sábado, 20 de junho de 2020

Será que Quebrar Estátuas é a Solução? Reflexões sobre a Iconoclastia do Movimento #BlackLivesMatter


Faz uma semana, um pouco mais, acredito, que estou para escrever sobre o caso E o Vento Levou e a derrubada de estátuas, que se iniciou com a destruição de um monumento em homenagem à Edward Colston, benfeitor de Bristol e grande traficante de escravos no século XVII. Estátuas servem para perpetuar a memória coletiva, ou a de certos grupos, os ataques iniciais focavam em monumentos em homenagem à homens envolvidos com genocídio, escravidão e outras atividades que são crime em nosso tempo.   Como estou com muito trabalho e procurando uma nova casa, não tive como sentar e escrever de forma coerente sobre as duas questões, que estão interligadas, pois são desdobramento das manifestações #BlackLivesMatter (*daqui para frente #BLM*).  Era para ser um texto só, mas decidi fazer dois.  E o Vento Levou merece algo só para ele.  Vamos lá, começo dizendo que minha posição deve parecer impopular, mas eu sou contra a derrubada de qualquer estátua, mas sou contra construir estátuas novas, também.

Como historiadora, eu tenho muito receio quando vejo gente festejando a destruição do patrimônio como se fosse ato positivo, da mesma forma, é lamentável a censura à peças culturais, quaisquer que sejam, com base na nossa sensibilidade moderna. Neste exato momento, universidades europeias estão discutindo a derrubada de estátuas de homens (*sempre são homens*) que foram importantes para o desenvolvimentos das mesmas, porque eles foram racistas, imperialistas e outros "istas" que não eram problema em sua época  e continuaram não sendo por várias décadas depois de suas mortes.  Será que vão retirar estátuas de reis e rainhas, também?  Não estou falando, claro, de Leopoldo II, que foi exposto como genocida em sua própria época, mas de outros.  Ele não conta, porque pode ser equiparado à Hitler.  Penso, por exemplo, na Rainha Vitória, duvido que não encontrem um deslize racista, uma afirmação imperialista, em sua longa vida.  Aliás, um dos homens que deve ser descido de seu nicho em Oxford é seu súdito e contemporâneo.  


Congoleses mutilados.  As atrocidades cometidas no Congo,
território pessoal do rei Leopoldo II, tornaram-se um escândalo internacional,
mas, ainda assim, ele tem várias estátuas na Bélgica.
"George Washington era racista e senhor de escravos!  Derrubem a estátua dele!"  Mas Washington foi um dos responsáveis para criação dos Estados Unidos, seu primeiro presidente, eram poucos os abolicionistas convictos quando se fez a independência do país.  Será que ao atacarem a estátua de um dos pais da nação, o #BLM não vai cair em desgraça com a opinião pública e ajudar, por exemplo, na campanha de Trump?  Porque atacar George Washington é atacar as próprias bases da nação norte americana. "Churchill era racista." Sim, deveria ser.  Dificilmente não seria tendo nascido quando nasceu e na classe social a qual pertencia.  Ele também foi responsável por umas atrocidades na Índia e na Mesopotâmia (*atual Iraque*), mas foi uma peça fundamental para conduzir Eduardo VIII, o rei nazista da Inglaterra à abdicação e para a vitória dos Aliados na Segunda Guerra.  Cabe pegar Churchill e jogá-lo foram ou é melhor lidar com suas contradições?  

"Derrubem as estátuas de Lutero!  Ele era antissemita.".  Era, sim, de novo, desafio qualquer um a encontrar uma figura importante da época, século XVI, que não fosse antissemita em maior, ou menor grau.  Eu posso até citar uns que eram até mais empolgados que Lutero, mas a Noite dos Vidros Quebrados foi no aniversário dele, não no de Bucero.   "Borba Gato era bandeirante, um assassino de índios!  Derrubem a estátua dele em Santo Amaro!"  Sim, ele era, mas foi importante para o desenvolvimento de São Paulo e sem os bandeirantes não teríamos Brasil, não com essas dimensões e fronteiras.  Por mais horrível que ele tenha sido, ele é parte da nossa história.  


A estátua feia de Borba Gato está sob proteção policial.
Será que faz realmente sentido isso?  A Declaração dos Direitos Humanos data de 1948, foi escrita no "susto" pós-Holocausto.  Antes disso, as convenções internacionais que visavam proteger aquilo que hoje chamamos de direitos humanos eram bem limitadas.  Até 1966, a discriminação racial era legal nos Estados Unidos e, mesmo abolida oficialmente, ela perdurou em resquícios legais e em práticas que justificam a existência do movimento #BLM.  O Apartheid na África do Sul somente terminou em 1994 e, ainda que o país fosse um pária internacional, tinha o apoio de países como Estados Unidos e Reino Unido. São três casos emblemáticos, poderia recolher outros mais.

Acredito que duas coisas precisam ser feitas urgentemente.  A primeira é discutir por qual motivo a memória de certos segmentos da população se perpetua como História coletiva e a de outros grupos é apagada.  Iremos chegar ao óbvio, os vencedores, os brancos, os ricos, os homens tendem a ditar o que deve ser lembrado, como deve ser lembrado e quem pode ser lembrado.  A querida Jane Austen, que nem era historiadora, já estava cantando essa pedra lá em Persuasão.  Supondo-se que os protestos conduzam a alguma mudança, será que a simples iconoclastia vai produzir algum resultado duradouro e que seja produtivo para a sociedade como um todo?  Será que basta quebrar uma estátua, ou colocá-la em um museu de estátuas para as relações raciais, ou sociais, ou de gênero, se transformarem para melhor?  Mas, se for para quebrar simplesmente, que criem mais museus-cemitérios de estátuas, conheço dois, um na Lituânia e outro na Rússia, cujo objetivo seria abrigar as estátuas derrubadas de seus pedestais depois do fim da URSS.


Cemitério de monumentos soviéticos na Lituânia.
O segundo ponto é por qual motivo precisamos de heróis?  Porque não valorizarmos o esforço coletivo, a grandeza do povo.  Somos muitas vezes conduzidos a acreditar que existem pessoas especiais, com uma aura de grandeza que fazem as coisas acontecerem e existem os outros, a maioria, os expectadores, a claque desses grandes homens, porque, bem, geralmente são homens do sexo masculino mesmo.  Eu tenho asco quando alguém diz "Stálin venceu a 2ª Guerra Mundial."  Meu nojo não é por acreditar na bobagem de que americanos e ingleses venceram a guerra, mas que os soviéticos e soviéticas é que conseguiram derrotar o nazista derramando seu sangue pelo seu país.  A URSS venceu os nazistas apesar de Stálin.  As personagens histórias são importantes, elas dão cor e sabor à narrativa, mas a História não deve ser personalista, não deve negar a importância da coletividade em prol da veneração de supostos iluminados.

Por qual motivo escrevi isso?  Circula por aí que o prefeito de Londres irá trocar as estátuas dos racistas, imperialistas, criminosos dentro de uma visão que separa as pessoas em bons e maus sem levar em conta outros fatores salvo as sensibilidades modernas por "personalidades negras, mulheres e LGBTs".  Eu não li esse tipo de afirmação em nenhuma matéria em inglês, ou português, mas ele disse o seguinte"É uma verdade desconfortável que nossa nação e cidade devem grande parte de sua riqueza à participação no comércio de escravos e, embora isso se reflita em nosso domínio público, a contribuição de muitas de nossas comunidades para a vida em nossa capital foi intencionalmente ignorada".  Esse tipo de fala, eu tomo como convite à reflexão.  E ele tem sido criticado por ter mandado encaixotar estátuas como a de Churchill para protegê-las, afinal, trata-se ou de demonstração de incapacidade de protegê-las, ou desrespeito mesmo.


A estátua de Churchill foi atacada por manifestantes.
Simplesmente tirar uns para colocar outros e outras, fica parecendo que basta tirar os homens brancos e colocar representantes das minorias (políticas) no lugar que está tudo beleza.  Está, não.  É preciso repensar a forma como lidamos com a memória e como construímos discursivamente a nossa História.  Abram qualquer livro didático de História e vejam que as personalidades não brancas, as mulheres, são prisioneiros de caixas de texto.  Parece destaque, mas esse recurso só revela a nossa incapacidade de percebermos as minorias (políticas) como parte do processo e, não, exceções, ou exemplos festivos.  As mulheres, os negros, os LGBTQ+ continuam à margem da História oficial, daquela que realmente é importante.

 E vejam bem, hoje derrubam-se as estátuas de Borba Gato (*a de Santo Amaro é muito feia mesmo, mas deixa pra lá*), amanhã, o jogo vira e derrubam os bustos de Zumbi, ou de Luís Gama.  Aliás, a biografia de ambos já foi retirada do site da Fundação Palmares.  A História é uma ciência que pode ser usada para legitimar o poder, ou criticá-lo, quem está por cima hoje, pode cair amanhã e serão os historiadores e historiadoras a narrar como aconteceu "de verdade".  Resta saber se estarão à serviço da sociedade, do conhecimento, dos valores que reconhecemos como universais (*porque são acordados em pactos internacionais*), ou de quem está no poder, ou dos seus interesses pessoais.


O monumento à Zumbi no Rio de Janeiro
 já foi vandalizado mais de uma vez.
Outra coisa, porque já me estendi demais e nem sei se este texto ficou bom.  Eu, Valéria, defenderei até o fim que ninguém tem o direito de danificar, destruir, apagar aquilo que chamamos patrimônio da humanidade.  Pode ser tombado, ou não, somos guardiães dele.  Eles não são nossos, eles são das gerações futuras.  Eu posso achar feio, eu posso não gostar da personagem, o mundo não gira em torno do meu umbigo. Conheço pessoas que consideram tombamento um obstáculo ao desenvolvimento econômico de uma cidade.  Quando trabalhei na Credicard, um chefe disse uma vez que deveriam derrubar o centro histórico do Rio de Janeiro e escolher uns três, ou quatro, prédios velhos para reformar e deixar como testemunho do passado.  Nem vou discutir essa história de botar abaixo, mas foquemos no deixar de pé uns monumentos.  Quem escolheria?  Qual seria o critério?  Pensem em um Paulo Guedes, ou um Véio da Havan tendo poder para decidir essas coisas.

Quando o Talebã destruiu as estátuas de Buda de Bamiyan, no Afeganistão, eu me indignei.  Por ser budista?  Não.  Porque são patrimônio de toda a humanidade, algo insubstituível.  Quando os americanos invadiram o Iraque e danificaram sítios arqueológicos da antiga Mesopotâmia por descuido, ou desprezo, eu me senti ofendida.  Quando o Estado Islâmico destruiu patrimônio da humanidade na Síria e no Iraque, eu tive raiva e dor.  Quando queimou o Museu Nacional por negligência de nossas autoridades, eu chorei de verdade por mim, pelo meu irmão, que foi estudante lá, pela minha filha, que nunca pode visitá-lo, e por todas as gerações futuras.  Quando Trump ameaçou bombardear os sítios arqueológicos do Irã, eu me senti agredida por esse ser repulsivo e egoísta que não percebe que ele não é nada diante da produção de gerações e gerações de seres humanos abrigadas em solo iraniano.


A derrubada da estátua de Edward Colston
 foi o ponto de partida para o movimento.
Ninguém tem o direito, por motivo que seja, de destruir patrimônio histórico, porque ele não lhe pertence, você e eu somos no máximo seus guardiões.  Uma estátua não representa somente uma personagem, os interesses de um grupo social, ela é testemunho do estilo de uma época e artista, ela é feita de materiais que podem ser estudados para melhor compreender o período em que ela foi construída, ela está inserida no planejamento (*ou falta de*) urbano de um determinado momento etc.  Mas, muito bem, fulaninho que viveu dois séculos atrás era malvado para os nossos elevados padrões morais contemporâneos (*Cóf! Cóf! Cóf!*), pegue a estátua dele e coloque em um museu-cemitério e tenha muito cuidado com o que porá no lugar dela.  Minha proposta, salvo para Leopoldo II, porque nenhuma regra é absoluta, seria fazer uma placa nova e acrescentar as partes "chatas", "feias" e "sujas" da biografia daquele homem, porque, repito, são normalmente homens, para conhecimento de todos.

Terminando, repensar a história é fundamental, renomear praças, ruas e tudo mais, é justo. Modificar datas e feriados, não parece nada escandaloso. O problema é destruir patrimônio e censurar, porque, hoje, são os progressistas que o fazem, amanhã, podem ser os fascistas, aliás, eles já estão tentando fazer isso no Brasil neste momento. Eu quebro, hoje, a estátua de um bandeirante, amanhã, eles podem colocar abaixo o busto de Zumbi.  É isso.  Espero que minhas reflexões tenham sido úteis e não pensem que represento toda a tribo dos historiadores, porque estou bem longe disso.  E mais, eu lamento a morte de pessoas, mas sinto-me ofendida, também, quando o patrimônio, que é algo coletivo, que é testemunho do passado, que nunca será perfeito e limpinho como alguns desejam, é destroçado seja por cálculo político, ou por raiva.  Voltarei a tocar no assunto quando escrever sobre E o Vento Levou, podem deixar.

6 pessoas comentaram:

Eu discordo um pouco do que você disse. Várias das estátuas confederas foram colocadas na época dos movimentos dos direitos civis, ou seja, quando elas servem para mandar uma mensagem racista e glorificar a Confederação, e além disso vários museus não querem elas por que elas não tem funções históricas. Então eu acho que está certo derrubá-las.

Lucas, se você puder, me passe links para esse tipo de informação que você citou, por favor. Quanto à função histórica, qualquer estátua, ou monumento, tem função histórica, e preciso perguntar simplesmente por qual motivo foi construído, para quê, com patrocínio de quem e se tem uma série de dados a analisar.

Oi, Valéria! Discordo de boa parte de seus pontos no texto e vou tentar explicar o porquê.

Pois bem, você disse que "Ninguém tem o direito, por motivo que seja, de destruir patrimônio histórico, porque ele não lhe pertence, você e eu somos no máximo seus guardiões". Veja bem, o tal "patrimônio público", a partir do momento em que o público NÃO O QUER, ele deixar de se tornar um objeto que devemos defender. Afinal, quais populações estão se vendo refletidas em Edward Colston, Borba Gato ou Winston Churchill? A destruição desses símbolos pelo povo não é "apagamento" da história uma vez que há RELATOS sobre quem foi tal figura e o contexto em que ele esteve inserido.

Sobre a sua sugestão de mandar esses monumentos para "cemitérios", eu concordo. Mas, melhor ainda, seria se fossem parar em museus; afinal, alguns deles têm o intuito de guardar a memória, de respeitar a dor. Veja o Museu do Holocausto: ele por acaso homenageia o nazismo? Não! Ele nos faz respeitar uma passagem da história que jamais podemos esquecer. O museu não serve tão somente para homenagear. Portanto, será que todas essas estátuas de escravagistas, torturadores, supremacistas, genocidas não podem ir para um lugar específico onde a gente reflita sobre essas figuras e o que elas representam? Afinal, expostas em praça pública, elas têm função de homenagem, são exibidas como uma "conquista".

Ah, mas a derrubada desses símbolos não vai mudar em nada." Claro que muda. Isso significa que um novo corpo social está se configurando e ele não tolera alguns aspectos da barbárie. Isso é fazer história.

Para finalizar, quero deixar um link muito interessante sobre o assunto:
https://conversadehistoriadoras.com/2020/06/21/dossie-estatuas/

"Veja bem, o tal "patrimônio público", a partir do momento em que o público NÃO O QUER, ele deixar de se tornar um objeto que devemos defender. Afinal, quais populações estão se vendo refletidas em Edward Colston, Borba Gato ou Winston Churchill? A destruição desses símbolos pelo povo não é "apagamento" da história uma vez que há RELATOS sobre quem foi tal figura e o contexto em que ele esteve inserido."

- Houve consulta popular para saber o que "o público" quer? Não. Em nenhum dos países onde houve derrubada de estátuas tal foi feito. Em democracias, há regras. Eu, que defendo esse sistema maio fora de moda, espero que as regras sejam cumpridas pelo meu bem e pelo dos demais entes da sociedade.

- Como sei que você não é leiga, deve estar ciente do pouco conhecimento histórico do cidadão médio. Isso é realidade no Brasil e eu sei que não é tão diferente assim em outros países. Por isso mesmo, acredito que quem quer a derrubada da estátua de Churchill não entende o papel dele para a história da 2ª Guerra Mundial. Isso, aliás, me atinge, também, sabe-se lá que mundo teríamos se Hitler tivesse vencido, não é mesmo? Então, como todo ser humano é complexo, não existem heróis salvo no mundo com unicórnios, nuvens de algodão doce com de rosa e estradas feitas de tijolos de chocolate, eu posso conviver com seres que não são perfeitos, nem em sua época, nem na nossa. Obviamente, antes que alguém volte a me acusar de nazista implicitamente, não inclui quem foi em sua época exposto por seus crimes que eram reconhecidos como tais no momento em que viveram. Caso de Hitler, caso de Leopoldo II, cujas estátuas causam vergonha à Bélgica.

- No mais, acredito que deixar de falar de algumas pessoas, ao invés de discutir como nossa memória é construída, como os fatos históricos são criados e consolidados nos materiais históricos, porque lembramos de A e, não, de B, porque a memória das elites é mais valorizada, é um dano ao futuro. Mas depois que vulgarizaram a palavra “gatilho”, discutir essas coisas pode terminar sendo banida, também, inclusive por obra dos ditos progressistas.

- E eu sei que a pauta é racismo, e, bem, racismo envolve homens, aliás, a confusão toda começou com o assassinato de um homem cis. Queria ver se haveria tanto ímpeto ou engajamento para derrubar estátuas dos feminicidas, dos sujeitos que casaram com meninas de 12 anos (*”Ah, mas e a cultura da época?”*), dos misóginos, dos estupradores. Eu duvido muito.

Veja o Museu do Holocausto: ele por acaso homenageia o nazismo? Não! Ele nos faz respeitar uma passagem da história que jamais podemos esquecer.

Talvez eu não tenha me feito entender, mas cemitérios de estátuas, até onde eu sei, porque nunca estive na Europa, são museus ao ar livre, não depósitos de lixo. Agora, o Memorial do Holocausto é diferente, porque é um lugar de homenagem às vítimas, um lugar para marcar exatamente isso, que não podemos esquecer para que coisas assim não voltem a acontecer novamente. Obviamente, tendo vivido 44 anos, sou muito cética em relação à humanidade, e como pontuei antes, ninguém quem discutir nada, querem derrubar estátuas e esquecer, em alguns casos, do que nem lembram, como deve ter sido com o ataque à estátua de Churchill, ou a mutilação da estátua de LuísXVI nos EUA.


-

A tal "consulta popular" seria promovida por quem, um órgão que serve aos interesses do sistema vigente (e que, por consequência, tem como projeto político o apagamento das populações marginalizadas)? Não acredito na democracia de um sistema que favorece a dominação racial e de classe, mas, já que é a esta ordem que obedecemos, creio que seja melhor considerar sobretudo as comunidades mais diretamente afetadas pelos efeitos desse passado que está sendo homenageado. Entretanto, seria muita ingenuidade minha acreditar que essa consulta seria ouvida sem luta. Não podemos negar os conflitos. Como disse a (também!) historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, "Para fazer frente ao consenso acerca da irrelevância histórica da gente negra e de seus questionamentos, precisamos radicalizar nossas agendas de disputa das múltiplas narrativas sobre nós."

- "Por isso mesmo, acredito que quem quer a derrubada da estátua de Churchill não entende o papel dele para a história da 2ª Guerra Mundial".
Em se tratando do povo britânico (pois foram os manifestantes de Londres que derrubaram a estátua), penso o contrário. Embora em declínio, o valor simbólico e emocional de Churchill para a classe dominante britânica é ainda muito valorizado. Ele é um mito nacional, sua história é a história do império. São muitos os filmes recapitulando suas glórias (aquele com Gary Oldman, um com Brendan Gleeson, Brian Cox e outros). Por isso, acho muito improvável que os britânicos que derrubaram a estátua de Churchill não conhecessem seu papel na Segunda Guerra Mundial. Muito pelo contrário: por conhecerem-no tão bem é que ele lhes é anacrônico hoje em dia graças ao seu racismo, eugenia, desdém pelo sufrágio universal, defesa de medidas autoritárias para controlar a desobediência civil etc.

Eu, Nathália, não defendo a destruição de estátuas, mas entendo que esse gesto é uma reação dos sujeitos historicamente apagados de narrativas que sempre legitimaram linchamentos e genocídios em defesa dos "valores cívicos". Acho que é necessário mostrarmos o outro lado, ressignificar o patrimônio, ocupar a cidade com outras histórias, pois assim, sozinhas, as estátuas em questão indicam a vitória de uma única memória. Mas essa é somente a minha opinião sobre o que fazer com esses monumentos, é claro.

Sobre o cemitério de estátuas, confesso que não estava familiazarizada com esse "conceito", daí a minha ignorância. Mas, em relação ao Museu do Holocausto, ainda considero um exemplo apropriado. Penso que, pelas estátuas serem homenagens, colocá-las em museus pode ressignificá-las, provocar a reflexão e nos fazer lembrar do período histórico em que elas foram erigidas - passagens da história que não podemos esquecer para que coisas assim não voltem a acontecer e figuras assim não voltem a ser celebradas.

Bem, Nathália, no caso da consulta, imaginei que você iria retornar algo como isso. O sistema é corrupto, logo, a consulta seria inviável, ou seria contaminada, ou seria ignorada. São possibilidades com as quais a gente tem que lidar dentro de uma democracia e que podemos denunciar dentro do mesmo tipo de sistema. Agora, se a turba é quem decide em seu momento de fúria. Eu não gosto de me imaginar subordinada às massas nas ruas. A gente sabe sempre como começa uma "revolução", entre aspas, porque a gente não tem ideia do tamanho e da profundidade de um movimento em seus primórdios, mas nunca como termina. Vide a desgraça na qual o Brasil foi atirado.

De resto, a gente costuma confiar muito na educação pública de outros países e que os jovens são muito mais bonzinhos e ouvem os adultos e sentam para ver os filmes chatos que nossas crianças não iriam querer ver. Fui atrás das bilheterias britânicas de 2017, The Darkest Hour, esse grande filme sobre Churchill. Eu assisti, resenhei, eu gosto do filme. Foi lançado em 1 de setembro. Ele não entrou na lista dos mais assistidos no Reino Unido, nem em 2017, nem em 2018. A 2ª Guerra já está bem longe das atuais gerações e não é de agora, ou o próprio neto da Rainha, e isso mais de uma década atrás, não teria usado uma braçadeira nazista. Não vamos superestimar os britânicos, ainda mais em um momento de raiva.

De resto, eu visitei o site que você me passou e o recomendei no meu Facebook. A Mônica Lima foi minha professora durante o estágio no CAP-UFRJ e quem me mostrou o quão interessante foi o Período Regencial Brasileiro.

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