terça-feira, 7 de setembro de 2021

Comentando Bagdá Vive em Mim (Suíça/Alemanha/Inglaterra/2019): Sobre as dificuldades de se livrar de um passado que nos atormenta

Ontem assisti Bagdá Vive em Mim (Baghdad in My Shadow), seria o tipo de filme que eu assistiria no Liberty Mall, o melhor cinema de Brasília, mas existe a pandemia e eu não estou completamente vacinada ainda.  Pois bem, fiquei sabendo do filme por uma resenha da Folha de São Paulo que comparava o filme do documentarista iraquiano Samir ao seriado Friends.  Eu fiquei encafifada com aquilo e fui assistir ao trailer.  E, bem, não tinha nada de Friends, a não ser o fato de termos um grupo de amigos e amigas em cena.  Sei que os trailers mentem, mas o que se anunciava era um filme denso e dramático, o primeiro do documentarista que assina simplesmente como Samir.  E é isso mesmo, trata-se de um filme complexo, conectado com as discussões contemporâneas e com uma protagonista dúbia e imperfeita.  Vamos para o resumo do filme.

"Abu Nawas" é um café moderno e ponto de encontro popular para artistas e exilados iraquianos de várias gerações em Londres.  O café fica perto da mesquita Salafista dirigida por um sheik radical (Farid Elouardi) que atrai homens jovens com um discurso contra a decadência da civilização ocidental e que alveja, em especial, os homossexuais e as mulheres que não se comportam segundo os (seus) padrões islâmicos. Quando Nasseer (Shervin Alenabi), um jovem religioso fanatizado e sobrinho do poeta Taufiq (Haytham Abdulrazaq), ataca os amigos de seu tio, ele põe em ação um curso de eventos que vai virar a vida de todos de cabeça para baixo.

Bagdá Vive em Mim fala de estranhamento e de integração, de apego (e invenção) das tradições e de integração à sociedade britânica do século XXI.  É um filme que apresenta conflitos diversos (políticos, religiosos, geracionais, de gênero etc.) de uma forma bem orgânica tendo como centro o café do comunista Zeki (Kae Bahar), um sujeito otimista e que casou-se na Inglaterra e tem um um filho adolescente, Aro (Taro Bahar), descobrindo a (homo) sexualidade.  Ele faz parte da geração de emigrados mais velhos, junto com Taufiq e Samira (Awatif Naeem) que saíram do Iraque fugindo do regime de Saddam Hussein (1979-2003).  

O filme começa com uma investigação de assassinato que trazem de volta lembranças dolorosas de Taufiq.  Todos os demais personagens giram em torno dele e do café, o ponto de encontro.  Ele me despertou simpatia e antipatia.  É uma personagem cheia de pontos sombrios e imperscrutáveis.  As subprotagonistas estão ligadas a ele de alguma forma.  Há seu sobrinho, o jovem Nasseer, que cresceu na Inglaterra, tinha sonhos e objetivos de um garoto comum do país, mas que sofreu um violento ataque de neonazistas e acabou sendo atraído para uma vertente radical do Islã Sunita, o Salafismo.  A família é xiita, como a maioria dos iraquianos.  Ele culpa o tio, que ficou no papel de seu pai, por tê-lo visitado somente duas vezes enquanto esteve no hospital.  Taufiq tenta corrigir as coisas, mas já é tarde demais.

A outra subprotagonista ligada a Taufiq é o jovem Muhannad (Waseem Abbas), outro refugiado, que tem dificuldades em assumir publicamente a sua homossexualidade.  Ele trabalha com computação e manutenção de sistemas e máquinas e frequenta o café.  Tem um namorado inglês, Sven (Maxim Mehmet), super paciente e que lhe repete que ele não está mais em Bagdá, que não precisa ter medo, mas ele não consegue se livrar das memórias do seu tempo no Iraque (*ainda que eu ache que ele não tem flashbacks, como outras personagens, mas pesadelos mesmo*) e teme o julgamento de seus compatriotas.  Eventualmente, ele consegue romper algumas cadeias, mas Taufiq lhe arranja um emprego perigoso e que o coloca na mira dos radicais, ao recomendar seus serviços ao sheik.  O rapaz vê o sheik distribuindo dinheiro aos rapazes para que depositem em contas para os radicais na Síria e  descobre que o moralista misógino e que odeia o ocidente tem vários gigas de pornografia no seu computador e que ele prefere mulheres louras, apesar de seu desprezo pelo Ocidente.

A terceira subprotagonista é Amal (Zahraa Ghandour), uma jovem arquiteta refugiada na Inglaterra.  No novo país, ela não pode exercer a sua profissão, Martin (Lachlan Nieboer).  Todos os dias, ela corre e passa na frente da construção de um prédio e lá ela conhece o gerente da construção, Taufiq a estimula a tentar, ele sabe bem o que é ser tão qualificado e ter que fazer um trabalho que exige pouca qualificação.  Amal trabalha no café.  Só que o mesmo Taufiq reage muito mal quando descobre que Amal está namorando um inglês.  Amal reage e o confronta "A liberdade é somente para os homens, então?".  Sim, na verdade, dentro dessas comunidades de imigrantes é muito comum que os homens se integrem, que gozem de tudo que uma sociedade ocidental oferece, mas que obstruam "suas" mulheres, em especial, quando se trata de se relacionarem com homens de fora do grupo. 

Mas Amal tem um segredo espinhoso e que atinge Taufiq de alguma forma e eu acredito que esse problema do passado é que atrasa um tanto o desenvolvimento do seu relacionamento com Martin.  Não é qualquer imperativo cultural-religioso que a impede de beijá-lo em público, como no caso de Muhannad e do namorado, ou de fazer amor com Martin.  Trata-se de um medo profundo e justificado.  Seu nome não é Amal, ela não é uma rara iraquiana cristã, ela está fugindo de um marido abusivo e perigoso, que ela escolheu contra a vontade de seus pais.  Esse homem acaba vindo atrás dela.  

Se nosso filme tem um vilão, seu nome é Ahmed Kamal (Ali Daeem), um ex-torturador e agente do governo de Saddam Husseim que conseguiu mudar sua identidade e se infiltrar no novo governo de seu país.  Ele chega à Inglaterra como adido cultural.  Ele é culto, charmoso e quer destruir a vida da ex-mulher.  Amal tem um dossiê contra ele e entrega o material para Taufiq, um homem que foi torturado pelo regime e sabe o quanto gente como Kamal é perigosa.  Aliás, o marido de Amar odeia comunistas e consegue manipular o sheik e Naseer terminando por levar adiante uma agenda de vingança contra a esposa e quem a está ajudando.

Temos, portanto, duas gerações de iraquianos, uma primeira que foi mobilizada por ideais políticos de mudança social, no caso, o marxismo, e outra que é guiada por uma agenda política que tem a ver com direitos individuais, a possibilidade de realizar-se plenamente como mulher, ou de exercitar livremente a sua sexualidade.  A primeira geração é muito culta, e deve se compreender disso que eram membros das elites do país e tiveram acesso à melhor educação mesclando ocidente e oriente, que o dinheiro poderia comprar.  Zeki e Samira ainda sonham em mudar o mundo, são fiéis aos seus valores comunistas, já Taufiq é cínico.  

É poeta, mas trabalha como guarda noturno em um museu.  Ele tem um passado turbulento, foi torturado e trocado no Curdistão por um espião do regime de Sadam.  E há uma dúvida, uma mancha em seu passado.  Teria ele denunciado o cunhado e a própria noiva em troca da sua liberdade?  Você terá que decidir, caso assista o filme.  E, claro, é exatamente utilizando essa dúvida que Kamal consegue afastar Naseer do tio.  Taufiq não se defende e perde pontos com o sobrinho ao confrontar o sheik e mostrar que ele entende muito mais de Corão do que o religioso que me lembra muito fisicamente com o padre Fábio de Mello quando mais jovem.  Uma cena que me pareceu exagerada, mas que foi um momento em que Muhannad finalmente perde a paciência com o homofóbico Naseer, é quando o jovem fala bem alto no café que o sheik tem pornografia em seu computador.  Bem, não tinha como não dar m****.

Naseer, que já estava indignado com a árvore de natal comunista no café, rompe com o tio, que será acusado de ter usado Muhannad para plantar o material pornográfico no computador do sheik.  Ele e Muhannad viram alvo da vingança dos salafistas.  Bom explicar, Naseer briga até com a mãe, uma devota xiita.  Para ele, os pôsteres com rostos de aiatolás e outras lideranças xiitas, as celebrações como o Ashura, e outras coisas que são caras aos seguidores dessa linha do islã são heresia e idolatria. Salafistas, wahabistas, Estado Islâmico, Talebã são todos sunitas e perseguem os xiitas.  A população xiita do Iraque foi perseguida na época de Saddam Hussein e, depois, pelo EI.  A mãe,  Maha (Meriam Abbas), evita confronto com o filho, mas pede, logo no inicio do filme, ajuda de Taufiq.  

Sim, eu sei, o texto está meio fora de ordem, mas voltemos aos velhos que são liberais, progressistas, mas, volta e meia, escorregam em suas velhas tradições e costumes, assim como em (pre)conceitos que não são compartilhados.  De Taufiq já falei, mas Zeki é uma personagem curiosa.  Ele confronta Maha sobre o seu hijad (*que é somente um véu muito leve e que deixa parte do cabelo à mostra*), dizendo que ela deveria retirá-lo.  Ela o confronta e fala "É engraçado como vocês homens sempre acreditam que tem o direito de dizer como as mulheres devem se vestir."  Daí, ela diz que acha a camiseta dele horrível, mas que é direito dele usá-la.  Zeki vivia usando camisetas com mensagens, nem sempre de muito bom gosto.

Não vi esta cena como apologia ao hijab, aliás, Maha é a única mulher muçulmana a usá-lo em todo o filme, mas um aviso de como os homens se sentem no direito para ditar o que as mulheres devem, ou não fazer, ou vestir.  As três mulheres do filme são bem assertivas sobre seus direitos e não dão espaço para que os homens, progressistas, ou reacionários, se imponham a elas. O filme cumpre com folca a Bechdel Rule e todas as suas personagens são feministas. Zeki e Taufiq gostam também de fazer piadinhas homofóbicas em relação à Muhannad, é o mesmo tipo de bobagem que eu ouvi de meu pai e meus tios desde a minha infância.  "Quem é a mulher do casal?"  Não se trata de invocar a ira divina, afinal, Taufiq e Zeki são comunistas, ou defender a violência física e o extermínio.  Mas é uma forma de discriminar, humilhar, estigmatizar os homossexuais.  "Quem é a mulher", significa que um homem está se rebaixando, ao fazer isso, ele rebaixa todos os homens e deve ser punido. 

Em uma dessas cenas, Samira chega e coloca a sexualidade de Zeki em questão: por qual motivo o café se chama Abu Nawas?  Nawas (c. 756 -c. 814) foi um dos maiores poetas em língua árabe, era um especialista no Corão e parte da sua obra é dedicada à poemas louvando o amor entre os homens e o corpo dos rapazes.  Fui pesquisar e as primeiras edições das obras de Nawas censuradas só apareceram no século XX, antes, elas circulavam livremente.  Outro detalhe da vida de Nawas é que ele era chegado em bebidas alcóolicas, algo vetado aos muçulmanos.  Taufiq se cala, Zeki fica sem graça, deixa de fazer piadinhas e se mostra muito compreensivo quando descobre que seu filho adolescente, Aro (Taro Bahar), está apaixonado por Muhannad.  Sven tinha percebido o interesse de Aro pelo namorado iraquiano e o rapaz termina fazendo um papelão em público.

Antes de terminar, temos uma crítica ao colonialismo na conversa entre Taufiq e sua amiga editora, Maud (Kerry Fox).  Ela admira seu trabalho, mas não consegue que seu chefe aceite publicar o livro de poemas do iraquiano.  Eles recitam juntos uma poesia de Shelley e Taufiq diz "Nós conhecemos todos os seus poemas, vocês não conhecem nenhum dos nossos."  Sim, é isso.  O imperialismo cultural impõe as produções europeias e norte-americanas a todos o mundo, mas não é uma via de mão dupla.  Pior é quando aceitamos que nossas produções são inferiores, menos refinadas, indignas.  Pense no que está acontecendo em nosso país hoje, na política cultural governamental e, bem, estamos exatamente nesse pé.  

Bagdá Vive em Mim é um filme sobre conflitos e as tentativas das pessoas de boa vontade de os resolverem.  Não é um filme que oferece respostas, que nos poupa das consequências de atos impensados, ele expõe as feridas, mas ele é otimista.  Os velhos continuam sonhando com um mundo mais justo, Taufiq tenta resolver os problemas que criou, Muhannad consegue assumir publicamente a sua homossexualidade (*inclusive a única cena de sexo evidente do filme é dele com Sven*), mas a felicidade não é o fim comum de todos os frequentadores do café Abu Nawas.  Quanto ao café, ele continua como ponto de encontro, como lugar de tolerância, de memórias compartilhadas daquela pequena comunidade de iraquianos.  É isso.  Recomendo muito.


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