segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

“temos que ensinar a menina a gostar das cores certas” ou mais reflexões sobre meninas e cores


Já escrevi antes sobre a ditadura do rosa e lilás que impera em quase tudo o que é feito para meninas em nossos dias.  Essas cores, em conjunto com os brincos, funcionam como marcas de gênero, sinais de que se trata de uma menina e, no caso das cores, para que os meninos sejam mantidos afastados.   A coisa é tão dramática que até personagens clássicas, como a Minnie Mouse e a Mônica, estão sendo  "rosificadas", como gosto de dizer.  Estava montando esse texto faz alguns dias com as coisas que ouvi aqui no Rio de Janeiro, já que estamos passando alguns dias por aqui.

Durante nossa estadia, aqui no Rio, Júlia vem ganhando toneladas de coisas rosa e lilás.  São presentes dados por pessoas queridas e que nos querem bem, sinais de carinho, mas que se mantém, salvo raríssimas exceções – um vestido branco, outro vermelho – dentro da obviedade da ditadura das cores.  Tivemos, nós, os pais, que comprar coisas rosa e/ou lilás, também, ou não teríamos quase nada de roupas e outras coisas que ela pudesse usar.  Fora, claro, que seu acho uma roupa bonita, não vou ficar me estressando, porque a tal é rosa ou lilás.  Se o material é bom, se estamos precisando, e o preço decente, compro.  



A gente vasculha também nas araras e bancas de roupas para meninos e comprei algumas coisas em azul vibrante, verde, laranja, mas o difícil é achar algo que fuja de certos motivos que são tão pesadamente gendrados quanto o par rosa/lilás.  Por exemplo, meu marido não gosta de futebol – eu gosto – e ele não acha legal nada que tenha essa temática.  Fora coisas com bolas de futebol americanos ou carros e barcos e sei lá mais o que que não consigo achar bonito.  Júlia tem uma toalha com helicópteros e coisas com estampas de carros e aviões, mas nem tudo me parece interessante para uma menina.  Percebam que não sou imune aos padrões de gênero vigentes, apenas, tento desconstruí-los, compreender os mecanismos e escolho o que, ou não, devemos trazer para nossa vida, na medida do possível.

Uma coisa engraçada,e que evidência como os gêneros são construídos, rolou semana passada.  Minha avó (*bisavó da minha filha*), depois que dissemos que Júlia gosta de azul, foi enfática, “temos que ensinar a menina a gostar das cores certas”.  Sabem qual o motivo?  Agora, que está crescendo e percebendo cada vez mais o ambiente, Júlia tem mostrado mais interesse por coisas que sejam azuis.  Quanto mais berrante o azul, melhor.  Para de mamar e fica encarando o objeto ou roupa. Daí, ela se apaixonou pelas almofadas azuis da minha mãe.   É coisa dela, pois, ainda que pai e mãe gostem muito de azul, quase nada que ela tem é desta cor.  O amarelo também atrai, assim como as folhagens verdes, mas azul é um favorito.  



Minha avó ficou indignada, como se estivéssemos fazendo algo de muito errado por nào tentar cortar "essa nova mania".  Nós –  minha mãe, meu pai, eu, etc. – temos que ensinar a menina a gostar “das cores certas”, isto é, rosa, lilás, e, no máximo, branco.  Não se pode sair muito disso.  Eu, que estava de bom humor, perguntei “por que?”.  Resposta clássica, “Porque, sim.  Porque é o certo!”.  Se algo que parece ser instintivo, coisa que não existe para nós humanos (*sim, sou culturalista até a medula*) precisa ser ensinada e reiterada, é porque não é natural.  Poderia, inclusive, já que pesquisei sobre a questão, precisar quando esse código de cores foi se impondo e meninas deixaram de ser colocadas vestindo lindos vestidos azuis, cor que passava calma, tranqüilidade e, em países católicos, era a cor do manto de Nossa Senhora.  Enfim, se há imposição de cores, há de outras coisas e, assim, vamos nós castrando as crianças.  

Bebês têm fome, buscam o seio materno (*ou outro disponível*), vêm programados para sugar e se aperfeiçoam nisso, trata-se de algo que é natural; bebês meninas não nascem programadas para gostar de rosa-lilás, isso é construção, desde antes do nascimento, com a montagem do enxoval e do quarto e vai se desdobrando em brinquedos e tralhas  mil.  Menininhas são, sim, pelo menos nas últimas décadas, sufocadas por coisas rosa e lilás.  Na medida do possível, Júlia vai gostar das cores que quiser.  Falo isso, porque, sim, é difícil achar coisas que fujam desse padrão nos dias de hoje.



Uma das coisas que sempre amei na minha mãe é que ela nunca, nunca mesmo, nos impôs cores ou brinquedos.  Minhas coisas eram azuis, as do meu irmão amarelas.  Nós escolhíamos.  Meu irmão, para o desespero de meu pai, tinha até bonecas.  Eu tive carrinhos e aviões.  Sinto até um pouco de vergonha, porque castrei minha mãe em relação ao carrinho de bebê.  Ela quis comprar, quando eu estava com míseros dois meses de gestação e não havia certeza de que a gravidez iria vingar, um carrinho lilás todo florido, berrante.  Sabe, aquilo que você nota de longe?  Pois é... Eu falei “Mãe, não compra, pois pode ser um menino!” E ela respondeu na lata “E daí?  Menino não pode usar lilás?”.  Não, mãe, pior é que não pode, ou, pelo menos, não devem, dentro dos códigos vigentes.  :(  Meus pais compraram um carrinho para Júlia, ele é azul com carrinhos... Ela e eu pai levaram bronca da minha avó... 

Já os brincos são a marca de gênero suprema.  A bebê pode estar toda de rosa ou lilás e vai vir alguém perguntar se é menino, ou, como aconteceu comigo, ficar insistindo que se trata de "um rapazinho", mesmo que a mãe diga que é uma menina. Júlia é menino até que se prove o contrário por não usar brincos.  Imagino que se alguém furar a orelha de um bebê menino será linchado em praça pública pelo seu crime de tentar confundir os gêneros, tamanho o peso dado no Brasil a se furar a orelha das meninas.  Meu marido, que concorda em não forçar sobre nossa menina uma marca de gênero tão forte, que concorda que deve ser escolha pessoal furar ou não suas orelhas, convencionou uma resposta escape “Já temos que furar a coitada com as vacinas, não vamos furar a orelha por vaidade.”.  Não funciona muito, já que retrucam que “crueldade é não furar, pois depois dói mais” ou que “bebês nem sentem a dor”.  



Não sei quem convencionou que bebezinhas não sentem dor.  Na verdade, dói menos na consciência dos pais, porque bebês choram mesmo e alto, na maioria das vezes, então, um choro a mais, outro a menos... E raramente as orelhinhas das meninas inflamam, especialmente, quando se colocam os brincos em lugares seguros.  Em alguns casos, a menina sai da maternidade com eles. De qualquer forma, como bebês não verbalizam racionalmente reclamações, só choram, a gente deixa pra lá e escolhe um brinco fofinho para compensar e posta a foto da “princesa” no Facebook.  Vejam, que não estou pedindo que se proíba a prática, estou refletindo sobre algo que é cultural, ou a pobre Gisele Bündchen não teria sido duramente criticada por furar as orelhas de sua menina.  Nos EUA, a coisa não é comum e muita gente não vê com bons olhos.  Por enquanto, Júlia segue sem seus brincos.

Enfim, os gêneros, isto é, conjunto de comportamentos e aparência esperados de um ou outro sexo são construções sociais, culturais e históricas. Tão artificiais em certos casos que são insistentemente reforçados, reiterados, mas, também, reinventados, no cotidiano, resignificados em seus pequenos detalhes.  Júlia não escapará de tudo, mas pretendemos ter uma aproximação crítica em relação à questão.  Ela adora as almofadas azuis da vovó e eu estou muito tranquila em relação a isso. ^_^  Se quiser algo das princesas da Disney mais tardem, idem.  Se quiser jogar futebol, papai terá que se conformar.  Se torcer por algum time, mamãe espera que seja o Fluminense. ;-)  Brincadeira!



Bem, sábado foi o aniversário de um ano da Júlia, isto é, 9 meses de barriga + 3 meses fora.  Eu queria muito fazer uma festinha, afinal, eu estava levando à sério essa história de exogestação e a mocinha tinha deixado de ser feto fora da barriga.  Só que o humor da Júlia não estava bom.  Daí, mesmo com o bolo que o titio trouxe, não teve muita graça.  Fica para o próximo ano, já que em outubro será difícil ter parentes por perto para comemorar aniversário, será melhor fazer a festa em janeiro, perto da vovó e do vovô.

P.S.: Me preocupo também com a quantidade de roupas que Júlia vem ganhando.  Acaba sendo desperdício, pois será humanamente impossível que ela use todas elas mais que umas duas vezes.  é bom sentir o carinho, mas essa cultura do excesso, do desperdício, me causa muita tristeza.

6 pessoas comentaram:

Você me fez lembrar de quando eu estava na pré-escola, rss. Uma vez a professora nos perguntou qual era a nossa cor preferida. Quando eu disse que a minha era azul, eu fui execrada e ridicularizada por todas as outras meninas. Aliás, toda essa época da minha infância (jardim, pré-escola, 1ª série) foi assim. Fora da escola, 99% dos meus amigos eram meninos. Eu vivia suja de terra e cheia de machucados, não aceitava me vestir nem ter nada rosa e lilás (não gosto nem nunca gostarei de ambas as cores), e usava mais conjuntos de bermuda e camiseta do que roupas "de mocinha". Fora da escola eu vivia feliz; dentro da escola sofria bullying todos os dias. Minha sorte é que eu nunca tive sangue de barata, e sempre revidava de algum jeito, rss.
Outra situação que aconteceu comigo há uns quatro anos atrás. Fui na casa de uma tia que eu não vejo com frequência. A filha dela, na época com 9 anos, senta do meu lado e começa: "Você tem namorado?" "Não, no momento não.". "Porque você não deixa o cabelo comprido?" "Porque eu não gosto, ué. Acho que curtinho fica mais legal, além de ser mais prático.". "Porque você não usa rosa?". "Porque eu não gosto dessa cor; nunca gostei, na verdade." Então ela me olhou indignada, e soltou a pérola: "Mas se você não tem namorado, não deixa o cabelo comprido e não usa rosa, como você é mulher?!". Não sabia se eu ria ou se chorava, heh. Infelizmente essa mentalidade machista e limitante não é só coisa das gerações passadas...

Eu particularmente acho isso ridículo, sobre cores certas para cada gênero, mas infelizmente sou uma pessoa dizendo isso contra todas as outras. Meu sobrinho nasceu e está com 7 meses, toda vez que veste vermelho (cor que o deixa lindo!!) ou alguma cor clarinha como amarelo com rosa, quem não conhece já vem perguntando se é menina.

Fantástico o texto. Lembro de que quando era criança, especialmente com uns seis ou sete anos, amava azul-marinho (tinha um vestido de bolinhas dessa cor que era a minha paixão na vida) e tinha muito parente que torcia o nariz para a liberdade que minha mãe me dava. Anos e anos depois, fui descobrir a história tosca e burguesa que levou à normatização do azul X rosa (http://www.smithsonianmag.com/arts-culture/when-did-girls-start-wearing-pink-1370097/) e aí que fui refletir sobre, já que na minha infância não foi algo marcante.

Sobre a Júlia amar as almofadas azuis berrantes da sua mãe, tem uma explicação um pouco biologicizante (rsrs) mas que acho que faz sentido: lembro que quando estudei desenvolvimento infantil li pesquisas que dizem que o globo ocular das crianças muito pequeninas ainda está se formando e tem poucas células que detectam cores (ou seja, elas enxergam quase em p&b). Por isso, elas são atraídas pelo contraste de cores, que é mais fácil delas enxergarem. Minha professora até brincou: baseado nisso, podemos dizer que provavelmente aqueles clássicos quartinhos de bebê em tons pastéis pra elxs deve ser um tédio! rs A visão de cores vai ficar mais acurada lá pro final do primeiro ano de vida fora do útero. Então sua filha ainda vai pintar muito o sete com as almofadas da sua mãe e ignorar o rosinha-bebê sem o menor drama por um tempo hehehe

Se puder, tenta dar uma pesquisada sobre o Girl Camp Rock que acontece em Sorocaba - SP.

Se eu não estou enganado, a cor azul era vinculada as meninas, devido o manto de "Nossa Senhora" e a cor Rosa era ligada aos meninos devido a um rei da França que inclusive "inventou" o vinho Rosé.

são coisas...

Excelente texto! Eu, por exemplo, adoro preto e azul *cores favoritas*. Já teve colegas que comentaram que a maioria das mulheres gosta é de rosa, e que eu era uma exceção ¬_¬ Coitados! Um assunto que já deveria ter desaparecido, mas ainda insistem nessa separação.
“Não sei quem convencionou que bebezinhas não sentem dor.” – Boa pergunta!
Valéria, gostei da sua mãe! <3 E a Júlia está fofa nessa foto *.* (que carinha tranquila)
Bjs!

Lembrei de você na hora!

http://www.socialfly.com.br/videos/123-veja-porque-o-conceito-de-azul-pra-meninos-e-rosa-pra-meninas-pode-nao-ser-uma-boa-ideia

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