segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A escravidão é um fato social, mas isso não nos obriga a justificar nenhuma de suas formas


Se você está vivendo no Brasil, você já deve ter ouvido que um racista foi colocado para gerir a Fundação Palmares.  As falas do cidadão (*não colocarei o seu nome*) são um eco de coisas que estão em abundância nos livros e vídeos da série História Politicamente Incorreta amplificadas pelo rancor e a ignorância.  Só que isso acaba potencializando as reações à esquerda em relação à afirmações como "Zumbi tinha escravos", que a escravidão foi benéfica para os africanos e africanas e coisas do gênero.  


Se você assistiu ao documentário "Legado Negado: a escravidão no Brasil em um guia incorreto", lançado no Dia da Consciência Negra (20 de novembro), você deve estar ciente que a afirmação, assim como outras, carecem de fontes históricas que as sustentem.  Ainda que muita gente não saiba, ou queira saber, historiadores e historiadoras podem usar sua imaginação até para levantar hipóteses de pesquisa, não são neutros, mas precisam se pautar em fontes.  Elas são mais importantes, inclusive que um quadro teórico consistente, isto é, uma teoria e conceitos que possam guiar a análise.  Explicito isso, porque eu posso construir um monte de hipóteses lindas usando minha teoria super articulada, que se eu não tiver as fontes, já era.  Você não vai conseguir produzir nada que mereça ser chamado de relevante em termos científicos.

Por exemplo, há fontes mais que suficientes sobre o Tráfico Atlântico e que foi o Brasil que mais recebeu escravizados de todas as regiões da América.  Sabemos, também, que o tráfico persistiu com a conivência do Estado mesmo depois da sua abolição em 1831.  Há, também, fontes suficientes sobre a dinâmica da escravidão nas diversas regiões da África antes e depois do contato com os europeus.  Por outro lado, não temos fontes suficientes para afirmar que Zumbi assassinou o tio (Ganga-Zumba), ou que o líder símbolo do movimento negro brasileiro tinha escravos no Quilombo de Palmares.  Aliás, esta última questão é muito bem discutida no documentário do canal Leitura ObrigaHistória.  Essas duas informações vieram de um livro muito conhecido de um jornalista de (extrema) direita, que distorceu fontes históricas, e que é utilizado largamente por gente que quer desqualificar quaisquer movimentos sociais e demandas populares.  


Zumbi (1927), pintura de Antonio Parreiras (1860-1937).
Pois bem, vendo o pessoal, gente boa até, tentando desmontar os argumentos da extrema-direita, acabo percebendo um esforço, ainda que não intencional, de  justificar a escravidão tradicional na África, vejam bem, não explicar, mas justificar, como prática cultural legítima.  Até anteontem, fiquei suspirando em desalento, mas acho que preciso colocar a mão na massa e produzir um texto me posicionando sobre a questão. Percebi esse deslize mesmo no documentário que elogiei e que eu ajudei a patrocinar.  Ele é muito bom, mas há esse ponto incômodo, eu diria. Enfim, não sou especialista em escravidão, seja na Antiguidade Ocidental ou Oriental, na Idade Média, na África em seus múltiplos nuances, no Mundo Islâmico, a Atlântica (*que nos atinge aqui*) etc., mas sou professora em sala de aula que estuda e pesquisa e lê.  Além dessa criatura excessivamente crítica e que se recusa a endossar mesmo o que seu grupo diz quando vê algum problema.  Sou de Aquário com ascendente em Virgem, talvez esteja aí a raiz do problema.  😛   Seguem as minhas ponderações:

Meu primeiro convite é que, como pessoas do século XXI, precisamos começar concordando que a escravidão é SEMPRE ruim, SEMPRE uma violência, SEMPRE uma forma de opressão.  Pouco importa nesse caso se ela é movida por rivalidade entre povos vizinhos, guerras de conquista, tradição de dependência de uma população em relação a outra ou impulsionada por motivos econômicos.  Dizer, por exemplo, que em alguns casos ela "não era tão ruim", porque era temporária e, por isso, menos violenta, ou que o casamento com o "senhor" era comum e os escravos passavam a ser parte do clã, não diminui isso.  
O ataque a Zumbi é um ataque ao movimento negro e
às políticas afirmativas e compensatórias.
Aliás, essa de "casamento com o senhor", se pensada por um viés feminista, se ancora na legitimação da apropriação de mulheres e na normalização do estupro, porque, bem, quantas escravas podem dizer "não" ao senhor e saírem livres, leves e soltas? Há nuances, claro, não posso ficar alheia a isso.  Em algumas sociedades, nessa case podemos aplicar a alguns povos da África, ou mesmo ao mundo Islâmico, não havia o entrave aos casamentos entre senhores e escravas.  E não se enganem, porque é disso que estamos falando aqui, mulheres escravizadas casando com seus senhores e mantendo o que seria a hierarquia entre os sexos, ou entre os povos. Algo diferente disso é coisa raríssima e, muito provavelmente, terminaria muito mal tanto para o escravo, quanto para a mulher.  

Os filhos nascidos eram bem vindos, tinham amplos direitos, e as mulheres envolvidas nesse tipo de aliança, sejam elas forçadas, ou fruto de estratégias de quem queria sobreviver, vide Roxelana que se casou com o sultão Soleimão, o Magnifico, poderiam ganhar relevância política, chegando mesmo a governar.  Isso, claro, assim como ministros e generais escravos no mundo muçulmano não eram a regra, mas são exceções bem mais comuns do que uma Chica da Silva no Brasil.  Fora que os filhos do Contratador com Chica da Silva enfrentaram, a despeito da grande riqueza do pai, muitos entraves para ocuparem lugares de destaque na sociedade luso-brasileira do século XVIII e fazerem casamentos compatíveis com o lugar social que seu pai ocupava.  Na América, a escravidão tem cor e houve, sim, um esforço para marcar a diferença, na verdade o abismo, entre os senhores brancos (*ou assim percebidos*) e os escravizados negros.

Roxelana, ou Hurren, seu nome turco.  Quadro atribuído à Ticiano. 
Acredita-se ser uma cópia de 1560 do original feito quase três décadas antes.  
Ainda que os europeus tenham tido um impacto enorme sobre a escravidão no continente africano, modificando a forma como os diversos reinos e tribos tratavam o assunto, eles não foram os primeiros a ver a escravidão como um negócio.  Os irmãos de José, para recorrer ao texto bíblico (Gênesis 37), venderam seu irmão por dinheiro aos midianitas que eram comerciantes de escravos que levavam gente para vender no Egito.  A relação é puramente mercantil, não se trata de tradição, ou guerra de conquista.  Uns querem vender, outros desejam comprar para revender.  Trata-se ainda de um pecado, uma ofensa ao clã, porque, bem, vários textos jurídicos da Antiguidade começaram a estabelecer nos séculos VI, talvez antes, que vender alguém do seu próprio povo, ou escravizá-lo por dívidas, era inaceitável.  Você vende o outro, mas não os seus, ou os que considera como sendo do seu povo, ou da mesma fé, em certas situações. 

Voltando ao ponto, a escravidão já era encarada como negócio lucrativo bem antes das Grandes Navegações (séc. XV-XVI).  Os muçulmanos já compravam escravizados na África, assim como faziam razias na Europa cristã mediterrânea.  A Rebelião Zanje (869-883), ocorrida na Península Arábica, foi liderada por escravizados negros submetidos à condições terríveis de exploração em terras muçulmanas.  O medievalista francês Jacques Heers, em um livro escrito nos anos 1970, já alertava para o silêncio em relação à escravidão africana no mundo árabe-muçulmano e a dificuldade de estimar em números o comércio de gente do Mediterrâneo e da África para o mundo Árabe-Muçulmano.  Ao que parece essa situação não mudou muito, basta atentar para os escritos do antropólogo senegalês  Tidiane N'Diaye.  


Uma jovem de 16 anos traficada da Guiné foi oferecida à equipe da BBC.
É claro que nós, brasileiros, temos muito mais interesse pelo estudo da escravidão Atlântica, porque ela nos toca diretamente.  As fontes estão aqui, ou em Portugal, ou são mais acessíveis em termos linguísticos, mas não devemos esquecer que o tráfico humano fluía para os dois lados.  Estabelecido isso, é preciso marcar que a Arábia Saudita só aboliu a escravidão em 1962 e não foi o último país muçulmano a fazer isso oficialmente, mas a Mauritânia que só transformou a escravidão em crime em 2007.  

Dia desses, a BBC colocou no ar um mini documentário sobre o comércio de escravas domésticas na Península Arábica ainda hoje. Tudo ilegal, mas amplamente praticado.  O que Heers alerta na introdução do livro Escravos e Domésticos na Idade Média é o uso político desse silêncio sobre a escravidão no mundo islâmico.  O Mundo Árabe-Muçulmano sofreu e sofre com o Imperialismo ocidental?  Sem dúvida!  Só que os muçulmanos agiram como opressores de outros povos, negros na África, Eslavos na Europa, Asiáticos, enfim.


Rotas africanas medievais de escravos.
Antes deles, os gregos, romanos e outros, incluindo os cristãos do Mediterrâneo, usaram da escravidão de forma mercantilizada.  Se quiserem, eu desencavo documentos medievais nos quais a Igreja Católica proibia enfaticamente que cristãos vendessem escravos para os muçulmanos, pois esses mesmos escravos poderiam ser usados contra a Cristandade depois.  Não comentei que havia generais muçulmanos que eram escravos?  Havia soldados, também.  E, claro, era pior ainda se os escravos fossem cristãos.  E o povo obedecia? Bem, a repetição da ordem é um indicativo de que o problema persistiu.  E veja, não se trata de condenar a escravidão, mas que cristãos vendam escravos aos muçulmanos.  E os cristãos do Mediterrâneo continuaram tendo escravos.  O Decameron (1348-1353) em pelo menos uma novela que trata disso, um cristão oriental, capturado pelos turcos, vendido aos cristãos ocidentais e mantido escravo na Itália. [1]

Outra coisa, vi em um vídeo de um historiador que acompanho e respeito, a comparação entre a escravidão tradicional e a romana em oposição à Atlântica, foi aliás esse vídeo que me impulsionou a escrever esse post imenso.  É preciso parar de falar que a escravidão romana tinha um padrão semelhante à africana, como se em Roma não houvesse uma escravidão mercantilizada.  É fácil encontrar material sobre isso, muito material, aliás.  Escravos em Roma formavam uma massa muito heterogênea e o comércio poderia ser altamente especializado, mas eles e elas eram vistos como coisas.  Mesmo depois de libertos, mesmo se ricos (*alguns foram tornados herdeiros de seus senhores*), nunca teriam o mesmo status de um cidadão nascido livre, só para começo de conversa.  Já no final do Império do Ocidente, a liberdade em troca da fixação à terra (*uma das origens da servidão medieval*) foi a opção de muitos senhores para garantir a mão-de-obra e algum crescimento demográfico.


Imagem erotizada de um mercado de escravos romano.
 Não sei se é do seriado Roma, ou Spartacus: Blood and Sand.
O X da questão é que para que houvesse escravidão como prática sustentável, e isso vale para a Atlântica, também, é preciso ter abundância de mercadoria (*gente*).  Escravos não se reproduzem o suficiente para repor a mão-de-obra, porque escravidão é ruim, oras!  Aborto, infanticídio, fugas, revoltas, todas eram formas legítimas de resistência.  Com o fim das guerras de conquista, a escravidão entrou em crise em Roma, não porque os sujeitos capturados fossem compartilhados entre os soldados, ou seus comandantes, mas porque não se tinham matéria humana para alimentar os mercados de escravos e manter os preços acessíveis.  Da mesma maneira, a proibição e perseguição ao tráfico negreiro no Oceano Atlântico fez com que a escravidão nas Américas entrasse em colapso.  Os discursos  religiosos, morais, mesmo econômicos, foram importantes, mas impedir que o sistema fosse alimentado foi fatal.

Agora, a escravidão nas Américas tem cor desde o seu início e isso é, talvez, o fator mais importante do processo inteiro, pelo menos, para mim, uma leiga.  A coisa é tão forte, que é difícil desconstruir na cabeça de um aluno, ou aluna, que em vários momentos da história escravidão não tinha cor.  Qualquer um poderia ser escravo.  E, claro, a indignação de alguns ao saber que os muçulmanos (*e mesmo os cristãos mediterrâneos*) escravizavam pessoas brancas deriva disso.  “Como assim?  Isso é uma violência!”.  Por que?  Porque escravo tem cor e a cor é negra.  


A Escrava Isaura só desperta a piedade coletiva por ser lida como branca. 
Aí reside toda a força e toda a fraqueza do romance original
que foi magnificamente adaptado para a TV.
Escravizar a mocinha loura de olhos azuis, cristã, violentá-la, ou obrigá-la ao casamento, ou à vida no harém, é um crime sem tamanho.  E, bem, se você não leu meu texto sobre a Escrava Isaura, dê uma passada lá, porque é a mesma ideia.  Escrava Isaura só tem o impacto que tem, porque a mocinha é indiscutivelmente branca aos olhos do leitor.  Não fosse assim, seria somente mais uma escrava em uma sociedade que via como normal que negros e negras fossem tratados como objeto, submetidos a toda a sorte de maus tratos e abusos.

Ainda que um determinado povo, ou etnia (*os eslavos, por exemplo*) pudesse estar associado à escravidão em um determinado contexto, o fato dos negros como um todo serem associados à escravidão fez com que se criasse um sistema de discriminações, exclusões e violência nas Américas.  Como a escravidão negra envolveu os europeus, acredito que essa ideia de que a escravidão tem cor seja forte em vários países que participaram do tráfico: Portugal, Holanda, Espanha, França, Inglaterra, Dinamarca (*Sim! Temos que lembrar deles*).  A escravidão romana está muito longe, a islâmica é pouco ou mal estudada, mas a dos povos negros está bem mais viva.
O Brasil recebeu a maioria dos escravos.
 Resumindo, a gente pode e deve expôr as mazelas da escravidão Atlântica e como 400 anos de escravidão impactam a vida da população negra até nossos dias, rebatendo os reacionários que buscam legitimar todo um processo de violência.  E cito o deputado-príncipe-sem-trono que disse da plenária da Câmara, no 13 de maio, que  a escravidão é da natureza humana.  Claro, mas só se forem escravos com a cor certa de pele, podem tr certeza.  Eu imagino a vergonha que um Pedro II, ou a Princesa Isabel, sentiria desse descendente, mas abafa o caso... Agora, ao enfatizar o papel que o Brasil, ou do Tráfico Atlântico, nesse mercado de exploração humana, não precisamos cometer erros históricos crassos, ou passar pano para uma prática que em qualquer contexto histórico é baseada na violência e só se sustenta em sociedades que naturalizam a opressão dos diferentes, ou mais fracos.  E desculpem esse textão de historiadora, mas precisava escrever sobre o tema, era urgente fazê-lo.

[1]Encontrei o resumo da história: "Raptado por turcos, Teodoro é vendido ao senhor Américo Abate, de Trápani, ao tempo em que era rei da Sicília a Guilherme. Ali, cresce como criado mas vivendo qual fosse um filho. Apaixona-se pela filha do seu dono, Violante, que dele fica grávida. Dando à luz, a criança é condenada à morte cruel, e Teodoro é levado sob açoite para a forca. Passando diante de um hotel, embaixadores do rei da Armênia enviados ao papa se inteiram de tudo, e Teodoro é por um deles reconhecido como seu filho. Libertado, casa-se com sua amada."

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