domingo, 9 de setembro de 2018

O Tempo Não Para, a Depreciação da Escola Pública e a Discussão do Homeschooling no STF. Sim, o post é sobre isso tudo!


Não queria voltar a falar da novela das sete da Globo, O Tempo Não Para, mas não posso evitar.  Ela é bem divertida, vai muito bem na audiência, mas está cheia de mensagens perversas para quem, como eu, não abraça ideias reacionárias travestidas de modernas, ou a louvação de um Estado Liberal dos sonhos.  O tema da reclamação aqui é educação.  Minha área, portanto, ainda que a palavra de uma professora, ou professor, seja a que menos faz diferença quando o tema está em discussão.  De qualquer forma, a constitucionalidade do ensino domiciliar, "homeschooling", ou educação domiciliar, começou a ser avaliado no STF no dia 06 de setembro.

Qual a ligação da novela da Globo com o tema "educação domiciliar"?  O protagonista, Dom Sabino, interpretado de forma espetacular por Edson Celulari, tem três filhas: Marocas (Juliana Paiva), Kiki (Nathália Gonçalves) e Niko (Raphaela Alvittos).  Marocas, que é a mocinha da novela, já tem vinte anos e, a rigor, não precisa mais estudar.  Já as outras duas, que são ainda crianças, precisam frequentar uma escola e o pai foi interpelado pelo Conselho Tutelar.  Dom Sabino acha absurdo que o Estado queira interferir em sua família, como educa suas filhas, ademais, elas tem uma preceptora, Miss Celine (Maria Eduarda de Carvalho), e são mais instruídas que a média das crianças do século XIX e mesmo de nosso século, com as defasagens inevitáveis, claro.

Alunas e preceptora.
Dom Sabino, no século XIX, não permitia que as filhas fossem à escola, que ele se refere como "liceu", e, eu presumo que fosse a escola pública, que existia, mas, via de regra, não era mista, salvo exceções.  Em um capítulo que não me lembro mais quando foi, Marocas, horrorizada com a ideia de meninas frequentarem a escola, citou que além do liceu, havia uma escola gerenciada por protestantes, onde o pai não deixaria que elas estudassem. As escolas protestantes, a maioria fundadas por missionários, foram, aliás, as primeiras a aceitarem meninos e meninas nos mesmos espaços como normalidade no Brasil. Difícil acreditar que eram essas duas as únicas opções em São Paulo.  Internatos de freiras para meninas e moças havia aos montes.

Curioso constatar que Dom Sabino além de escravocrata em 1886, algo absolutamente disparatado para um sujeito tão moderno em termo econômicos, ainda não tinha descoberto os bons internatos para moças que até um reacionário como Barão de Araruna (Rubens de Falco), de Sinhá Moça, conhecia muito bem...  Daí, na eminência de perder a guarda das filhas, o patriarca permite que Marocas e Miss Celine partam em busca de uma escola para as meninas.

Miss Celine e Marocas visitam o inferno: a escola pública.
Essa visita a uma escola pública aconteceu no dia 01 de setembro e fez com que vários sindicatos de professores emitissem notas raivosas.  Motivo?  A escola pública municipal foi apresentada como um lugar lastimável, no qual não havia livros e outros materiais didáticos, e os professores estavam em greve por melhores salários.  A diretora, ou a funcionária que recebe as duas moças, foi profundamente antipática.  Não havia vagas.  Marocas pergunta se não havia emprego para a preceptora.  

A funcionária responde que para lecionar é preciso aprovação em concurso público,  algo previsto em lei. Ainda que saibamos que boa parte das redes públicas contrate temporários, mediante exame de currículo e outras exigências, a novela não esclarece isso em momento algum.  As duas personagens se espantam e reclamam do fato de serem tão burocráticos, afinal, basta contratar quem tenha currículo, ou competência (*"notório saber" entra nessa parte*) e, algo que não foi dito, pagar mal e demitir como e quando quiser.  O nome disso é precarização.  Como professora e historiadora, a coisa não me escapou, mas é somente mais uma das informações insidiosas de uma novela que é muito simpática, divertida e, portanto, pode gerar um dano maior do que a média.  A conclusão de que a educação pública não presta apareceu em uma conversa sincera entre amigas, algo importante para fixar a mensagem.  Problemas temos, não são poucos, mas o tom da novela é de absolutos.  Em O Tempo Não Para, raramente temos aquelas preleções didáticas, tudo parece estar dentro de uma teia onde a defesa de teses neoliberais, a crítica ao modelo de Estado-Nação e a história em si se entrelaçam sem grandes conflitos.

Assim, no gelo, elas estavam mais protegidas.  
Verdade que, em 1886, você poderia educar uma criança em casa, verdade, também, que muitas meninas e meninos eram analfabetos, mas igualmente era verdade que a defesa da educação universal era uma bandeira desde, pelo menos, a Revolução Francesa. Durante o Império Brasileiro, especialmente, no 2º Império, houve a preocupação em regulamentar a educação no país, os conteúdos a serem ensinados, a função e remuneração dos mestres, assim como o que poderia ser ensinado à meninas e meninos, que tinham algumas disciplinas que não eram comuns.  Um dos grandes objetivos da educação era criar um sentido de nação e identidade, algo fundamental em um país tão jovem.

A educação primária pública, gratuita já consta na constituição de 1824, foi ignorada na primeira constituição republicana (1891) e voltou na de 1934, quando passou a ser obrigatória.  Era permitido as escolas particulares, claro, mas havia um currículo mínimo a cumprir, algo que dava certa homogeneidade à educação em todos os lugares do Brasil.  Sei que estou falando de legislação e que na prática temos muitos problemas, por conta disso, também, cabe o debate da educação domiciliar.  Curiosamente, o unschooling, que tem mais a ver com o aprender fora dos espaços escolares, com a natureza e múltiplas experiências, fica de fora.  É o modelo norteado pelos religiosos que está em discussão.

Unschooling também é uma rejeição ao ambiente escolar,
mas valoriza múltiplas experiências de aprendizado.
O fato é que a discussão da educação domiciliar (*em Portugal, se diz "doméstica"*) chegou ao Supremo Tribunal Federal.  Para alguns juristas, há brechas na legislação atual que permitem a prática e que caberia ao Legislativo debater e fixar a questão.  Como tem ocorrido ultimamente, para o bem, ou para o mal, a questão foi judicializada.  O ponto de partida?  A ação de uma família cristã de Canela, RS, que não queria que sua filha tivesse que estudar conteúdos que iriam contra as crenças familiares, neste caso, a Teoria da Evolução.  Ainda preciso confirmar como o Movimento Escola Sem Partido se posiciona, embora suspeite que apoia a "opção".

Só por ter este ponto de partida, a coisa já me causa revolta.  No geral, a proposta de educação domiciliar se pauta menos por uma crítica legítima ao ambiente escolar e mais por uma tentativa da família de ter o controle absoluto dos conteúdos ministrados e de quem tem acesso a criança, ou adolescente. Há os que argumentam que não frequentar a escola não impede a socialização, concordo, mas só permite uma socialização totalmente mediada e controlada pelos pais.  Tais situações, só para ser extremista, dificultam, por exemplo, que abusos possam ser detectados.   

Motivo principal do homeschooling? 
Questões morais e religiosas.
Aqui, no Brasil, volta e meia professores protagonizam casos de detecção e denúncia de abusos (*Às vezes, mesmo assim, termina em tragédia*).  Já nos EUA, de vez em quando aparecem os casos mais atrozes em que, via de regra, as crianças estavam em regime de homeschooling.  Com todos os seus riscos, a escola é um ambiente de socialização ampla, de confronto de ideias, em que, mesmo em escolas muito exclusivas, os educandos vem de famílias com vivências e estruturas diferentes.  A escola educa para o mundo, ainda que seja um mundo restrito por questões de classe, gênero, ou religiosas.  Isso me fez lembrar, aliás, de um dos pontos mais importantes do filme Desobediência... 

Mas vamos lá! E se a prática for permitida, como se dará o controle?  Haverá exames periódicos gerais aplicados?  As crianças terão que, como no caso de Portugal, onde a prática parece ser séria, estar matriculadas em uma escola de referência, ainda que em modalidade de ensino domiciliar?  Ou pegarão o modelo mais absurdo dos EUA (*a coisa varia de estado à estado*), como o que permitiu que 13 filhos na Califórnia fossem torturadas pelos pais sem que ninguém soubesse (*ou se importasse*), porque, bem, não havia nem o dever de fazer testes regulares.  Haverá visitas periódicas à família de profissionais *pedagogos, psicólogos, assistentes sociais*) que fiscalizarão se a prática está sendo bem conduzida e o bem estar dos educandos, ou isso será visto como invasivo?

Uma casa como qualquer outra... Na verdade, não.
Se, aqui, no Brasil, volta e meia são professores e colegas de escola que apoiam crianças e adolescentes com problemas, nos EUA, modelo de referência, os grupos restritos de socialização mais importantes são as igrejas, que tendem a acobertar maus tratos.  O exemplo mais gritante foi o da família Duggar, referência em valores cristãos, defensora do homeschooling, e que ficou anos no ar com um programa que começou como "19 filhos e contando" e foi aumentando com o nascimento de novas crianças.  O irmão mais velho abusou de várias de suas irmãs.  O caso foi "acomodado" com o moço, hoje um homem adulto e militante das causas conservadoras (*até o escândalo vir à tona*), que passou por aconselhamento pastoral.  E as irmãs?  Ah! A elas coube se calar e aguentar, afinal, eles eram um modelo e o programa trazia muito lucro.

Eu sou alarmista, porque a ideia da educação domiciliar me causa repulsa de várias formas.  Primeiro, por desvalorizar o trabalho do professor. Basta alguém esforçado para dar aula de qualquer coisa, em uma página portuguesa tinha algo assim: "Não sabe ensinar Física?  De repente, há um tio que possa quebrar o galho!".  Fácil, qualquer um pode ser professor.  Fico me imaginando ensinando certos conteúdos de matemática, ou física, mas sei que história, todo mundo sabe, de repente, basta pegar os tweets de algum entendido e usar como base.  Segundo, porque sei que são as mulheres que vão abandonar seus trabalhos para ficar em casa.  Aliás, a matéria do Jornal da Gazeta, que está no post, mostra uma família de classe média que "optou" pelo ensino domiciliar, porque era mais econômico.  A mãe saiu do emprego, ou estava desempregada, não ficou claro para mim, e assumiu a educação dos filhos.  Colocando na ponta do lápis, em tempos de crise e com mulheres recebendo menos que os homens na maioria das vezes, talvez seja mais barato para muitas mães, mesmo das camadas médias, porque as mais pobres já vem fazendo isso faz tempo com suas crianças pequenas e sem creche, assumirem esse papel.  Leiam bem BARATO, eu não escrevi MELHOR.


Terceiro, há a possibilidade de abuso, que já destrinchei.  Quarto, é a recusa da tradição do Iluminista, da Revolução Francesa mesmo, que buscou dar oportunidades iguais de educação aos cidadãos.  Uma recusa mesmo do Estado Laico.  Resultado?  Maiores tragédias em um país no qual sabemos vem que a educação escolar é muito complicada.  Criacionistas que nada sabem da Teoria da Evolução (*Você pode recusar, mas precisa estudar*), Terraplanistas (*sem escusa, aqui*), gente que não acredita em vacinas (*sem escusa, também*), que acredita que o Nazismo é de esquerda (*idem para os dois anteriores*).  E eu nem vou falar de gênero e diversidade, que o texto já vai longe... Mas é uma forma de fazer economia para o Estado e eu acredito que vá passar.  O primeiro voto foi a favor.

Segundo uma matéria portuguesa, de um grupo pró-educação doméstica, a prática é "legal em muitos países. Tem mais expressão em certos países como os E.U.A., Canadá e Inglaterra. Na Europa é legal em Portugal, França, Inglaterra, Irlanda, Itália, Dinamarca, Noruega, Finlândia, Suíça, Áustria, Hungria, Polônia, Lituânia, Bielorrússia, Rússia, Ucrânia, Moldávia, Estônia, Mônaco, Luxemburgo, Liechtenstein, Bélgica, San Marino, etc. É atualmente dúbio na Eslováquia, Bulgária, Romênia, Grécia, Holanda e Espanha. É ilegal no Brasil e na Alemanha."  Na Alemanha, eu já sabia por causa de problemas de missionários norte-americanos que se viram obrigados a matricular seus filhos na escola, ou ir embora do país. Desrespeito máximo aos direitos individuais!  A Wikipedia acrescenta que é proibido na Suécia, também.  No Japão, parece que a regra é ir para a escola, como aqui, a ponto da  lei em si não se preocupar em discutir.  A página que encontrei fala até que os estudos do tema são escassos.

Ensino à Distãncia não significa desprezo pelo trabalho
 do professor, ou pelo ambiente escolar.
Enfim, concluindo, não sou inflexível em relação ao tema.  Uma criança, ou adolescente, submetido a algum trauma, como o bullying, deveria ter o direito de ser educada em casa, ainda que por tempo limitado, e o Estado, se o problema ocorreu em uma escola pública, ou a escola privada, se foi negligente, deveriam arcar com os custos.  O fato é que é preciso flexibilidade nesses casos e em tantos mais forem necessários.  Convém, também, pontuar que ensino à distância, caso que ocorre, por exemplo, no Sistema Colégio Militar, centralizado no colégio de Manaus, é diferente de educação domiciliar, porque não há a rejeição da escola como um lugar privilegiado do processo de educação, mas a compreensão de que é impossível estar neste espaço e ainda assim ter acesso aos professores, se podendo cobrir os conteúdos mesmo afastados do espaço físico do colégio.  Conteúdos, a parte de socialização e do dia-a-dia na instituição podem ficar comprometidos, claro.

Concluindo, não sei como o caso da novela vai terminar.  De repente, o autor vai criar a situação de perda da guarda, ainda que temporária, para produzir drama, e mais ódio desse Estado malvado que se mete na vida de pessoas tão legais. Pode ser que ele aguarde o desfecho do STF, como provavelmente será positivo, Miss Celine talvez tenha seu emprego de novo e possa dar aulas em casa para as meninas, afinal, não há nada melhor do que o lar... SEMPRE!

4 pessoas comentaram:

Concordo com seu texto e acho que um ensino domiciliar deveria ter uma grade curricular aprovada pelo mec e que deveria ser trabalhado no modelo a distância... Únicos casos que vejo motivo para tal ensino: doença infecciosa, incapacidade de mobilidade, casos de depressão e ansiedade (o que no caso seria temporário) e adolescentes que estão de licença maternidade...

Nesses tempos de total loucura política, de gente que não se importa em ser ignorante e ainda assim emitir opiniões sobre tudo, a educação domiciliar - que pareceria um total absurdo há alguns anos - está aí para ser aprovada (sim, sou pessimista). E, como sempre, as vítimas dessas ideologias moralistas são sempre os mais fracos. No caso, as crianças.

"Na Alemanha, eu já sabia por causa de problemas de missionários norte-americanos que se viram obrigados a matricular seus filhos na escola... Desrespeito máximo aos direitos individuais!"
Perdão mas eu francamente não entendi seu comentário a cerca do caso. Interpretei como ironia só que fiquei com essa indagação por não ter certeza. Acho que estou em dúvida por se tratar de um caso envolvendo missionários e, tudo que envolva religião, tenho dificuldade de entender os limites do envolvimento do estado e a liberdade religiosa em questões que pouco parei para refletir. Aliás, esse seu texto despertou um monte de questionamentos que nunca parei para repensar ou mesmo não ter desenvolvido uma opinião.
Enfim, boa semana para você :)

Eu deveria ter posto o link: https://www.wnd.com/2007/09/43712/ Não sei se este é a notícia que li anos atrás, mas deve ser.

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