domingo, 21 de novembro de 2021

Comentando as personagens negras de Nos Tempos do Imperador no Dia da Consciência Negra

Ontem, foi o Dia da Consciência Negra, preciso finalmente escrever outro texto sobre Nos Tempos do Imperador.  Estou devendo faz tempo e o último que redigi foi sobre Lupita, a escravizada senhora de escravos, e todos os que comecei depois não conclui.  A primeira novela inédita na Globo e gravada totalmente durante a pandemia a estrear destaca-se por ter um elenco negro grande para o padrão das novelas da Globo e com certo protagonismo. Ressalto isso, porque está para estrear a nova novela das sete da emissora, ela tem quatro protagonistas, dois homens e duas mulheres, todos brancos. Diversidade ZERO, porque somos um país branco.  Nesse aspecto, da representatividade quantitativa, Nos Tempos do Imperador se destaca, quando vamos, no entanto, para a representatividade qualitativa, a coisa degringola, seja porque falta talento e/ou experiência e/ou conhecimento histórico dos autores para escrever boas tramas e personagens, seja porque o destaque maior vai para o elenco branco do folhetim.  

Vou citar um exemplo ilustrativo, porque pretendo escrever sobre isso em outro texto e desenvolver mais algumas questões ao longo deste.  Quais são os casais que mais atraem a atenção na trama?  Nélio  (João Pedro Zappa) e Dolores  (Daphne Bozaski) e Leopoldina (Bruna Griphao) e Augusto (Gil Coelho).  E atraem por mérito dos atores e atrizes envolvidos e do texto que os favorece.  Qual deveria ser o casal principal da trama?  Pilar (Gabriela Medvedovski) e Samuel (Michel Gomes), uma branca rica e um negro escravizado com uma carta de alforria falsa, só que em nenhum momento a questão racial foi um empecilho para eles.  Há o grande vilão, claro, o Tonico de Alexandre Nero reina na trama, mas há uma antagonista infeliz, uma jovem negra, Zayla, defendida por uma atriz excelente, Heslaine Vieira, e que está sendo construída, ou como louca, ou como monstro, de uma forma tão abjeta que dói.  Ainda assim, a atriz comemora, e vendo pelo lado do destaque na trama e seu próprio desempenho deveria mesmo, que temos uma princesa negra na novela das seis.  Será que Zayla serve de modelo e orgulho para meninas e mulheres negras?  Mas volto a isso depois.

Enfim, o Dia da Consciência Negra é uma data simbólica importante e foi criada para lembrar a morte de Zumbi, líder de Palmares, o maior quilombo que já existiu no Brasil.  Um quilombo representava resistência contra a opressão em uma sociedade na qual os negros eram vistos como coisa ou, se livres, como inferiores.  Zumbi chegou a ser reconhecido como chefe pelas próprias autoridades brancas que com ele negociaram.  Mas se quiser saber mais sobre Palmares, recomendo o excelente documentário feito pelo canal Leitura ObrigaHistória, Legado Negado, e que foi lançado no dia da Consciência Negra de 2019.  Voltemos para a novela, não sei bem por onde começar.  Tinha planejado um texto sobre as três princesas da novela, Isabel, Leopoldina e Zayla, mas acredito que começar falando da filha de Mãe Cândida (Dani Ornellas)  e D. Olú  (Rogério Brito) neste texto é o caminho errado, fecharei o texto com ela, portanto.

Vamos lá, Nos Tempos do Imperador, como já escrevi antes, é uma novela política.  Ela fala do passado para falar do presente e isso se aplica tanto ao discurso crítico aos governantes e legisladores colocado na boca principalmente de D. Pedro, seja a respeito da questão racial.  As batidas policiais na Pequena África se prestam a falar da violência sofrida pelas comunidades negras ainda hoje no Brasil.  A acusação de roubo sofrida por Zayla durante a semana passada ecoa as muitas acusações por mero racismo e prisões sem grandes evidências impostas mulheres negras e, principalmente, homens negros em nossos dias.  Estou acompanhando um caso particularmente escandaloso nesses últimos dias, aliás.  Homem tem seu carro roubado, o veículo é usado em um roubo, é apreendido pela polícia, há pertences seus no veículo, uma foto 3X4, e ele é apontado como o ladrão, mesmo que a descrição do criminoso não bata com a dele.  Está preso, não conseguiu ainda habeas corpus.  Agora, quando Nos Tempos do Imperador lida com com o material histórico, a novela patina e muito.  

Começamos a novela em 1856, quando a escravidão ainda era uma instituição sólida em nosso país, mas o discurso abolicionista já aparece forte, com o salto para 1864, a coisa se torna ainda mais evidente.  Mas eis que precisamos mostrar o quanto o vilão é malvado e colocam Tonico propondo o reestabelecimento do tráfico negreiro.  Ora, o tráfico atlântico tinha sido banido e a entrada de escravizados no país proibida em 1850.  Nunca seria possível reestabelecer regularmente a prática mais de uma década depois, além disso, haveria guerra com a Inglaterra, para dizer o mínimo, e ela não seria ganha por nós, como aconteceu na novela com a Questão Christie.

Mesmo assim, a escravidão poderia permanecer por muito tempo ainda e o próprio D. Pedro II fez os cálculos de quanto tempo demoraria para a escravidão terminar por si mesma no país contando somente com as leis que tinham sido aprovadas antes da Lei Áurea, entraríamos o século XX.[1]  O movimento abolicionista não era tão articulado no país antes da Guerra do Paraguai (1864-1870), um verdadeiro divisor de águas em relação à questão. Os autores escolheram muito mal o período em que colocaram a sua trama.

Fosse somente uma problema de anacronismo, até estaríamos bem, é ficção, não é mesmo?  Só que querendo fazer o bem (*quero crer nisso*) os autores já meteram os pés pelas mãos várias vezes.  Começando pela formação de um casal interracial, os protagonistas Pilar e Samuel, que pouco obstáculo tiveram por serem ela branca e ele negro.  Casamentos assim aconteciam, mas havia sempre o estigma, ainda mais em uma situação na qual as hierarquias eram invertidas.  Homens brancos se apropriarem de mulheres negras representava a manutenção da ordem, mesmo que alguns pudessem torcer o nariz, o inverso, não.  Pilar e Samuel enfrentam uma série de obstáculos, nenhum deles, no entanto, está ligado à questão racial.  Escrevi isso quando comentei a questão dos negros em Éramos Seis, que se não querem discutir uma coisa, não inventem de colocar a questão em pauta.

E foi através do casal de protagonistas que aconteceu a constrangedora cena que acusava racismo reverso em uma sociedade que era escravocrata e na qual os negros e negras viviam em situação de subordinação e exclusão.  Sim, mesmo os ricos enfrentavam obstáculos e exceções são exceções e só servem para reforçar a regra.  Aliás, ontem colocaram para circular um texto falando de um texto sobre o apagamento de certas trajetórias negras e mostrando as raízes negras da Baronesa de Loreto, amiga íntima e dama da Princesa Isabel.  Ela era chamada de "morena".  O que o texto não se pergunta  é se ela se via como negra, porque a autoidentificação é muito importante nesses casos. Gente mestiça muitas vezes se via como branca, era embranquecida por sua riqueza (*pagavam por isso também, como foi o caso dos filhos de Chica da Silva*) e desfilava pela vida sem ser incomodada em nosso país, salvo por alguns comentários que poderiam escorregar da boca de alguém mais distraído.  

Enfim,  a cena de Samuel apontando o racismo dos negros, porque tinham que colocar a infâmia na boca de um negro, ou não teria efeito, viraria chacota, pegou mal.  Para acalmar os ânimos, os autores brancos da trama,  Thereza Falcão e Alessandro Marson, mais ela, na verdade, se desculparam e explicaram que as tais cenas tinham sido escritas muito tempo atrás (2018) e que eles não contavam com assessoria histórica, ou algo do gênero.  Bem, racismo reverso já era absurdo muito antes de 2018, mas me chocou saber que a Globo, antes tão zelosa nesse quesito, não tivesse contratado um especialista para dar apoio aos autores.  Ou será que os autores recusaram?

Mesmo com a contratação de um consultor e a revisão de algumas cenas, as coisas não melhoraram, não.  Lupita (Roberta Rodrigues), e eu gosto muito da personagem ainda assim, foi promovida à escrava dona de escravas e teve sua relação abusiva com seu perverso senhor, o agora delegado Borges (Danilo Dal Farra), apagada.  Mesmo que ela tivesse escravizadas suas (*vejam o texto que fiz sobre isso e que já foi linkado*), sendo escravizada ela mesma, seu senhor poderia lhe tirar tudo, e ela deveria dar-lhe parte de seus ganhos SEMPRE. Nada mais nesse sentido é mostrado na novela e Lupita parece não ter mais um senhor e ainda se mostra uma opositora da abolição.  Isso nem seria de todo um escândalo, e recomendo a live "Sinhás Pretas no Brasil escravista em debate" da ANPUH (Associação Nacional de História), mas esquecerem que Lupita estava presa à Borges é um absurdo, porque na primeira fase da novela a situação era uma das suas fontes de sofrimento.

Já o núcleo da Pequena África perdeu muita relevância na segunda fase da trama, no início da novela, mesmo apartado do mundo dos brancos, era um local de sociabilidades e com personagens que, aparentemente, tinham tramas que eram somente suas. Eu tinha antecipado que essa diminuição da Pequena África na história parecia ser o plano depois do assassinato dos pais de Guebo (Maicon Rodrigues) e é o que ocorreu, pelo menos é assim que vejo.  D. Olú aparece muito pouco.  Mãe Cândida tem mais cenas, mas são sempre pontinhas atreladas a outras personagens.  Eles não têm uma história própria, a importância de D. Olú como chefe da comunidade aparece cada vez menos na trama.  Já Mãe Cândida, sacerdotisa poderosa, passou sabe-se lá quantos capítulos sem manifestar a visão, que poderia ter evitado uma série de tragédias, em especial, as envolvendo as armações de sua filha.  Eu particularmente detesto quando os autores, e não estou falando de novelas especificamente, criam um poder para usá-lo quando convier aos seus interesses e, não, de forma consistente dentro da trama.  

Mãe Cândida, que manifestara a visão pela última vez quando vira os pais de Guebo mortos, de repente voltou exibir seus poderes de forma frenética.  Motivos não foram dados para isso.  Enfim, Dani Ornellas está excelente no seu papel, nesta última semana tivemos o calvário de Zayla, ela brilhou em todas as suas cenas.  O mesmo digo sobre Rogério Brito, mas ele tem tido muitas poucas chances para fazer algo relevante na segunda fase da novela e os autores optaram por colocá-lo virando as costas para a filha quando ela mais precisava dele.  O que vai ser agora?  Com um D. Pedro II (Selton Mello) super egoísta, vão tentar jogar nas costas de uma personagem negra o título de pior pai e marido da novela?

Falando em Guebo, agora, ele e seu companheiro Jamil (Blaise Musipere), que está desaparecido esses dias, integram o grupo dos guerreiros, cujo objetivo óbvio é mostrar o protagonismo dos negros em ações ligadas à abolição.  No entanto, o tom em relação a eles, que usam da força (*ainda que não tenham matado ninguém*) para obter seus objetivos é sempre crítico. Guebo não confia nos brancos e vê com maus olhos outras estratégias abolicionistas, como comprar alforrias, algo que era feito na época não somente por brancos, mas, também, por negros e negras. Por um lado, a novela faz questão de enfatizar que o imperador era defensor da causa (*com mais paixão do que o verdadeiro Pedro II era*), mas estava de mãos atadas, porque era cumpridor das leis, enquanto faz uma crítica constante aos jovens negros que pegam em armas para tentar resolver os problemas.

De todo o elenco da novela, considero Maicon Rodrigues um dos destaques.  O ator, além de muito bonito, tem defendido bem a personagem que, como já sinalizei, é pintada como alguém que não tem tanto juízo e carrega muitos (pre)conceitos, quando eu preferiria pensar em traumas.  Acredito mesmo que ele possa passar por alguma transformação que o faça abandonar a "luta armada" em prol de ações dentro da lei.  Talvez, uma das funções de Luiz Gama na novela seja inspirá-lo, além do óbvio que eu imagino que seja salvar Samuel de Tonico.  Agora, fato é que os atores forçaram a história de transformar Guebo em filho adotivo de Samuel, alguém com quem ele não tinha vínculos afetivos fortes, ou mesmo convivência.  

O problema é que continuam insistindo nisso até agora, quando, na verdade, D. Olú, que era muito próximo do menino, além de ser o chefe da Pequena África, é que deveria ter assumido o garoto.  É lamentável que os autores tenham optado por esse caminho, que imagino que tenha a ver com uma possível disputa por Zayla que foi abortada, Samuel poderia fazer as vezes de irmão mais velho de Guebo e estaria muito bom, até enfatizando que o protagonista, porque oficialmente ele é, estaria tentando fazer pelo garoto o que não conseguira por sua irmã.  Aliás, Mariana deve aparecer viva em breve, imagino.

Falando em Samuel, infelizmente,  ela decepciona muito como protagonista, porque os autores, que optaram por colocar um negro puxando a história, não sabem o que fazer com ele.  Samuel esteve com os malês por anos, mas não é muçulmano.  Ele tornou-se engenheiro com o apoio de D. Pedro inspirado no caso dos irmãos Rebouças, no entanto, as personagens históricas eram nascidos livres, pertenciam a pequena classe média negra urbana que se desenvolveu durante o 2º Império, Samuel tem uma carta de alforria falsa.  Ao longo dessa segunda fase, tivemos várias situações de racismo protagonizadas por Samuel, todas elas, salvo uma ou duas, relacionadas ao mundo do trabalho.  

Não sei, no entanto, se as cenas conseguem causar o impacto na audiência, porque elas não me parecem orgânicas, mas enxertos, talvez filmados depois para fazer correções como no caso do racismo reverso, e para  que façam as pontes com os nossos dias.  O fato é que Samuel não é uma personagem forte, carismática como Guebo, por exemplo.  Ele parece girar em torno de personagens brancas, a Barral (Mariana Ximenes), Pilar, D, Pedro, agora, Mauá (Charles Fricks), sem que sua história seja realmente relevante.  Ele não voltou, por exemplo, a falar da irmã "morta".  E  me deu nervoso a forma leviana como os autores colocaram Samuel indo ao Recôncavo como engenheiro, como se nada fosse, e podendo encontrar alguém que lembrasse dele, que pudesse apontá-lo como escravizado e assassino.  E até encontrou, mas o coronel, que fora seu DONO tinha memória fraca e, bem, todos os negros são iguais, não é mesmo?  Ainda que esse tipo de ideia fosse acionada para discutir falsas acusações de crime, mas, enfim... 

Já no embalo do Dia da Consciência Negra, o capítulo de sexta-feira trouxe a marcha das Camélias, a sociedade abolicionista fundada pela Princesa Isabel (Giulia Gayoso) e pela Condessa de Barral.  Tivemos o protagonismo branco assegurado o tempo inteiro.  Até a imperatriz falou sobre a imigração de italianos e a importância do trabalho assalariado, os autores, no entanto, escorregaram de novo.  Primeiro, a imigração italiana só se tornaria vivível muito tempo depois, especialmente, a partir dos anos 1880, antes de 1870, ela era inexistente como fenômeno de massa.  Tito Lívio Zambeccari, Giusepe Garibaldi, Luigi Rosseti e Giovanni Battista, talvez mesmo o Nino (Raffaele Casuccio) da novela, não vieram parar em nossas terras como imigrantes, mas perseguidos políticos que lutavam pela liberdade (*na opinião deles*) onde quer que estivessem.  Segundo, a vinda de europeus para o Brasil atendia a critérios racistas que visavam o branqueamento do país.  Terceiro, a Lei de Terras de 1850, que se seguiu à proibição do tráfico negreiro, teve como um dos objetivos dificultar ao máximo a aquisição de terras pelos imigrantes (*que estavam previstos*) e libertos garantindo tanto a manutenção do latifúndio, quanto a mão de obra barata, seja ela branca, ou negra.

Eu vi as pessoas animadas comentando a sequência da marcha, a adesão do imperador e da imperatriz (*que negaram, obviamente*), o discurso de Justina (Cinnara Leal)"Vejam que não foi a Barral que discursou, ou Isabel, foi uma mulher negra."  Com todo o respeito que Cinnara Leal, porque ela está muito bem no papel que lhe deram e, talvez, desempenhe alguma função maior a depender de para onde caminhe o drama de Samuel, o discurso não impactou.  "Somos seres humanos" era o centro de tudo o que ela falou, pode ter emocionado alguns, mas me pareceu lugar comum.  Talvez o objetivo fosse tentar ecoar o discurso de Sojourner Truth (1797-1883), "Ain't I a Woman" (*Eu não sou uma mulher?*), mas faltou força.  Da mesma maneira que a visita de Isabel e de Gastão, e como o Conde D'Eu (Daniel Torres) está sendo esculachado nessa novela, à Pequena África e toda a aula que Guebo deu para os dois serviu menos para as personagens negras e mais para os brancos envolvidos.  

A cereja do bolo foi Tonico mandando Bernardinho (Gabriel Fuentes), ele mesmo um mestiço que se vê como branco e que, aliás, não é mais lembrado que é "escurinho" faz muitos capítulos, assediar a princesa Leopoldina.  Tonico queria acabar com a manifestação abolicionista e conseguiu, porque a atenção se voltou para a cena horrorosa e o fato de não terem deixado Augusto embolachar Bernadinho pelo abuso.  E vejam bem, alguém do partido conservador, José de Alencar, talvez, poderia ter tido uma fala para lembrar que a mulher ofendida era branca, princesa e, logo, não era como as mulheres (*negras, pardas, pobres*) que Bernardinho podia assediar sem grande temor.  E acabou o protagonismo, se é que ele existiu, dos negros nessa manifestação liderada por brancos, porque o foco foi para Leopoldina, Augusto, o Imperador, Barral, Tonico, enfim, nem Bernardinho foi lembrado e ele poderia até ter sido preso. 

E chegamos em Zayla.  E o que eu faço agora?  A personagem é defendida por duas atrizes muito boas,  na primeira fase, Alana Cabral, agora, Heslaine Vieira.  Quando ela aparece menina, ela se apaixona perdidamente por Samuel e jura que um dia ele será dela.  Em seu confronto com Pilar, ela assusta a moça adulta pela veemência em afirmar que ele era o seu ideal de vida, assim como o da mocinha era ser médica.  Trata-se do dispositivo amoroso na sua essência, a exacerbação do amor romântico e a redução das mulheres a girar em torno de um homem, de servi-lo de "ser dele" como na musiquinha de abertura do filme O Casamento do Meu Melhor Amigo.  

Quando olho para Zayla, lembro da personagem de Giulia Gam em uma das muitas novelas de Manuel Carlos que teve que procurar o MADA (Mulheres que Amam Demais).  Na verdade, a personagem, se não me lembro era borderline e o grupo entrou na trama como um dos merchandisings sociais que o autor sempre aciona.  Segundo o site Tua Saúde, "A Síndrome de Borderline, também chamada de transtorno de personalidade limítrofe, é caracterizada pelas mudanças súbitas de humor, medo de ser abandonado pelos amigos e comportamentos impulsivos, como gastar dinheiro descontroladamente ou comer compulsivamente, por exemplo."  Vejam que talvez Zayla seja borderline, só que no Brasil dessa altura do século XIX, não havia MADA, remédios psiquiátricos, ou terapia.  Onde Zayla irá ser conduzida?  Morte, prisão, ou hospício?  A cena dela arrumando a casa de Samuel, enquanto ele estava em viagem, abraçando as roupas dele e se deitando em sua cama, sugeriu loucura.  Aliás, a forma como a câmera enquadra o rosto da atriz, os olhares dela, vão nessa linha, também.

O período em que Zayla estava chantageando Pilar me deu vontade de pular as cenas.  A coisa era tão obsessiva e cruel e, ao mesmo tempo, tão fácil de desmontar, que dava angústia.  Houve um momento em que pensei que Guebo iria descobrir a trama, afinal, ele é mais inteligente que Samuel, ou mesmo que Dolores poderia ajudar a irmã.  Qual nada!  Foram esticando até com a exigência de Zayla de que Pilar arrumasse outro.  Enfim, é um combo em cima de Zayla, ela é mulher, ressentida, capaz das piores maldades simplesmente para ficar com um homem e, se ele não aceitar de volta, ela o mata.  E se passam meses nesse jogo de gato e rato com Pilar.  Um desperdício.

Os autores decidiram eleger a menina como a vilã da novela.  Sim, há um vilão, Tonico, mas a posição de mulher má teve que ser entregue a uma moça negra.  O pior é que na segunda fase Zayla caminha para se tornar amante de Tonico, como ela é uma donzela, já que Samuel conseguiu evitar qualquer contato mais íntimo com ela antes do casamento, é ao vilão que ela entregará sua virgindade e vai entrar em um espiral destrutivo que, se a lógica imposta pelos autores prevalecer, deve ter minar no hospício.  Porque vejam bem, Zayla vai virar as costas para sua família (*o pai já lhe virou as costas*), amigos, raízes, se tornar amante de Tonico e enveredar lado-a-lado com o vilão maior da trama em em uma jornada que visa acabar com aqueles que considera seus inimigos e matar o objeto de seu desejo, Samuel.  

Ela não se tornará objeto sexual do vilão somente, mas ela vai dominá-lo?  Ela vai se mostrar cada vez mais doente, ou será pintada como má, porque vamos combinar que entregar o amado para a morte certa é um tipo de vingança muito cruel.  Coisa de gente em nenhum caráter, ou doente mesmo.  Agravante aí o fato dela ter crescido no meio de negros libertos, da luta contra a abolição e tendo conhecimento das dificuldades impostas ao seu povo, no sentido amplo da palavra.  Pensem comigo, ela é uma princesa modelo para as meninas e mulheres negras pro ser princesa? Em nenhum momento da trama, salvo em alguma fala tola de Zayla, o fato dela ser princesa e, portanto, herdeira tanto do lugar de sacerdotisa da mãe, quanto do posto do pai, foi enfatizado nessa segunda fase.  Zayla deveria ter pretendentes, deveria ter sólidos valores e ser muito orgulhosa, até, por que não?  Mas é isso que estão fazendo da personagem.

Esta semana, desmascarada e vendo Samuel e Pilar juntos, ela entrou em crise que foi agravada por estarem forçando a mudança do caráter da patroa da moça (Lorena da Silva).  De acolhedora, confidente, uma mulher que não discriminou Zayla por ser negra, a contratou e estimulou a criar, em uma mulher que racista e mesquinha.  Sim, tudo para culminar na Semana da Consciência Negra, tudo para provocar a virada da personagem.  Mas que tipo de virada?  O calvário de Zayla, que foi apoiada pela mãe, por Samuel e Guebo, foi o ponto alto da semana.  A moça foi acusada de roubo por Lota (Paula Cohen), que bem poderia ser a vilã da trama, e mesmo depois de encontrar o broche a "baroa" não quis esclarecer os fatos.  "Vão pensar que eu sou louca!".  Lupita fica chocada e poderia dar uma mãozinha para esclarecer as coisas, mas nada fez.  Fará?

A seguir foi afrontada Madame Lambert, que tomou como certo que a moça roubara e foi complacente, "podemos dizer que o broche caiu entre as almofadas", e terminou entrando em conflito com ela e sendo demitida.  Ao tentar levar sua tesoura, presente de Samuel, terminou entrando em luta corporal com Madame Lambert e a ferindo.  Presa, pode ser acusada de lesão corporal, ou tentativa de homicídio, pode ficar presa por alguns meses, ou para sempre.  A moça foi exposta em uma gaiola.  Sei que a ideia é ressaltar que isso poderia acontecer com os negros no passado e hoje.  Toda essa humilhação e crueldade gratuitas poderiam fazer com que Zayla entrasse em uma nova fase de redenção, mas os autores, sabe-se lá por quais motivos, parece que vão empurrá-la para o abismo.  Se assim for, espero que não a juntem com Guebo no final.

Enfim, não consigo ver nada de positivo de verdade na representação dos negros e negras na novela das seis.  Há momentos, mas uma boa história não é feita de cenas isoladas, ela precisa ir além.  A trama fugiu da objetificação das mulheres negras depois de fazer piada com isso, mas não as empoderou o suficiente, elas estão divididas igualmente do lado certo (Cândida, Justina) e do lado errado (Lupita e Zayla).  Claro, Lupita é dúbia e é uma personagem simpática, mas pelo que já escrevi acima, espero que tenha sido possível perceber que sua construção como personagem é complicada.  E Zayla está aí, uma atriz talentosa, uma possibilidade enorme de crescimento e transformada em um monstro que, fosse a novela mais popular, poderia fazer com que a atriz fosse atacada na rua.  Pensem que ela deve incomodar até a mocinha moral da novela, Dolores.

E nem comentei, mas criaram uma cena constrangedora esta semana com Germana (Vivianne Pasmanter) e Licurgo (Guilherme Piva) incorporando em Lupita e Vitória (Maria Clara Gueiros), que reproduziram os trejeitos das religiões afro quando existe uma incorporação para, logo em seguida, as entidades serem expulsas com borrifos de água benta.  Não sou a melhor pessoa para falar disso.  Eu só achei a cena ruim, mas vi gente reclamando feio.  E não adianta, logo em seguida, colocar Mãe Cândida fazendo um ritual com Justina.  A cena da incorporação não deveria estar lá e se Germana e Licurgo voltarem, espero que não, que seja como fantasmas mesmo.

Não sei se o texto ficou realmente interessante.  Eu queria tê-lo publicado ontem, mas não consegui.  Se tudo correr bem, publicarei a resenha do primeiro episódio de Ana Bolena, a série com Jodie Turner-Smith, uma triz negra, porque comecei a assisti-la ontem.  Enfim, espero escrever mais sobre Nos Tempos do Imperador, acabei perdendo o pique para as resenhas diárias e acabei deixando de falar de muitas coisas importantes.  É isso.  Bom domingo.

[1]Está em um dos diários do imperador: "A emancipação por lei, sem indenização, dos que tenham ou completarem 60 anos, pode-se dizer que dará só por si o resultado da emancipação do último escravo daqui a 60 anos, menos 13 ou 47, isto é, em 1931. Seria muito tarde, embora deva-se entender a que o término médio da vida do escravo é de menos de 39 anos, e, assim, o número de escravos não será grande nessa época." (REZZUTTI, Paulo. D. Pedro II (A história não contada) . Leya. Edição do Kindle.)

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