domingo, 21 de novembro de 2021

Comentando o primeiro capítulo de Ana Bolena (Inglaterra/2021): Marcante, mas com uma série de problemas

Ontem, descobri por acaso que a série do Channel 5 sobre Ana Bolena está disponível no Globoplay. Quase um ano atrás fiz um post sobre a série, porque ela se anunciou causando polêmica, a segunda esposa de Henrique VIII seria interpretada por uma atriz negra, Jodie Turner-Smith.  Este post, aliás, recebeu um comentário ontem, exatamente porque as pessoas começaram a assistir a série, ou querem marcar posição sobre ela.  Eu vi o primeiro capítulo e só não teria terminado de uma enfiada a série só, são três episódios somente, se não estivesse ocupada com outras coisas.  Como não quero deixar algumas coisas esfriarem na cabeça, eu vou fazer essa primeira resenha de primeiras impressões e, depois de ver o resto, concluo com mais um texto.  Começo dizendo o seguinte, independentemente das críticas que eu fizer, e vou fazer várias, acho que a série merece ser assistida, sim, a não ser, claro, que você esteja cansado de coisas relacionadas à dinastia Tudor.

Abrirei meu texto deixando bem clara a minha visão sobre Ana Bolena (c.1501-1536) e que ela tem como suas duas fontes principais a Antonia Fraser (As Seis Esposas de Henrique VIII) e a Susan Bordo (The Creation of Anne Boleyn: A New Look at England's Most Notorious Queen).  Ponto mais importante para mim, ela não foi uma vítima.  Ela, que era uma mulher muito culta, inteligente e que sabia jogar com os recursos que tinha, apostou tudo, no caso sua própria vida, e perdeu tudo, a não ser que consideremos o reinado de sua filha, Elizabeth, como uma vitória póstuma.  Ana Bolena chamou a atenção do rei com sua vivacidade, beleza, mas, também, por ser uma dama culta e com modos refinados.  Ela se negou a ser somente sua amante e, provavelmente, ele não teve uma relação sexual completa com ela até que sua posição como futura rainha estivesse assegurada.  

Ana Bolena não queria ser amante, ela queria o lugar de Catarina de Aragão e, para isso, ela não poupou esforços e não foi nem um pouco piedosa com a primeira esposa do rei, ou com sua filha, Maria.  Eu digo, também, que sou time Catarina de Aragão nessa confusão toda e que tenho profunda admiração por ela. Ao subir, Ana levou consigo toda a família, quando caiu, sua desgraça respingou sobre todo o clã.  Aliás, ela não caiu sozinha, ela manchou a sua família e seu único irmão homem, George, Lord Rochford, foi executado, também.

Por outro lado, Bolena era uma protestante fervorosa e queria fazer a reforma avançar na Inglaterra.  Comprometida com a causa, mais uma vez, passou por cima de quem se colocou no caminho e falo em especial do Cardeal Fisher e de Thomas Morus.  Obviamente, ela não fez isso sozinha, ela contou com ajuda de mais de seu tio, Thomas Howard, Duque de Norfolk, e de Thomas Cromwell.  Estabelecido isso, não é possível construir uma Ana Bolena convincente transformando-a em coitadinha, mas, também, tenho horror a qualquer um que aceite como minimamente razoáveis as acusações que fizeram contra ela de bruxaria, adultério e incesto.  Por isso mesmo, ninguém nunca vai ver uma resenha minha de The Other Boleyn Girl, porque eu tenho horror ao livro e filmes que dele derivaram.

Muito bem, comecemos a análise do episódio 1 da série.  Achei muito interessante a escolha da roteirista (Eve Hedderwick Turner) e da diretora (Lynsey Miller), sim, é uma série feita por mulheres, de contarem somente os últimos 5 meses de vida da rainha.  Claro, esta é uma opção que exige que o público saiba quem são as personagens pelo menos em linhas gerais, ou que não se importem com isso. De qualquer forma, isso dá tempo para que os momento finais da rainha sejam destrinchados. Outra coisa, Jodie Turner-Smith não é a única negra do elenco, na verdade, trata-se de uma série que opta por ser "color blind", isto é, a etnia dos atore se atrizes não importa.  Há negros, latinos, brancos, orientais.  A filha de Henrique, Maria é interpretada por  Aoife Hinds, cuja mãe é vietnamita.  O pai, descobri pela série, é Ciarán Hinds, um ator que eu adoro.  

O que é importante explicar é que a polêmica sobre Ana Bolena ser negra não se aplica, porque as cores do elenco, assim como em Muito Barulho por Nada e Duas Rainhas, não importa.  Ninguém tem cor.  Por outro lado, obviamente os atores tem cor e isso conclama uma série de representações sociais e sentidos que estão no nosso imaginário.  E temos um problema, salvo por Maria, que não deve estar contada como vilã, todos os inimigos de Ana são brancos.  Cromwell (Kris Hitchen), que irá destruí-la, o rei (Mark Stanley), o duque de Norfolk (Barry Ward), tio da rainha, sua cunhada, Lady Rochford (Anna Brewster).  Todos.  Mesmo sendo "color blind", há uma linha clara traçada dentro do elenco. É como em certos filmes antigos hollywoodianos em que os atores norte-americanos eram escalados para serem os bonzinhos e os britânicos, os malvados. Gosto disso?  Não, não gosto, porque há momentos em que não consigo olhar para os atores e atrizes e lembrar que sua cor não importa.  

Começamos com Ana grávida de seu quarto filho com o rei, ela tivera Elizabeth e tivera duas outras perdas gestacionais.  Henrique e Ana estão dando uma belíssima festa, ambos usam amarelo, cor que simbolizava celebração e vitória.  Motivo?  Catarina de Aragão tinha morrido na véspera.  Agora, Ana se sentia segura como rainha e não sabia, ou não queria saber, que conselheiros de seu marido e o próprio (*na série ele parece inocente, vou esperar o próximo capítulo*) estão esperando o desenrolar de sua gravidez para decidir se ela continua como esposa do rei, ou não.  Aos olhos da Igreja Católica e de súditos que não reconhecem seu casamento como legítimo, Henrique é viúvo e pode se livrar de Ana, que não é princesa e nem tem parentes poderosos, quando e como quiser.  TIC-TOC TIC-TOC

A tensão marca o capítulo inteiro.  Ana tenta atirar uma de suas damas na cama do rei, afinal, sua gravidez pode dificultar o cumprimento de seus deveres, mas ele a recusa, porque já está de olho na recatada Jane Seymour (Lola Petticrew), uma mulher que é muito diferente de Ana e que ainda não aceitou ir para a cama com ele.  Ana fareja o perigo e fica indócil.  Ela é alertada por sua tia, Lady Shelton (Amanda Burton) que deveria ter mais cuidado com sua gravidez, afinal, tinha passado por duas perdas gestacionais, e que já não era tão jovem.  Sim, muita gente se equivoca em achar que Ana Bolena era uma adolescente quando caiu nas graças do rei, mas ela já era uma mulher madura.  Da mesma forma que Jane Seymour não era uma menina, também, afinal, ela morreu com 29 anos, em 1537, mas a série acerta com Ana e erra com a terceira esposa do rei, que é pintada como uma adolescente um tanto tímida, mas não tão inocente.

Há duas cenas muito boas neste capítulo, uma que é Ana recebendo do continente a primeira Bíblia em inglês.  Ela patrocinara a tradução e está genuinamente feliz de que todos possam ler a Bíblia em sua própria língua.  Esta era uma das principais bandeiras da reforma protestante e defendida por católicos como Erasmo de Roterdã.  Com a Contrarreforma, a Igreja Católica determina que a Bíblia precisa estar em latim, sem exceção.  Por isso, é uma provocação quando Ana chama Jane Seymour para que ela leia.  Era sabido que a moça, assim como tantos outros na corte de Henrique VIII, eram protestantes por conveniência.  O texto escolhido também é uma mensagem de Ana, ela sabe o que está acontecendo, o problema é que ela acha que tem o jogo em suas mãos e não tem mais.

A segunda cena interessantíssima envolve a cunhada de Ana, Lady Rochford.  Não sei se a ideia é pintá-la como tendo ciúme do carinho do marido pela irmã, ou tendo inveja pura mesmo, mas a cara da atriz diz "não confie nela".  É óbvia demais, aliás, porque há controvérsias sobre Lady Rochford ter sido parte do complô, ou simplesmente outra vítima dele, ao confirmar as denúncias forjadas por Cromwell.  Mas, enfim, ela chega com um presente do embaixador francês, um belo relógio.  Ana faz pouco caso e manda guardá-lo em seus aposentos.  Mais tarde, já no final do capítulo, o relógio toca para anunciar que Ana tem pouco tempo.  Seus dias de rainha estão no fim.  O uso do relógio foi bem engenhoso.  TIC-TOC TIC-TOC

Na série, Ana é mostrada como arrogante e com comportamentos um tanto suicidas.  Ela não parece disposta a ouvir nem inimigos, como Cromwell, nem aliados, como seu irmão, George (Paapa Essiedu).  Ela mais que ninguém sabia que seu futuro dependia da sua capacidade de dar um filho ao rei.  Logo, ela não iria colocar em risco o fruto de seu ventre com os esforços que faz nesse primeiro episódio. A sequência final, que não detalharei, é muito dramática e tem um grande desempenho da protagonista, também é desnecessária e absurda.  Ana está arriscando sua saúde e ela deveria se preocupar em recuperar-se e tentar atrair o rei para sua cama.  Ali, se a ideia era mostrar uma Ana forte na dor, a produção falhou absolutamente, porque o que eu vi foi uma mulher desesperada mesmo.

Além disso, Ana enfrenta Thomas Cromwell em uma cena que é uma discussão sobre a dissolução de mosteiros católicos e para onde irão seus bens.  Cromwell quer que tudo vá para os cofres do rei.  Ana, e eu não sabia disso, defendia que os recursos, ou pelo menos parte deles, fosse investidos em caridade e na educação dos pobres.  Poderia ser bondade, parte inclusive do seu projeto de reforma, ou um cálculo, porque, afinal, Catarina de Aragão era caridosa e amada.  Ana não conseguiu ocupar o espaço da primeira esposa de Henrique no coração do povo.

Cromwell e Ana discutem feio e ele a esnoba, aliás, não somente nesta cena, mas em todas.  O rei a escolheu por seu ventre, não por seu cérebro, ele lhe diz.  Agora, o que fica claro, trata-se de uma opção de roteiro, é que pintam Henrique como um fraco que é dominado simultaneamente por Cromwell e Ana, eles disputam entre si.  Olha, eu acho isso um erro muito, muito grande.  Henrique VII não era um rei fraco, era perigoso, vaidoso e capaz de crueldades.  Basta acompanhar a forma como ele tratou sua primeira esposa e a filha que teve com ela, ou aqueles que ousaram questionar o seu poder.  Mandou matar até amigos íntimos.

A escalação de Mark Stanley também é problemática, e demorei para lembrar de onde o conhecia, na verdade de dois lugares, Sanditon e a adaptação inglesa de Little Women, tem cara de bobo, jeito de bonzinho e é jovem demais para o papel.  Aliás, ele como Henrique parece uma reprise da sua escalação errada em Little Women. OK.  O que eu percebi e preciso colocar na resenha é que nas cenas de sexo de Ana com o rei, a dominante é ela.  Ana fica por cima dele e, na primeira transa dos dois, ela o agarra pelo cabelo, ela reclama da dor, ela o morde.  Pensei que a qualquer momento ela poderia amarrar o homem, ou sacar de um chicote.  Sério.

Mais tarde, quando a coisa já não está boa entre os dois (*já deveria estar no início do capítulo*), ele não quer manter relações sexuais com ela por causa do bebê, ela insiste e diz que há outras formas de se ter prazer.  É ela guia o marido.  Pensei que teríamos uma cena de sexo oral feito por ela nele, afinal, ela está correndo atrás do prejuízo, pois percebeu que pode ser descartada a qualquer momento se não tiver um filho homem, mas é o inverso. Não tenho nenhuma simpatia ou atração por Henrique VIII, mas não consigo imaginá-lo como um pastel, ou submisso. 

Uma Ana sedutora, que usasse de múltiplos recursos para ter a atenção do marido, eu compro, uma Ana sexualmente agressiva, não consigo.  Fora isso, colocam Ana beijando a jovem Jane Seymour para testar o seu apelo sexual.  O que se sugere, então, é que Ana tinha experiências anteriores com mulheres para ser capaz de avaliar.  Enfim, não sei se a ideia era mostrar que Ana era forte e empoderada, uma mulher de nossos dias no século XVI, mas o que acaba caracterizado em uma série como esta é que ela era uma mulher depravada.  Há papéis de gênero a considerar, Ana já era bem transgressora, não precisavam jogar mais nada sobre os seus ombros.  Fora isso, fonte nenhuma corroboraria esse tipo de ideia.  

Voltando para a relação de Ana com o rei, nesse momento, ela ia muito mal.  Não somente por ela não ter lhe dado o herdeiro esperado, mas porque ela discutia com ele, tinha ideias próprias sobre religião e política.  Para Henrique VIII, romper com a Igreja Católica, tornar-se chefe de uma igreja nacional, já era reforma o suficiente.  Para Ana, a coisa precisava ir além.  Henrique ouviu Ana Bolena a respeito de questões religiosas por algum tempo, mas, em 1536, ele já não estava mais disposto.  E uma coisa problemática logo no início do capítulo, é Ana Bolena brincando que Elizabeth daria uma ótima soberana.  

Olha, nunca que essa mulher iria fazer algo assim.  Henrique rompeu com a Igreja Católica, matou um monte de gente, arriscou uma guerra, não somente para transar com ela, mas porque acreditava que Ana seria capaz de lhe dar seu filho homem.  Ele tinha um bastardo, mas isso não era suficiente, ele precisava de um filho legítimo.  Esse tipo de cena não torna Ana Bolena mais inteligente, ou poderosa, porque a atriz tem uma presença impressionante em cena.  Cenas assim, ou a sequência final, que chegou a revisitar aquela cena conhecida do espartilho sendo apertado para além do razoável, rebaixam a personagem.

Pois bem, uma ideia que a série compra e que, claro, eu acho uma canoa furadíssima é que Henrique VIII tivesse mudado de personalidade depois de um acidente sério que sofreu em uma justa.  Ele machucou a perna, ferimento que nunca sarou e que acabou impedindo que ele mantivesse seu ritmo frenético de atividade física.  Por isso, ele, que comia muito e mal, como quase todo rico em sua época, acabou engordando bastante.  Só que ele bateu a cabeça, ficou em coma por mais de um dia, pensaram que ele iria morrer.  A série dá voz a essa ansiedade e coloca Ana ouvindo cortesãos comentando que precisavam chamar a princesa Maria para a corte, que haveria guerra civil e que iriam se livrar dela.

O fato é que cinco dias depois do acidente do marido, e o episódio não nos mostra quanto tempo se passou, Ana perdeu o filho que esperava.  Nesse período, ela também surpreendeu Henrique com Jane Seymour em seu colo.  Ele também tinha dado para a moça um colar com um relicário e um retrato seu.  Ana arranca a joia e agride Jane.  No capítulo, Henrique nada diz, mas algumas fontes relatam que ele teria se voltado para a esposa e dito que ela deveria suportar.  Sim, um rei tinha direito à amantes, na lógica do século XVI, o comportamento de Ana Bolena, a real e a da série é que estava errada.  O fato é que Henrique trata mal Ana depois do acidente, exceto na segunda cena de sexo dos dois.  Como Henrique aparece menos que outras personagens, é preciso esperar o próximo capítulo para saber que tipo de alteração ele vai dar com ela.

Concluindo, o figurino, que está longe se ser preciso, por exemplo, os "french hoods" são diademas, as damas usam seu cabelo solto e por aí vai, é até bonito, pelo menos os vestidos de Ana são e muito.  Além disso, a atriz é belíssima e elegante, tem porte de amazona, eu diria.  Agora, Jane Seymour, que quem fez as legendas do Globoplay teve a péssima ideia "traduzir" seu nome para Joana, tem roupas muito sem graças, desenxabidas, feias mesmo.  Vejam, ela era modesta, aliás, Ana Bolena, ao se tornar rainha, instituiu um código rígido de vestimenta para evitar que coisas que ela mesma fez (*para seduzir o rei*) pudessem se repetir com ela, mas deveria se vestir bem e na última moda.  A série ignora isso.  Mas o que se estabelece na tela é um contraste proposital.  Cores fortes e vibrantes para  a Ana Bolena de Turner-Smith e cores pastéis e apagadas para a jovem Jane Seymour, elas são opostos perfeitos.  

Uma das coisas legais de um elenco "color blind" é ver atores diversos usando roupas de época e possibilitando à audiência se imaginar dentro daquelas roupas e transitando por cenários que antes eram só para os brancos.  Trata-se de uma transgressão, ainda que eu continue compartilhando da ideia de que há muitas histórias de mulheres negras a serem contadas e que a vida e a morte de Ana Bolena já foi narrada várias vezes.  De qualquer forma, essa história de se imaginar em uma série de época mesmo não sendo branco inspirou a divertidíssima websérie Black Girl in a Big Dress.  Eu falei sobre ela no blog.

Espero assistir aos dois últimos episódios amanhã e fazer a resenha em seguida.  E peço, por gentileza, que quem estiver incomodado por questões racista com a escolha de elenco, guarde suas opiniões para si.  Se deixar comentários infelizes, eles não serão publicados.  Os problemas da série, na minha opinião, são bem outros.

1 pessoas comentaram:




Olá ! Quando soube desta serie, fiquei meio desanimada. Gosto da era Tudor mas acho que tem muitos filmes/séries sobre eles. Não que isso seja ruim , mas tem tantos outros assuntos que deveriam fazer filmes ! Que bom ler sua resenha para ter uma ideia do que se trata . E concordo com voce , não gosto do filme The Other Boleyn Girl e acho que a Catarina de Aragão foi uma grande mulher . Ana Luiza .





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