terça-feira, 7 de setembro de 2021

Comentando Lady Mitsuko (1975-76) ou aprenda a fazer uma biografia em mangá com Waki Yamato

Alguns meses atrás, estava lendo sobre o movimento Pan-Europeu e seu criador, Richard  von Coudenhove-Kalergi e terminei caindo no verbete da wikipedia em inglês sobre Mitsu Aoyama (1874-1941), também chamada de Mitsuko, uma das primeiras japonesas a se casarem com um estrangeiro, logo após a Revolução Meiji (a partir de 1868), no caso, um nobre europeu, o conde austríaco Heinrich von Coudenhove-Kalergi (1859-1906).  Ela foi a primeira japonesa a entrar para a nobreza europeia e o único cidadão do seu país a conversar com o imperador Francisco José I, último monarca da Áustria-Hungria e também lembrado como "o marido da Sissi".

Mitsuko tinha apenas 17 anos quando conheceu o conde.  Ele havia sofrido um acidente, porque seu cavalo deslizara no gelo e ela o ajudou.  O conde era um intelectual, fluente em 18 idiomas e já tinha servido em missões diplomáticas até no Brasil.  Ele se encantou pela jovem e convenceu seu pai, que era dono de uma loja de antiguidades e de outros empreendimentos comerciais, a deixar que sua filha trabalhasse na embaixada de seu país.  Que mal haveria?  Poderia até aumentar as chances matrimoniais da moça.  O problema é que os dois se apaixonam, os pais dela se recusam a permitir o casamento e ela foge, se converte ao catolicismo e os dois se casam.

Sua família lhe vira as costas, seu casamento é somente parcialmente válido e o destino de Mitsuko talvez fosse ser deixada para trás com ou sem os filhos, eles têm dois antes de partirem para a Áustria, como vinha ocorrendo com várias moças japonesas (*Vocês conhecem a ópera Madame Butterfly, não é?*).  Quando o pai do conde falece e ele tem que retornar para seu país e assumir as propriedades da família, ele decide levar Mitsuko, que finalmente recebe permissão de sua família e se casa regularmente diante das leis japonesas.  Ela, uma plebeia, é recebida pela imperatriz e recebe uma mensagem do Imperador Meiji que dizia mais ou menos que ela deveria se conduzir com toda a dignidade, porque onde quer que estivesse, ela representaria o Japão.  A família do conde parece não receber bem Mitsuko, afinal, ela era plebeia, estrangeira e de uma "raça" inferior.  É preciso lembrar que estávamos no auge das teses racistas que eram vistas, na época, como ciência.

Na Europa, Mitsuko aprende alemão, francês, História, Geografia, equitação e vence a resistência da família do marido se tornando uma condessa exemplar.  Ao ficar viúva repentinamente, depois de dez anos de casamento, ela tem sete filhos e várias propriedades para gerenciar.  Os parentes do marido querem lhe tomar os bens e os filhos e remetê-la de volta para o Japão.  Ela resiste, estuda as leis austríacas e derrota seus parentes.  Aprende, também, contabilidade e passa a administrar sozinha as propriedades.  Garante uma boa educação para os filhos que são admitidos nas melhores escolas e universidades. Todos os filhos e filhas, ou a maioria, foram notáveis de alguma maneira, se destacando por seu intelecto, ou excentricidade.  Ela chega a romper com seu filho Richard, ou Eijiro, seu nome japonês, porque ele se apaixona por uma atriz Ida Roland, treze anos mais velha que ele, duas vezes divorciada e judia.  Os dois terminam se reconciliando depois que o projeto Pan-Europeu ganha relevância e o valor do filho é reconhecido internacionalmente.

Fiz um resumo do verbete em inglês e incluí pouca coisa do que temos a mais nos verbetes em japonês e alemão, porque precisarei deles quando falar do mangá.  Sim, descobri no final de semana, fazendo a minha pesquisa para o Shoujocast sobre Waki Yamato que existe um mangá, porque esse romance da mocinha japonesa pobre e do nobre austríaco que dizia que duelaria com qualquer um que desrespeitasse sua esposa é um shoujo mangá pronto e acabado.  Agora, quantos volumes de mangá a vida de Mitsuko renderia?  Pelo menos uns dez, mas Yamato dá um show em três capítulos.  Você não leu errado, somente três capítulos muito bem escritos são suficientes para contar a vida dessa mulher.

Lady Mitsuko (レディーミツコ) foi publicado na virada de 1975 para 1976 na revista Betsufure (*no Shoujo Manga Outline, a data é 1977, mas acredito que não é a data correta.*).  A série tem uma grande preocupação em mostrar as mudanças pelas quais o Japão vinha passando no início da Era Meiji e o estranhamento em relação aos estrangeiros que passaram a estar presentes no país.  Mitsu quer dizer terceira, neste caso, terceira filha.  Logo no seu nascimento, a parteira diz que a menina seria uma pessoa especial.  É a autora preparando a audiência para o que virá depois.  Temos um salto no tempo e é mostrada a despedida de Mitsuko da escola, pois seu pai decidiu que ela já estudara o suficiente para conseguir arranjar um bom marido para ela.  As colegas falam que se ela ficasse por mais dois anos, ela seria tão bem educada que poderia atrair a atenção até de um nobre.  A moça, no entanto, é muito alta para os padrões japoneses e ela precisa de noivo que seja ainda maior.

Não achei nada sobre o fato de Mitsuko ser alta, o fato é que pode ter sido uma invenção para que uma das personagens dissesse que ela precisaria casar com um estrangeiro.  A ideia era absurda e quando efetivamente o conde pede a moça em casamento, o pai de Mitsuko recusa e a tranca em casa.  Ainda que o casamento dos dois pudesse ser válido aos olhos da Igreja Católica, e acredito que Waki Yamato não tivesse conhecimento disso quando mostra os parentes austríacos do conde o pressionando para que se livrasse de Mitsuko, no Japão da época ele não era suficiente.  Mitsuko estava em uma condição de concubina segundo as leis vigentes em seu país e Waki Yamato mostra o quanto isso era comum e, ao mesmo tempo, rebaixava uma mulher aos olhos da sociedade.

O primeiro capítulo foca no encontro dos dois, em sua vida no Japão até a partida para a Europa.  O segundo capítulo mostra a pressão sobre o conde para que ele repudie a esposa.  Como pontuei, o casamento católico era válido e seria muito difícil de ser declarado nulo.  Heinrich é um marido amoroso, mas os parentes fazem questão de enfatizar o quanto Mitsuko é inadequada como foi... Sim, Yamato Waki inventa que o conde tinha amado uma mulher quando era muito jovem e que ela seria uma plebeia.  Proibidos de se casar pela família do conde, a moça, que estava grávida, cometeu o suicídio e ele ficara profundamente traumatizado.  Por isso, seu ímpeto em manter-se longe da pátria em vários postos diplomáticos sucessivos.  Mitsuko o curara parcialmente e para a moça ele dissera que a amada era de condição superior a dele.  Como assim?  Seria ela uma arquiduquesa?  Não, ele falava de ser superior em espírito, por assim dizer.

O conde contrata um professor para os filhos, Ernest, um ex-colega de faculdade, que dá lições também para Mitsuko.  O fato é que ele acaba cismando que a esposa precisa aprender o máximo de coisas em o mínimo de tempo.  O conde começa a ser grosseiro com Mitsuko e chega a bater nela com um chicote quando a esposa diz que caçar animais era algo bárbaro.  Meio que tomei raiva dele naquele momento.  Waki Yamato não precisava exagerar tanto, ela inventou isso no vzio?  Mas abri o verbete da Wikipedia em japonês e lá está escrito que o conde mandou a babá japonesa de volta para casa e proibiu Mitsuko de falar japonês quando chegaram na Áustria.  Então, esse tipo de informação deve ter influenciado essas sequências mais violentas do mangá.  Quando Mitsuko descobre a verdade sobre o primeiro amor do conde, ela mesma decide se empenhar e aprender o máximo possível.

O final do capítulo dois mostra a aceitação de Mitsuko pela família do marido e mostra os filhos do casal.  Apesar da tal proibição de falar japonês, um dos meninos se tornou especialista em estudos sobre o Japão e professor universitário, Richard era fluente em japonês, também.  Então, me pergunto se a coisa foi mantida à ferro e fogo, havia, afinal, a ordem do imperador, mas o mangá não toca no assunto.  Muito bem, o conde morre no final do segundo capítulo.  A terceira e última parte da história mostra o luto de Mitsuki e que ela quase desistiu e voltou para o Japão.  Verdade, ou não, o importante é que a autora usou uma personagem masculina, Ernest, para empurrar a protagonista, lembrar-lhe dos seus deveres.  Foi uma parte que não me agradou.  Ficou parecendo que para que a protagonista tomasse a atitude correta, ela precisava de um homem para guiá-la.


A partir daí, Mitsuko enfrenta a família do marido e assume o controle das terras, negócios e criação dos filhos.  Waki Yamato coloca o que parece ser uma crítica à mulher que se dedica ao trabalho e se esquece dos filhos, ou se esquece de materná-los.  Aquilo incomodou e é preciso lembrar a época em que o mangá foi publicado,  mas o fato é que foi somente um recurso dramático mesmo, porque lá no final a ideia é que Mitsuko fez o que fez por eles e deve, inclusive, respeitar as escolhas que seus filhos e filhas fizerem.  De qualquer forma, Waki Yamato estava dialogando com o momento em que vivia e a mãe trabalhadora muitas vezes era estigmatizada diante da sociedade.  Era preciso escolher entre ser mãe e esposa e um trabalho, mesmo que ele fosse fundamental para o sustento da família, ou viver com a culpa.  Agora, se olharmos para a nobreza europeia da época, muitos pais e mães quase nunca tinham uma convivência próxima com seus filhos e filhas, eles eram criados por babás, preceptoras, tutores e/ou remetidos para colégios internos.

De parte inventada, tivemos a declaração de amor de Ernest, que está para Mitsuko assim como André está para Oscar da Rosa de Versalhes, ele seria capaz de fazer tudo por ela, inclusive, questionar o conde sobre sua conduta brutal para com a esposa.  Eu realmente acredito que ele seja obra de ficção, assim como o primeiro amor do conde.  De qualquer forma, ele se retira da vida da protagonista para preservar sua reputação.  Mitsuko parece apaixonada por ele, também, mas está disposta a seguir sozinha como uma demonstração de fidelidade ao marido e respeito por sua trajetória na vida.  Ela fizera muito e tinha outros tantos desafios a vencer e, agora, absolutamente sozinha.  Incrivelmente, Yamato consegue apresentar até o casamento de Ida e Richard nesse terceiro capítulo.  O mangá segue até a morte de Mitsuko e termina.

Agora, uma parte que não sei que corresponde à realidade foi Mitsuko tentando impedir a filha mais velha, Elizabeth, de ir para a universidade.  A menina diz que a mãe só ensinava as filhas as prendas domésticas.  Eu realmente desconfio que não proceda, afinal, uma nobre, ou mesmo uma moça das camadas burguesas da sociedade, não aprendia somente isso no início do século XX.  Línguas, desenho, música, algumas disciplinas que a própria Mitsuko estudou, eram fundamentais.  A própria Mitsuko sabia o quanto a sua falta de educação formal atrapalhou sua vida.  Enfim, mas, no fim das contas, tudo resolvido, ela permite à filha, que acabaria por se tornar (*isso não está no mangá*) secretária do primeiro-ministro da Áustria, vá para a universidade.  A história de Mitsuko com o conde foi a base para o casamento dos pais de Shinobu em Haikara-san ga Tooru (はいからさんが通る).  O rapaz era filho de um japonês com uma alemã e seu casamento era contemporâneo ao caso de amor de Mitsuko com o conde, só que não deu certo.

Como era típico da época, a autora não segue fielmente a moda.  As mocinhas de shoujo mangá costumavam usar laços no cabelo, Mitsuko os usa, mesmo depois de casada. A inspiração principal da autora parece ser as roupas das décadas de 1870-1880 e a representação varia muito ao longo dos três capítulos.  A mocinha só prende o cabelo depois da morte do marido e, ainda assim, às vezes, aparece com o cabelo solto.  Mas isso é da época, não conheço nenhum mangá dos anos 1970 que seguisse de forma fiel a moda histórica, incluso aí A Rosa de Versalhes (ベルサイユのばら). Em obras dos anos 1980, a autora foi muito mais rigorosa, mesmo fazendo algumas concessões.

O filho de Mitsuko, Richard, serviu de inspiração para a personagem Victor Lazlo (Paul Henreid) no filme Casablanca, um idealista, antifascista e que queria uma Europa unificada. E não foi o único filho de Mitsuko a se colocar contra o fascismo e do lado certo da história.  E é isso.  Recomendo o mangá, porque é um verdadeiro show de objetividade com qualidade e muito sentimento.  Fora isso, é uma rara história de amor que parece inventada, mas que aconteceu de verdade e foi desenhada e narrada em cores bem dramáticas por Waki Yamato.

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