em vários países o número de cesarianas está suplantando o de partos normais.  O filme poderia ter pontuado isso de forma mais didática citando estatísticas de outros países, mas se concentrou somente no Brasil que, junto com o México é campeão de cesarianas.  Só que, em seguida, vem a China, com metade das crianças nascendo por cirurgia.  Nos EUA, o número de cesarianas também aumenta.  Se o filme cita a Nova Zelândia e a Holanda como modelos para o parto humanizado, termina por não pontuar que nos países mais populosos do mundo, em economias emergentes, dá-se exatamente o oposto.  E é aí que se caracteriza o risco de uma tragédia ecológica. Clique neste link e veja o mapinha, os dados estão desatualizados, mas é relativamente recente.  Outra questão relacionada que é trazida pelo cientista e obstetra francês Michel Odent é que muitas mulheres modernas se tornaram incapazes de produzir em seu organismo hormônios fundamentais ao parto, como a ocitocina – chamada de hormônio do amor – e do quanto isso é sintomático da desnaturalização de um processo que deveria ser simples.


Embora eu tenha citado essas vozes masculinas, a maioria das vozes do documentário são de mulheres, como a enfermeira obstetra, Ana Cristina Duarte, que tem algumas das falas mais pertinentes do documentário.  Ela explica muito bem como funciona o parto natural e domiciliar, os benefícios e riscos.  Critica, junto com outras mulheres especialistas que participam do filme, o desrespeito ao tempo do bebê e das mulheres e a medicina feita sem evidências, sem estudos, quase uma linha de montagem. Este termo, mais uma vez, remete, também, ao capitalismo, pois o que se espera nos grandes hospitais é otimizar o atendimento, padronizando um processo que deveria ser respeitado e estabelecendo prazos para coisas que variam de mulher para  mulher, como o tempo de dilatação.  Outras vozes femininas do documentário podem ser conhecidas na seção elenco da página oficial do filme.  Pena que lá não estejam listadas as mulheres que deram seus depoimentos, abrindo espaço somente para a esposa do Márcio Garcia.  Outras ausências são a das parteiras tradicionais que tem pouquíssima participação no filme.

Já pontuei algumas das minhas críticas, mas essa da ausência das parteiras é uma das mais sérias.  Em nosso país a hegemonia do saber médico se deu pela desqualificação do trabalho dessas mulheres, algumas atendendo milhares de partos sem perder nenhuma mãe ou criança.  Ao difamá-las, desde o século XIX, tratando-as como curiosas, curandeiras, rebaixando o seu conhecimento, os médicos foram se apropriando dos partos, transformando algo natural em doença, algo que deveria ser confinado aos hospitais.  As parteiras continuam agindo nos interiores por falta de médicos e possibilidades de transporte para os hospitais.  Se algumas perdas acontecem, é porque essa carência impede que gravidezes de risco sejam atendidas por profissionais da saúde munidos da necessária estrutura.  Não é culpa das parteiras.  Lamento que O Renascimento do Parto tenha dado tão pouco espaço para elas.


Enquanto isso, Michel Odent, que deveria ter falado em francês, sua língua e, não, em inglês, tem um espaço enorme.  Ele é um dos grandes especialistas, mas pouco falou de objetivo, ao contrário dos outros profissionais que participaram do documentário.  Talvez, eu seja racional demais, mas o blá-blá-blá de amor, sentimento, me pareceu mais coisa de líder de seita, destoando do resto do elenco, e, não, de um cientista.  Fora, claro, as afirmações generalizantes em um filme que tenta desconstruir exatamente as generalizações da medicina estabelecida.  Por exemplo, ele argumenta que o que une uma mãe e um bebê separados no nascimento pelos procedimentos da cesariana é a cultura que somente nós, humanos, possuímos.  Só isso já daria pano para manga, mas ele acrescenta que outros mamíferos jamais acolheriam sua cria em condições semelhantes.  Para ilustrar que nem sempre isso acontece, se é que acontece, deixo o videozinho da mãe panda separada de sua filhote pouco depois do nascimento e que a recebe de volta um mês depois.  Ela não só reconhece a cria, como acolhe e amamenta.  Em que ela é diferente de uma mãe humana?


Outras questões a se criticar é a falta de didatismo em alguns momentos.  Fala-se de episiotomia, sem dizer o que ela é: uma incisão efetuada na região do períneo (área muscular entre a vagina e o ânus) para ampliar o canal de parto e prevenir que ocorra um rasgamento irregular durante a passagem do bebê.  Será que um leigo entenderia?  Diz-se que a episiotomia é uma das rotinas desnecessárias e parece que está bom.  Também foi muito complicado a apresentação, sem conclusão, do caso de uma mulher que o obstetra queria empurrar para a cesárea com o uso de um ultrassom falsificado por profissional indicado por ele.  A acusação foi seríssima e ficamos sem saber até se a mulher largou o médico, processou ou o que.  Faltou também falar de toda a farra de mimos que hospitais e empresas têm oferecido para quem “opta” por cesariana, como bufês, possibilidade de familiares assistirem o parto de salas especiais, hotelaria de luxo e tudo o que não enriquece em nada a experiência da mulher e sua saúde e a do bebê.


Enfim, para terminar reforço a importância do filme, de tê-lo em alguns cinemas.  Se você está grávida, pretende ficar, se é ou pretende ser pai, se já pariu, assista.  Se não quer ser mãe, também assista, porque você pode ajudar a conscientizar outras mulheres (*e homens*), a abrir seus olhos para as falácias que correm como verdade, de que agendar cesariana não é chique, nem tanto faz para o bebê e para ela.  É urgente que mudemos a cultura cesarista que impera no Brasil, que médicos só sejam chamados a interferir no parto quando necessário e, não, por rotina.  É importantíssimo que as mulheres possam resgatar sua auto-estima e a certeza de que, se quiserem, poderão parir naturalmente, porque a margem de mulheres com problemas reais não chega a 20%.  É fundamental que respeitemos o tempo dos bebês, que eles nasçam e sejam acolhidos por suas mães e pais, que não sejam expostos a práticas violentas (*vide fala do Márcio Garcia*) como se fosse o normal, que a epidemia de prematuros seja contida pelo bem das próximas gerações.  Está em nossas mãos tentar mudar essa realidade.  Se puder, assista O Renascimento do Parto.

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