segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Comentando os capítulos #23 e #24 de Nos Tempos do Imperador: Começaram a desmontar o núcleo negro da novela

Estou atrasada, mas tive um monte de pendências a resolver e os comentários do capítulo de sexta e sábado serão publicados hoje.  Muito bem, só o que me pareceu mais importante mesmo e comecemos pela Pequena África.  No documentário A Negação do Brasil e no livro (tese de doutorado) de  Joel Zito Araújo, uma das ideias importantes defendidas pelo autor é que as novelas brasileiras geralmente apresentam a personagem negra isolada.  É a doméstica, o motorista, o amigo de alguém branco que é importante na trama, quando ousam colocar uma família, ela não aprece ter conexões com outras personagens negras.  Nesse sentido, o núcleo da Pequena África era bem interessante.

Ainda que o mocinho, Jorge/Samuel seja um sujeito sem uma história própria que consiga sustentar a trama, ele interage diretamente  com duas famílias negras em um núcleo com figurantes negras.  Há ainda Lupita, que como escrava de ganho, passa a morar na Pequena África e a escrava fugida Minervina, que parece que fica ainda um pouco na novela.  Obviamente, as duas famílias são pequenas, núcleos de três pessoas, pai, mãe e filho/a, mas isso é muito acima da média da maioria das novelas.  Essas personagens ainda mantém alguns lações com os núcleos brancos.  D. Olú é amigo do imperador, Samuel frequenta a casa da Barral.  São negros mantendo, na maioria do tempo, interações com outros negros.  Só que, nos últimos capítulos, duas personagens muito importantes, Abena e Baltazar, foram mortos por Borges.

Não vimos as mortes e não estou lamentando isso, porque a cena foi forte o suficiente.  O recurso de colocar Mãe Cândida, que é uma sacerdotisa do Candomblé, tendo pressentimentos e, já no final do capítulo de sábado, vendo os amigos, seu sorriso inicial se transforma em horror quando ela observa que eles estão cobertos de terra, seus rostos com expressão de dor, foi muito efetivo.  Eles não estão mais entre os vivos.  Foi uma das melhores sequências da novela até o momento, ainda que a tal festa de noivado, que estava em preparação (comidas, inclusive) na véspera da partida do imperador, demore semanas para acontecer, ou será que ir do Rio de Janeiro ao Recôncavo demorou somente algumas horas?

OK, salvo se continuarem na trama como fantasmas, o que eu duvido, perdemos duas personagens importantes da Pequena África, duas lideranças abolicionistas, que agiam ativamente para levar escravizados para os quilombos.  O que será colocado no lugar?  Chegarão novas personagens negras?  Gente importante para ocupar o vazio?  Gebo será adotado por Dom Olú e Cândida e ele será o Dom Obá histórico, ou seu similar novelesco?  De qualquer forma, com tantas personagens malas e/ou inúteis na trama, porque desfalcar exatamente o núcleo negro da novela.  Pois é...

Os dois capítulos tiveram muito de Licurgo e Germana e seu núcleo, mas eu pulo todas as cenas, só assisti a que tinha Lupita.  Se ela for morar com eles, terei que parar para ver Roberta Rodrigues atuando.  Falando do outro núcleo cômico, mais uma vez tivemos cenas constrangedoras dos caipiras Lota e João Batista.  como pontuei em uma micro-resenha no Instagram, nunca que pai e mãe investiriam em fazer um filho doutor para se desfazer dele como fazem com Nélio.  Mas os autores acham engraçado.  Arrumaram uma noiva para o rapaz.  A atriz, gorda e bigoduda, é apresentada como feia, sexualmente indesejável.

Os padrões de beleza da época eram outros, mas a novela investe em piadinhas gordofóbicas e um tanto levianas.  Primeiro, João Batista queria comprar Lupita para usá-la como escrava de cama, mesa e lavoura.  A esposa o embarreirou e disse para levar "a gordinha", porque ela não despertaria a luxúria do dono.  Agora, a noiva gorda de Nélio também é apresentada como indesejável e feia.  Aliás, João Batista continua desejando Lupita, sonha com ela, mas isso é apresentado como humorístico.  A população brasileira foi construída a partir da violência sexual, mas, não, vamos rir disso, ou sequer colocar uma voz para condenar de forma séria a prática.

No Recôncavo, tivemos boas cenas entre Tonico, porque é uma das melhores personagens da novela, Eudoro, Dolores e os imperadores.  D. Pedro apontou arma para Tonico para colocá-lo em situação desconfortável, já o vilão levou os imperadores para o meio da floresta e se perderam. O capítulo de sábado trouxe de volta Piatã e Jacira, indígenas da novela Novo Mundo, que salvaram o grupo, tomaram cauim, bebida alcoólica a base de mandioca e com potencial alucinógeno, e tiveram visões que usaram cenas reais de destruição ambiental.  Pode parecer banal, mas a novela ajuda a educar.  Poderiam ter puxado algum comentário sobre as ideias de José Bonifácio sobre uso racional do meio ambiente, mas, enfim, não posso esperar muito.

Já Tonico, ao beber cauim, teve uma visão megalomaníaca que deu vasão aos seus desejos ocultos.  Ele quer o trono, quer matar o imperador.  Será que vão colocá-lo se associando a Solano Lopez?  Enfim, a novela pode inventar o que quiser, desde que não ofenda muito a inteligência da audiência e não deseduque.  E, não, colocar Pedro II na cama com a esposa depois de muito tempo não é um problema, mas reduzir o núcleo negro, fazer piada com estupro de escravizadas ou disseminar gordofobia, transformar uma menina negra em vilã etc.  é, sim.  É isso.  Não tenho muito mais a escrever, não.

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