quarta-feira, 16 de março de 2016

Comentando os dois primeiros capítulos de Velho Chico



Por culpa da amiga Erika, que me abordou no Twitter instigando minha curiosidade, acabei assistindo ao primeiro e segundo capítulo de Velho Chico.  Ela me mandou a seguinte mensagem “Não sei o que vai ser da nova novela, mas o Rodrigo Lombardi reativou o charme. Adeus, Pasthéo! ;D”  Eu andava meio de ovo virado com o Rodrigo Lombardi por causa da grosseria e descontrole dele na época de “Salve, Jorge!”, mas fui lá conferir a novela, enfim... 

A minha intenção era dar uma olhada na primeira fase da novela, só que confesso que tenho muita preguiça com essas histórias de coronéis de Benedito Ruy Barbosa, muita mesmo.  Eu até estava com um post sobre as falas homofóbicas do autor para terminar (*rascunho desde 11/03*), mas com o trabalho, a doença de Júlia e o caso Louisie, o post ficou inacabado.  Coisas mais importantes a escrever do que a incontinência verbal de um senhor idoso que acabou repercutindo tão mal que tiveram que fazer uma campanha para tentar salvar a estréia da novela.  Não que eu ache que precisava, mas fizeram.  O próprio diretor, Luiz Fernando Carvalho, veio colocar os panos quentes.




Falo “salvar”, mas não pensem que acredito que Velho Chico esteja em risco.  A novela nasce um sucesso, dentro dos limites que o nosso tempo permite, isto é, nada de 50 de IBOPE, se esta é a expectativa, acho bom baixar a bola.  De qualquer forma, a grife de Benedito Ruy Barbosa e seus herdeiros, a filha Edmara e o neto, é forte.  As pessoas que assistem novela meio que sabem o que esperar de um autor ou autora.  Por exemplo, em Êta Mundo Bom, por mais que o estilo do Carrasco tenha se refinado um pouco, já tivemos uma cena de sujeito atirado no chiqueiro.  Eu odeio, mas ele, o autor, não consegue resistir.  Com Benedito Ruy Barbosa é a mesma coisa.  Querem ver?  De saída sei que teremos: 
1. Discussões sobre política, sempre pendendo para uma posição reacionária, ainda que pontuada com algum humanismo.  Basta lembrar que em Meu Pedacinho de Chão o filhinho do Coronel defendeu o fim do voto dos analfabetos. 
2. Pelo menos uma personagem engajada, cheia de bons sentimentos e intenções, se dizendo apartidária (*algo que vai cair bem em nossos dias*).  Esse, aliás, é o papel do Rodrigo Lombardi na fase 1 e 2 da novela.  Na terceira fase, aparece outra personagem para ocupar este espaço.  Aguardem.
3. O bom coronel – garanhão, machista, autoritário – que parece malvado às vezes, mas, lá no fundinho, é um homem de bem, zeloso e que só precisa aprender a expressar seus sentimentos.  Este é o papel do Rodrigo Santoro/Antônio Fagundes.
4. E, claro, como é novela das nove, nudez, muita nudez (*confirmei no primeiro capítulo*) e sexo. Como é sabido, isso incomoda muito menos a “família brasileira” que um beijo casto entre dois homossexuais, ou uma personagem gay ou trans bem sucedida e não caricata.
5.  Realismo Fantástico.  Ora, aquele ambiente de sertão é todo meio real, meio fantasia.  Basta pegar a figura insana, sombria e dominadora de Selma Egrei, que faz Encarnação, a mãe do Rodrigo Santoro.

De resto, o coronel não se chama José.  Sim, porque Benedito Ruy Barbosa tem vários coronéis chamados “josé”, é quase a “helena” dele, nem diabinho na garrafa. A novidade é o coronel andando com um galo debaixo do braço.  Tarcísio Meira morre logo no primeiro capítulo, algo esperado, aliás, mas o galo fica.  Ele já apareceu em imagens de propaganda nos braços de Rodrigo Santoro.  É algo meio simbólico, exótico e, sim, muito estranho.

O que há de realmente novo em Velho Chico?  Absolutamente nada em relação ao que autor já fez.  Como outros figurões da dramaturgia global, ele recicla elementos o tempo inteiro.  Por exemplo, a matriz de vários de seus sucessos falando de imigração italiana é Os Imigrantes, uma das novelas dele que eu gosto.  Já em Paraíso, a original, de 1982, temos a temática rural, a religiosidade popular, algum realismo fantástico, o coronel poderoso e bom.   Nesse retorno ao Nordeste do Brasil, de novo a natureza é co-protagonista, como foi em Pantanal.  Acredito que o que fez grande diferença neste primeiro capítulo, o que o deixou bonito, encantador, foram três fatores, a fotografia primorosa, figurino e a trilha sonora.  Mérito maior da produção e do diretor, eu diria.



Falando no realismo fantástico, acho que ele será dominante nessa primeira fase com a fazenda Saruê parecendo um lugar fora do tempo.  Pegue o figurino das atrizes, por exemplo.  A roupa de Encarnação parece saída de Meu Pedacinho de Chão.  Já o figurino da bela Doninha, a serviçal que teve uma cena tensa e só sugerida de assédio sexual com o velho coronel depois que a esposa lhe dá um desprezo, parece uma composição colorida usando como referência as roupas das mulheres negras do século XIX.  Há os dois cantadores que aparecem do nada para guiar a história, interagindo com as personagens.  A cidade, Salvador, parece mais realista, só que dela pouco se mostrou, mas o figurino de Carol Castro – uma mulher livre e hippie, ao que parece – não parece menos exuberante.

Nesses primeiros capítulos, que foram muito interessantes, houve cenas preciosas protagonizadas por Chico Dias e a atriz que faz sua esposa.  Colocaram em ação muitos atores, atrizes e figurantes que são gente da terra, ou que poderiam ser.  E aqui cabe enfatizar que a população nordestina é plural com tipos que exibem os vários matizes de uma mistura étnico racial muito grande.  Resumindo, muita gente poderia, sem problema, parecer meu parente.  As personagens negras – e aí pensem que Salvador é a cidade mais negra fora da África – serão minoria e, pelo menos a tomar até agora e pelo que vi das escalações de elenco, nos tradicionais papéis subalternos.  Não poderia esperar nada melhor de Benedito Ruy Barbosa e sua equipe mesmo quando viermos para 2016.



As mulheres tiveram grande destaque.  Encarnação me pareceu muito caricata, mas entrei no clima de realismo fantástico e passei a encará-la como uma vilã do tipo mais terrível.  Ela atiça os homens a cometerem violências, é a guardiã das tradições patriarcais, cumprindo com seu papel de velha matrona.  Meche com os brios masculinos usando dos recursos mais machistas.  Foi primorosa a cena do velório na qual exige que o filho que despreza mostre-se homem e não chore em público a morte do pai.  Já, Eulália, a personagem de  Fabiula Nascimento, é a mulher sensata, firme (*e sensual, também*) que é reconhecida pelo marido como braço direito.  Se Encarnação estimula as violências, Eulália é a voz da razão direcionando o marido para o bom caminho, ou, pelo menos, tentando evitar um mal maior.

Outras três mulheres de destaque nesses primeiros capítulos são Iolanda, a personagem de Carol Castro.  Uma mulher livre e exuberante que é discriminada pela família de seu amado Afrânio (Rodrigo Santoro).  Não sei qual será o desenvolvimento da personagem nessa primeira e segunda fase, porque, bem, a ação vai estar toda no sertão, eu imagino.  Agora, como a personagem do Santoro não me inspirou nenhuma simpatia, acho que ela deveria dar ouvidos para a amiga e desencanar do sujeito.  Já Doninha e Piedade são igualmente mulheres fortes, mas assujeitadas aos poderes patriarcais.  



Elas até emitem opinião, mas se submetem, porque estão dominadas pela crença de que ser mulher pobre é sofrer.  Não vejo o autor surpreendendo nesse aspecto, afinal, o coronel nas histórias dele existe para dar "segurança" ao seu povo.  Como pontuei antes, a cena com Doninha sugeriu que ela era abusada pelo coronel velho, sem que seu marido, Clemente, o jagunço sinistro de plantão, se importe.  Já Chico Dias é o patriarca boa gente que, por teimosia, pode arrastar a família para a morte.  A esposa, o segue, porque é seu dever.  Outras mulheres devem aparecer, aliás, vão aparecer.  Imagino que role muita nudez hoje de novo com a aparição de Leonor (Marina Nery),que vai se casar à força com Afrânio.

E temos o Rodrigo Lombardi (*já que o Irandhir Santos e o Domingos Montagner ainda não estão em cena*) e superar o (Pas)Theo de “Salve, Jorge!” é fácil.  A personagem de Lombardi na novela ocupa a cota do sujeito engajado, mas apolítico, algo agravado pela sua origem militar.  A novela começa em plena Ditadura e houve pelo menos duas menções veladas a ela, uma quando o Coronel Saruê (Tarcísio Meira) diz que não pode assassiná-lo de forma aberta por causa da política atual, outra, quando depois da formatura de Afrânio, em Salvador, passa um carro do Exército e um dos colegas da personagem de Rodrigo Santoro se pergunta quem eles são pegar agora.  A personagem de Rodrigo Lombardi é capitão de patente, ao contrário dos coronéis autoproclamados dos rincões do Brasil.  



Lombardi, assim como outros homens do elenco, está exalando aquela masculinidade rústica feita para atrair a atenção feminina, homem alto, moreno, barba por fazer, e arrematado com um caráter íntegro.  Acrescente também uma esposa bonita e de personalidade forte.  O olhar de Fabiula Nascimento para o marido quando ele está no banho serve para guiar o desejo da audiência.  Não se inventou nada, nada, é o mesmo padrão já utilizado em  filmes como E o Vento Levou, em livros Harlequin e novelas do próprio Benedito, claro.  

Você, mulher heterossexual, homem gay ou pessoa bissexual que me lê, pode até dizer que este tipo de modelo de personagem masculina não lhe empolga, mas, bem, é um padrão repetido e reforçado pela ficção.  Ele está presente, por exemplo, na série de documentários da BBC sobre os galãs da literatura inglesa, Reader, I married him (2006).  Mr. Darcy nunca é descrito por Jane Austen, mas a maioria das leitoras o imagina moreno e as adaptações reforçam isso.  Mr. Rochester é moreno.  Heathcliff, que não me enche os olhos, já que ele me parece muito desequilibrado para ser sedutor de qualquer forma, é muito moreno.  Enfim, por enquanto, apesar do destempero, é fácil gostar do Capitão Rosa, afinal, concorrência zero para ele, porque Afrânio de Rodrigo Santoro parece carecer das virtudes morais que ajudam a construir esse modelo de masculinidade que parece se perpetuar no tempo e na ficção.



De resto, acredito que Velho Chico vai fazer sucesso.  Muita gente que abandonou a Globo deve espiar a novela e deve ficar curiosa.  O motivo não é a falta de personagens gays, afinal, Félix e Nico provaram que um casal interessante – gay ou hetero – pode salvar uma novela ruim.  Babilônia naufragou por ser um produto ruim boa parte do tempo.   As bandeiras devem estar à serviço do roteiro e, não, o inverso.  Fora isso, as intervenções só pioraram a situação.  A Regra do Jogo, da qual não assisti um capítulo sequer, parecia sofrer de vários problemas a ponto de não conseguir se sustentar contra as esticações de Os dez Mandamentos e, mesmo depois, sua audiência nunca foi brilhante.  E, no geral, eu considero Benedito Ruy Barbosa muito competente.  Quem leu o livro Sinhá Moça e sabe da ruindade que é aquilo tem consciência de como ele fez mágica com o material que tinha em mãos e, ainda que o filme dos anos 1950 já tivesse meio que dado uma mãozinha, novela é novela, dá trabalho, muito trabalho.

Agora, acredito que as pessoas estão cansadas das tramas urbanas – os mais reacionários rejeitam funk e favela, também – e sou obrigada a concordar com o Nilson Xaxier que em tempos de crise, existe a busca pelo escapismo.  As tramas da Globo nesse momento são todas nessa linha, outros cenários, outros tempos, ingredientes fantásticos.  Há quem reclame da violência, também, mas vejo comentários reclamando que Êta Mundo Bom! é uma novela violenta...  Comentaristas de portal são criaturas muito esquisitas.  



Agora, o que me deixa muito curiosa é ver como a audiência vai reagir quando Os Dez Mandamentos voltar.  Será eu a Record – depois do fiasco do final sem final – traz a audiência de volta?  Sei que se cismarem de colocar dois horários de novela a coisa não deve dar certo.  Aliás, acho que erraram em não ter jogado no ar Escrava Mãe antes da estréia de Velho Chico.  De qualquer forma, é esperar para ver.  Acompanharei a trama da Globo até o final da fase dos anos 1960/70, ou até que matem o Rodrigo Lombardi, mas não espero nada de diferente do feijão com arroz que o autor já fez.

P.S.: Para quem não leu a fala de Benedito Ruy Barbosa na festa de lançamento de Velho Chico, foi o seguinte: “Odeio história de bicha. Pode existir, pode aceitar, mas não pode transformar isso em aula para as crianças. Tenho dez netos, quatro bisnetos e tenho um puta orgulho porque são tudo macho pra cacete.  (...) “O que acho é que quando eu tenho na mão 80 milhões assistindo minha novela, tenho que ter responsabilidade com as pessoas que estão me assistindo. Tenho que saber que tem muito pai que não quer que o filho veja, porque eles não sabem, não sabem como colocar. Muita gente reclama disso pra mim. O que não é justo é você transformar um cara normal que é bicha, o que não é bicha não é normal. A mulher que é sapatona é perfeita, a que não é sapatona não é legal. É assim que estamos vivendo”  Sua filha, Edmara Barbosa, que assina a novela tentou intervir, mas ele emendou "Deixa eu falar, é a minha opinião".



Homofobia não é crime no Brasil, daí, fica fácil alguém me sair com essa de que está expressando "opinião".  O que eu gostaria é que me apresentassem a lista das novelas protagonizadas por personagens LGBT, com mocinha lésbica, mocinho gay, e por aí vai.  Não adianta citar o Félix, porque, bem, ele era o vilão, personagem negativa, depreciativa, mas que tomou a novela de assalto por conta da fragilidade dos mocinhos e da própria trama.  De qualquer forma, o velho Benedito Ruy Barbosa não deveria vir com esse papo de "odeio história de bicha", porque lá em Pantanal, no distante ano de 1990, ele criou, sim, um homossexual que tinha uma participação significativa na história e até uma traminha - lá na parte da enrolação e esticação para aproveitar a audiência - na qual o peão gay e ex-mordomo Zaqueu (João Alberto Carvalho Pinheiro) está apaixonado por outro peão, Alcides (Ângelo Antônio).  Quando o vilão da novela, Tenório (Antônio Petrin), supostamente castrou Alcides, foi Zaqueu que provou para o rapaz, durante uma noite de íntima "conversa", que ele não estava castrado coisa alguma... Depois, não me venha falar que odeia história de bicha, porque, na época, a historinha causou um misto de furor e escândalo.  Fosse hoje, as fujoshi tinham enlouquecido.

De resto, é lamentável que o autor supervisione novelas (*estou sendo boa, porque, para mim, ele está é escrevendo mesmo*) com essas idéias complicadas.  E, claro, que não tenha memória das coisas que fez no passado... 

3 pessoas comentaram:

Mea culpa, mea maxima culpa! hahahaha
Quando vi o Rodrigo Lombardi acusando o coronel Tarcisão, sorrindo daquele jeito, eu tive que te acionar. ;D

Eu estou meio confusa com as datas do enredo. Se passa nos anos 60, mas a viúva Encarnação parece ter saído dos anos vitorianos? E além dos figurinos, há momentos que a câmera parece mesmo com a de "Meu Pedacinho de Chão"...

Mal posso esperar para quando o Domingos Montagner aparecer - o nome dele já está nos créditos.

P.S.: E vou já atrás desse babado de Pantanal!

Crítica fantástica, muito inteligente. Fato e que, até agora, está valendo a pena ver uma novela.

Também não entendo a dos figurinos que em nada lembram roupas usadas entre os anos 70 e 80...

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