terça-feira, 18 de julho de 2023

E terminou Força de um Desejo: Meu Balanço da Novela

Semana passada, terminou Força de um Desejo, novela que eu estava acompanhando no Canal Viva.  Faz tempo que não comento sobre telenovelas, mas não é por ter parado de assistir, é preguiça e falta de tempo mesmo.  Só que, como ela terminou, preciso fazer um post de fechamento. Minha memória sobre Força de um Desejo, exibida entre 1999 e 2000, era de que a novela seria ruim.  Eu estava errada, no entanto, não é uma novela realmente boa.  Tem vários méritos, mas se esticou em demasia e tinha defeitos tão evidentes que é difícil relevar.  Vou dar um resumo inicial para situar a trama central para quem não conhece e seguirei comentando o que gostei, o que não gostei... Vai ficar grande, vai ser desorganizado.  Peço desculpas desde já.

Força de um Desejo, assinada por Gilberto Braga  (1945-2021) Alcides Nogueira, conta a  história do amor de Ester Delamare (Malu Mader), a mais famosa e bem sucedida cortesã da Corte imperial, e Inácio (Fábio Assunção), um jovem rico e sempre às turras com o pai, porque não se conforma com a forma como o Barão Sobral (Reginaldo Farias), um poderoso fazendeiro do café, trata sua mãe (Sônia Braga).  Helena foi infiel ao marido, com quem se casou contra sua vontade, uma única vez e ele a trata de forma cruel desde então. Logo no começo a história, chegam à Vila de Sant'Anna, no Vale do Paraíba, novos moradores, Higino Ventura (Paulo Betti), antigo morador do lugar e que construiu sua riqueza com seu próprio esforço, Bárbara (Denise Del Vecchio), sua esposa, e Alice (Lavínia Vlasak), a filha única.  

De cara, a jovem se apaixona perdidamente por Inácio e o irmão caçula do moço, Abelardo (Selton Mello), fica encantado por ela.  Higino Ventura é o antigo amor de Helena e ainda obcecado pela esposa do Barão.  Ele  sonha em tê-la de volta e destruir o pai de Inácio.  Depois de mais uma briga com o pai, Inácio sai de casa e, usando o sobrenome materno, conhece Ester no Rio de Janeiro.  Depois de alguma resistência por parte dela, os dois começam um tórrido romance, ela decide largar tudo e casar-se com ele, a quem julga ser um estudante pobre.  Helena, que sofria com a ausência do filho, seu único apoio, termina por cair enferma.  É caso sem solução e Inácio finalmente é chamado.  Ele jura que irá voltar para Ester.  Em casa, ele termina por fazer as pazes com o pai e compreender melhor os sentimentos e razões do patriarca.  Inclusive lhe é revelado que Abelardo é filho de Higino Ventura.

Durante sua estadia e o luto, a avó de Inácio, Idalina (Nathalia Timberg), descobre que ele está apaixonado por uma mulher que ela julga indigna dele.  A velha dama, que guarda muito rancor em relação a como o genro tratava sua filha, deseja que Inácio se case com Alice, ou outra mulher rica e de família importante.  Mesmo sem saber quem é a moça, ela consegue forjar uma carta e substituir a que o moço escrevera para Ester dizendo que viesse ter com ele e que se casariam com as bênçãos de seu pai.  Ester se sente traída e parte para a Europa, Inácio vai ao seu encontro e acaba se sentindo também abandonado pela amada, a quem julga leviana.  Ester volta, ela não esqueceu Inácio e quer vingança.  Quem também está na Corte é o Barão Sobral.  

Henrique Sobral conhece Ester, consegue sair do seu estado de culpa e decide ajudá-la a abandonar sua vingança, abrindo seu coração sobre como é terrível perder a vida odiando e se torturando.  Mesmo quando descobre o que ela faz na vida, é dona de uma casa de prostituição de luxo, se choca, mas não a abandona, ou julga.  Ester termina por aceitar o amor que lhe é oferecido e os dois se casam.  Sobral a leva para Sant'Anna, deseja lhe apresentar sua família.  Vem o choque, Inácio e Ester descobrem que terão que viver na mesma casa; até que se desfaz o mal-entendido, ele a despreza; depois que conseguem descobrir que foram enganados, não podem trair um homem a quem amam e respeitam.  

Depois de muita angústia e culpa, e bem mais tarde na trama, ambos descobrem que Sobral os está enganando sobre sua morte iminente para manter o filho e a esposa sob controle.  Há um embate, mas quando decidem fugir juntos, o barão é assassinado e ambos acabam se tornando suspeitos.    Esta morte, no entanto, não é a única da novela e outras personagens desconfiam que pode haver ligações entre casos que parecem isolados e o assassinato sangrento do Barão.

Fiz dois textos anteriores sobre Força de um Desejo (*aqui e aqui*) e parte do que vou escrever aqui está lá no primeiro texto já com outros links e fontes, como o dos livros  Autores - Histórias da Teledramaturgia e em A Seguir Cenas do Próximo Capítulo, não vou me repetir e só quero deixar de acréscimo o texto do site do Nilson Xavier, o Teledramaturgia falando dos bastidores da novela.  Enfim, Gilberto Braga foi convidado a escrever uma novela das seis para tentar alavancar o horário, ele sentiu-se rebaixado e não se esforçou muito.  E tudo isso ele disse em entrevista, revisitou Escrava Isaura, que ele odiava, mas que é a sua obra de maior sucesso aqui e no mundo, mesmo que sua obra-prima seja Vale Tudo, e criou a trama da escrava branca, Olívia (Cláudia Abreu).  

A moça era filha de pai branco e escrava de pele muito clara, assim como Isaura.  O pai lhe deu uma excelente educação, mas nunca a alforriou de verdade.  Com sua morte, Olívia cai nas garras de sua meia-irmã cruel e invejosa.  Fugindo de cidade em cidade e sonhando em escapar para a Europa, ela termina em  Sant'Anna, onde se apaixona pelo jovem médico Mariano (Marcelo Serrado) e acaba atraindo a atenção do vilão, depois da morte de Helena.  Ao longo da história, a personagem de Cláudia Abreu, que era tudo menos pura, inocente e vulnerável como a Isaura de Lucélia Santos, se torna co-protagonista da novela, interagindo muito com o vilão de Paulo Betti, que consegue comprá-la, e com a esposa deste, Bárbara.  

Minha memória sobre Olívia era a parte mais traiçoeira da minha imagem da novela, eu realmente não gostava dela, mas foi um grande trabalho de Cláudia Abreu.  Olívia é uma das personagens mais habilidosas de Força de um Desejo por necessidade de sobrevivência.  Ainda assim, continuo acreditando que em alguns momentos a trama forçou demais, esticando situações ridículas, e colocando Olívia e Mariano subestimando a inteligência do vilão, ainda assim, eles são um dos melhores casais da novela.  Com o passar dos capítulos, mesmo os momentos de humor quase pastelão se seguraram bem por um bom tempo, mas ficaram repetitivos.

Curiosamente, e para o bem, devo dizer, ainda que a violência de Higino contra Olívia tenha explodido quando este descobre o quanto ela o enganou, fingindo-se de donzela e apaixonada por ele, a parte das torturas não se desdobrou por vários capítulos.  Ainda assim, a sequência em que Higino, finalmente, porque ela o enrolou por dois anos, ou mais, sei lá (*falo da temporalidade daqui a pouco*), a estupra, foi muito violenta.  Força de um Desejo jamais seria exibida no horário das seis em nossos dias.  A quantidade de violência e situações sexuais a descredenciariam e ela seria vista como séria demais, já que parte do público parece convencido de que as novelas precisam ser inócuas.  E veja onde chegamos, temos no ar uma novela das seis na qual racismo não é um problema no Brasil dos anos 1930...

Mas a sinopse de Força de um Desejo nem era de Gilberto Braga, a ideia original era de Alcides Nogueira e a novela se baseia no livro A Mocidade de Trajano do Visconde de Taunay.  Não conheço o livro, ele não entra nos cânones escolares, na época que começou a novela, procurei e acho que não o encontrei, as edições de papel são bem caras, porque este livro não deve ter sido publicado faz tempo.  Há uma edição Kindle por 4 reais para kindle, mas olhei e achei a qualidade ruim, parece uma reprodução direta da edição do século XIX e eu devolvi.  Enfim, a graça é que Trajano (André Barros) no livro é um Sobral, mas na novela virou o neto do banqueiro da cidade (José Lewgoy), talvez por acharem o nome de pouco apelo, não o deram ao mocinho da trama.  

O fato é que Trajano é uma das minhas personagens favoritas na novela e um dos mais injustiçados da teledramaturgia brasileira.  Trajano é o amigo de todo mundo que tem importância na história, a típica personagem orelha, ele ouve os problemas alheios e não tem direito a uma história própria.  Só que ele não é passivo, ele é tão cheio de qualidades que é um desperdício colocá-lo em cena sempre para ouvir, ou ajudar um monte de gente a resolver os seus problemas.  Ele é inteligente, tem memória fotográfica, raciocínio rápido.  

Em certo momento, Juliana (Júlia Feldens) decidiu ensinar Abelardo a dançar para se aproximar dele.  Precisavam de alguém para tocar piano.  Lá estava o Trajano.   Se precisavam de alguém para ir em uma missão perigosa, lá ia ele.  Se era necessário torturar um dos vilões, sem problema (*e como tem cena de tortura nessa novela...*).  Além disso, ele era bonito, rico, bom neto e muito gentil com todo mundo.  E o que ele ganhou?  

Bem, ele é apaixonado por Juliana a novela inteira e ela só tem olhos para o pastel do Abelardo, porque, infelizmente, a personagem de Selton Mello fica andando em círculos durante toda a trama, quando parece que vai evoluir, ela se encolhe de novo, se apequena e volta aos velhos erros.  Eu realmente achei injusto com Trajano que não tivéssemos Juliana largando Abelardo, nem que seja pelo seu amor próprio, e aceitando os sentimentos do rapaz que foram estáveis desde o início da novela.  Assim, excesso de romantismo me enjoa, talvez, a Valéria adolescente pensasse diferente, mas com quase cinquenta anos essa história de amor eterno por quem não lhe dá valor é um negócio que me soa doentio.  

De qualquer forma, e Trajano salva a vida de Ester no final trazendo uma testemunha que pode absolvê-la de uma falsa acusação de assassinato, ou seja, ele foi fundamental do início ao desfecho da trama.  E eis que lhe arranjam um consolo: Mariana Ximenes.  A atriz, que se tornou namorada de André Barros na vida real, nem sei se já era quando da gravação da novela, aparece lindíssima no último episódio.  Custava terem introduzido a personagem antes, poucas cenas bastavam, para firmar algum sentimento entre os dois?  Foi tanta cena desnecessária nessas últimas semanas de trama, coisas criadas simplesmente, porque havia a ordem de esticar a novela, que dava para criar uma história para os dois.  Dava, mas não fizeram.

Enfim, mas meu primeiro grande problema com a novela é que a temporalidade. Sou historiadora e certas coisas me dão nos nervos.   Existe uma diferença entre novela/livro histórico e de época.  O primeiro tem que ter uma cronologia histórica precisa e alguma fidelidade ao período que busca retratar; o segundo, não precisa, deve, portanto, evitar marcações históricas que exijam maior fidelidade para poder voar à vontade  O problema é que Força de um Desejo não se decide.  No início da trama, a Guerra do Paraguai é citada, porque o noivo de Juliana, uma combinação feita quando ela era criança, está no conflito e morre lá.  Temos, portanto, uma datação, estamos entre 1864 e 1870.  Quando termina a novela, sabemos, porque se faz referência à Lei do Ventre Livre, que estamos em 1871.  Também perto do fim, somos informados que Ester e Sobral se casaram em 1865.  Temos dois marcos temporais precisos e um período mais ou menos demarcado.

Agora, pensem comigo, o país em guerra, a maior da nossa história, e não se fala nela salvo lá no começo.  O conflito terminou e não tivemos nenhuma palavra do Bartolomeu (Daniel Dantas), o jornalista tio de Juliana, sobre uma notícia tão importante.  Poderia ser coisa rápida.  Tanta cena repetitiva que daria para cortar!  Ao longo da trama, nenhuma palavra, também, sobre convocação ou alistamento de qualquer personagem.  É como se a guerra não fosse problema dos homens da trama.  Também nenhuma referência, de novo, poderia ser Bartolomeu, ou Jesus (Sérgio Menezes), o liberto que vira jornalista, sobre escravizados lutando na guerra para ganhar a liberdade.  E ninguém pense que estou pedindo que Força de um Desejo fosse sobre a guerra, bastava aquele esquema comum em novelas do Manoel Carlos, um dos boas vidas da trama chega, abre o jornal e comenta alguma coisa.  Morre ali, mas morre com dignidade.  

Mas a questão da escravidão é um dos calcanhares de Aquiles da novela inteira, fiz um post inteiro sobre isso, está linkado lá em cima.  Como eu pontuei no meu texto, havia duas novelas, a dos brancos, com seus dramas amorosos, financeiros e de vingança, e a dos negros, com seus sofrimentos e acomodados a eles.  Sim, a novela acusou quase que o tempo inteiro os escravizados de serem corresponsáveis pela sua condição, além de se apegar a um clichê recorrente e usado no cinema de Hollywood, que é a de separar os senhores de escravos entre bons e maus, como se isso fosse possível.

Durante toda a novela, foi reafirmado que os Sobral, o pai e os filhos, eram contra a escravidão.  Liberais.  Bem, liberal brasileiro no século XIX não era abolicionista, embora, a maioria dos abolicionistas estivesse nesse partido.  Criaram em vários momentos um grande drama para nos convencer a sentir pena dos pobres senhores de escravos que não não queriam ser. Sabe, as vítimas da escravidão, uma necessidade econômica, eram eles. Enquanto isso, os autores colocavam na boca dos próprios escravizados palavras de gratidão e a reiteração de que seus senhores precisavam deles.  Um abuso total!  

Luzia (Isabel Fillardis), que sempre esteve em posição vilanesca, foi recriminada mais de uma vez por reclamar de sua condição de escravizada.  "Ora, Luzia, quem vai trabalhar nessa fazenda?"  Uma verdadeira ingrata preguiçosa!  E como ela era má, as acusações tem impacto, afinal, as escravizadas boazinhas não reclamam, mas idolatram seus senhores e os defendem. Mesmo tão preocupados em dar tratamento humanos aos escravizados, os senhores não sabiam o que seu feitor, Clemente (Chico Díaz), o vilão da novela dos escravizados, fazia.  O Barão até disse uma vez que não podia abrir mão dele porque "Clemente tinha autoridade com os escravos".  O que isso significa?  Que ele tinha perfeita noção dos métodos usados por Clemente.

Volta e meia, os escravizados diziam que se Inácio estivesse na Ouro Verde, Clemente não os maltrataria.  Mas quando ele estava, as maldades rolavam soltas do mesmo jeito, porque o sinhozinho tinha mais com o que se preocupar.  Inácio até repreende Clemente já no final da trama dizendo que na sua fazenda não se usava o tronco.  Mas se não se usava, por qual motivo havia um tronco lá?  Quem deixou colocar?  Um?  E a culpa era jogada nos escravizados que silenciavam os maus-tratos e no feitor, como se uma fazenda como aquela não precisasse de um administrador.  Aliás, como os Sobral administravam mal seu patrimônio e eram roubados pelo feitor e por Idalina o tempo inteiro.  E eu realmente me espantava como Rosália (Chica Xavier), que ajudou a criar os patrões, tinha tão pouca capacidade de influenciá-los, mas foi quase todo o tempo assim.  

A culpa da escravidão era das vítimas, submissas e acomodadas demais, mas se reclamavam da sua condição, eram ingratas.  E foi assim até quase o final.  Quando Cristóvão (Alexandre Moreno) tenta fugir para o quilombo, é capturado e não é punido, Inácio e Abelardo meio que lhe jogam na cara que se fossem eles os escravizados, tentariam fugir sempre.  Falar é fácil.  "Ah, mas é que as pessoas não tinham reflexão sobre o tema naquela época!"  Quando a novela foi feita, essa abordagem da escravidão já era arcaica.  Fora que um dos temas mais explorados da historiografia brasileira deve ser a escravidão e a luta pela abolição.  Se houve workshop de moda, costumes da época e outras coisas para o elenco, deveria ter havido um pouco de preocupação com essas questões, também.

A Globo já tinha feito novelas melhores sobre escravidão, como Pacto de Sangue, isso dez anos antes.  A ideia de culpar os escravizados pela sua condição é covarde e negar-lhes, pelo menos até os derradeiros capítulos, a capacidade de reagir e se revoltar, é fruto de uma indiferença dos autores quanto ao tema.  Aliás, o sr. Gilberto Braga já tinha tomado na cabeça por causa dessa mesma incapacidade de colocar o racismo e a luta dos negros em outra novela sua, em 1994, quando a novela Pátria Minha virou alvo e ação dos movimentos negros e ele teve que fazer um remendo na trama. Escravo tem que sofrer, mas vamos livrar a cara dos nossos heróis culpando o feitor, quando este é somente a mão que açoita, ou o pênis que estupra.  Por outro lado, havia os maus senhores de escravos, mas esses eram todos do grupo dos vilões.  Idalina, Higino Ventura e seu capataz, Vitório (Antônio Grassi) e Alice, também

A novela se esmerou em mostrar torturas e não somente de escravizados, ela foi muito realista ao caracterizar a violência policial, algo recorrente na história e nosso país.  Aliás, nesse aspecto, nota dez para Força de um Desejo.  Enfim, já na reta final, Zelito (Nill Marcondes), uma coadjuvante muito importante ao longo de toda a novela, foi tão torturado que pensei que ele seria morto.  Ficou sendo maltratado durante vários capítulos para confessar algo que não fez; depois, sumiu por outros tantos episódios. Daí, Higino manda soltá-lo e ele some de novo. Zelito é citado no último capítulo, Inácio o comprou para alforriá-lo, porque temos a alforria geral na Ouro Verde, meio que igualando o final de Escrava Isaura, mas o ator não aparece.  Estranhei isso.  Alguma coisa aconteceu.

Outra questão complicada da novela é um elitismo absurdo que condena o vilão desde o início.  Ele é um self-made man, isso parece ofender os ricos e os pobres da novela.  Higino Ventura tem uma trajetória de sucesso, no início, não sabemos que ele cometeu vários crimes para subir na vida, mas fato é que ele se tornou um homem  poderoso trabalhando em uma sociedade em que o trabalho era visto como algo que desqualificava, coisa de escravizado, em que o mérito de um indivíduo era medido pela herança que recebia.  Só que pela lógica da própria trama, Higino poderia ser desprezado por muita gente, mas não pelos mocinhos liberais, ainda mais, porque isso não combinaria com o discurso moderno deles, especialmente, de Inácio.  

Higino deveria ser rebaixado por outros motivos, mas, desde o primeiro momento, suas origens pobres e o fato de ter trabalhado para enriquecer foram determinantes para que ele, uma espécie de Barão de Mauá (*papel que Paulo Betti interpretou no cinema*) do crime, fosse desprezado.  Complicado, porque nenhuma voz do lado dos bons se levantou a seu favor, ou, pelo menos, a favor desse espírito empreendedor que era tão caro aos britânicos e norte-americanos, mesmo para ser, mais tarde, confirmado o seu erro, porque, afinal, se tratava de um vilão.  E os vilões são o grande destaque da novela.  

Nathalia Timberg compôs a sua Idalina de forma magistral.  Ela tinha sentimentos, sem dúvida, mas um caráter tão torto que mesmo as pessoas que ela amava (a filha, os netos) poderiam ser sacrificados em seus esquemas, porque, se ela fosse vitoriosa, todos iriam lucrar no final.  Pelo menos, era assim que ela acreditava.  Creio que, mesmo em uma novela irregular, deve ter sido um dos melhores papéis da vida dela, pois, verdade seja dita, a qualidade do texto era excelente.  Outra que brilhou em sua capacidade de se transmutar, ir da vilania à simpatia, foi a Luzia de Isabel Fillardis.  A atriz foi muito competente mesmo presa a estereótipos complicados, porque Luzia será julgada desde o início por não somente usar o corpo para conseguir vantagens, algo que está na Rosa de Escrava Isaura, que lhe serviu de óbvio modelo, mas por efetivamente gostar de sexo.  O discurso da novela em relação à Luzia sempre foi moralista.  Ainda assim, graças e muito ao talento da atriz, foi uma grande personagem.  

Lavínia Vlasak fez uma sinhazinha detestável e com algumas camadas, ela poderia fazer o bem, mas era tão egoísta que não conseguia superar as suas limitações.  E não era tão inteligente quanto Idalina.  O drama do incesto que não era incesto com Abelardo teve seus momentos, mas não justifica que o rapaz se comportasse como um babaca por tanto tempo.  E não me conformo de Juliana ter ficado com ele.  Não me conformo, também, com aquele bebê Otavinho que não crescia nunca. De qualquer forma, quando a verdade, a de que Alice tinha sido colocada no lugar do filho que Bárbara perdeu no parto, foi revelada, foi muito interessante ver Higino reconhecer nela uma filha por afinidade de espírito e, não, por sangue.  Claro, era reta final da novela, poderia ser algo que se modificasse depois, mas toda a sequência da descoberta e a forma como Higino processa a novidade, foi muito boa.  Sangue não é tudo.

Agora, era uma delícia ver Alice montando como uma dama fazia no século XIX.  A atriz deve ter treinado bastante, porque em muitas produções, na maioria delas na verdade, colocam as atrizes montando como homens montavam, o que é muito inadequado.  E houve uma sequência muito boa em que ela, que precisava correr muito para resolver um problema, pede uma sela masculina, porque atravessada ela tinha medo de não ir tão rápido.  Idalina fica chocada, mas Alice segue com Abelardo para tentar salvar o sogro de mais uma das armações de seu pai.  Esses detalhes na novela faziam muita diferença. Falando em roupas, já que falei de cavalos e montaria, houve um cuidado muito grande com o figurino, mas ele, pelo menos para as personagens mais importantes, estava congelado nas décadas de  1850 e 1860.  Foi uma escolha, não cabe criticar, porque filmes de primeira linha, como Dracula de Bram Stocker, fazem isso, também.  Não entendeu?  O filme se passa em 1899, mas o figurino é da década de 1870-80, porque, bem, a figurinista certamente achava a Bustle Era visualmente mais interessante.  

Ester, Alice e Clara (Helena Fernandes), eventualmente, tinham roupas muito bonitas.  Fora isso, quando as pessoas estavam de luto, ele durava muitos capítulos.  Nas novelas e época dos últimos anos, às vezes, nem no enterro o elenco está e preto. Isso é errado e muito irritante. Em Força de um Desejo, gastou-se muito dinheiro com figurino, porque mesmo de luto, as atrizes principais tinham vários vestidos.  Agora, poderiam ter tido cuidado com os decotes de Ester, especialmente, no tribunal, porque algo que a novela não fez foi diferenciar roupas para o dia (*mais fechadas*) das que eram utilizadas à noite (*mais decotadas*), mas no julgamento, caberia um maior cuidado.  

E, claro, houve  aquela escolha horrível e colocar Olívia com um vestido que, na verdade, era o espartilho por fora da roupa.  Ela parece estar andando em roupas de baixo.  O vestido aparece lá no início da trama, quando ela chega em Sant'Anna, e ele volta no penúltimo e último capítulo.  Pensei que tinham jogado aquela roupa fora.  Aquilo era pavoroso, assim como houve momentos, poucos, verdade, no qual atrizes apareceram com o espartilho direto sobre a pele.  Isso não se faz, sempre havia uma chemise por baixo, porque, se não houvesse, a atriz iria se machucar.  Algo importante, os cabelos, no geral, as mulheres adultas estavam com penteados corretos, Olívia os prendia no começo, passou a usá-los soltos na sua fase escravizada doméstica, e voltou a prendê-los depois de casada.  Uma escolha curiosa.  

Já os homens, a maioria deveria estar usando barba, nem Inácio, nem Abelardo usavam.  Curiosamente, ao longo da novela, Bartolomeu e Mariano se barbearam, também.  Dificilmente um homem adulto abriria mão da barba naquele momento do século XIX, era uma marca de que se era adulto e homem.  De novo, escolhas curiosas, mas, muito provavelmente, pautadas por gostos contemporâneos, talvez, se a novela fosse hoje, mesmo os protagonistas usassem barba, porque ela voltou à moda.

Como não poderia deixar de ser, a novela tinha um núcleo de humor no qual se destacavam Louise Cardoso e Daniel Dantas, os dois muito competentes.  Daniel Dantas, no entanto, sempre me surpreende mais como vilão, mas acreditam que ele tem cara de bonzinho.  Paulo Betti e Cláudia Abreu poderiam, eventualmente, render algum humor.  Luzia era uma personagem cômica em muitos momentos, mas o maior destaque é para Denise Del Vecchio.  Bárbara, esposa de Higino, era realmente uma mulher sem classe e desastrada, ou ela fazia tudo isso como uma encenação para não perder o marido, que a julgava tonta, e para que ninguém descobrisse seus crimes?  Porque ela era a grande serial killer da novela e muita gente deve ter ficado surpresa quando seus crimes foram revelados.

Vendo o final, eu até sou capaz de imaginar que ela fingiu loucura para não terminar na forca, para ir para o manicômio.  O único problema com Bárbara envolvia Olívia.  Ela certamente sabia do interesse do marido pela escrava branca, ela considerava a moça como uma filha, sua simpatia parecia genuína.  Por qual motivo, então, ela não ajudou Olívia a fugir, mesmo sem que a moça soubesse?  Bárbara era muito inteligente, poderia resolver tudo sem que o marido descobrisse.  Ou por qual motivo, se ela efetivamente considerava a jovem uma ameaça, alguém que poderia lhe tirar o marido, não a matou, também?  De resto, Denise Del Vecchio estava soberba.  Aliás, ela é uma excelente atriz.

Vou concluir com o casal protagonista.  Malu Mader estava muito bem como Ester Delamare.  Atuando com toda a potência que sua mocinha não convencional exigia e sempre estava muito linda em um figurino inspirado na imperatriz Sissi. Agora, que tristeza era Inácio!  O texto repetia o tempo inteiro, como ele era capaz, másculo, bom, inteligente, forte, blá-blá-blá, especialmente, em oposição ao seu irmão, Abelardo.  Mas, vejam bem,  se o roteiro precisa insistir tanto é porque nada disso está realmente evidente.  Como senhor, ele parecia alheio ao sofrimento dos escravizados durante boa parte do tempo, e mesmo com todas as demonstrações de amor e fidelidade de Ester, ele ficava tendo ataques de ciúme. Mesmo não sendo burro para além da medida do exigido em qualquer telenovela, ele parecia muito imaturo. As partes românticas dos dois nunca me convenceram.  Eu preferia Ester com o Barão, porque Reginaldo Faria estava realmente excelente como esse sujeito que se arrepende dos erros e busca o amor novamente.  Mas eles não podiam ficar juntos, porque o amor verdadeiro era com o Inácio (*Bléh!*).  Eu preferia Ester até com o Conde Pedro Afonso (Marco Ricca), que era um sujeito bem mais divertido e interessante.

Agora, a forma como a novela normaliza em nome do amor um relacionamento absolutamente impróprio, o do enteado com a madrasta, é totalmente absurda. Fez-se um grande escândalo em relação ao suposto incesto entre Abelardo e Alice, que todos (*menos ela*) criam ser meios-irmãos, mas quando se torna público que Ester e Inácio eram, ou teriam sido, amantes, isso tem um efeito menor do que quando a protagonista teve seu passado de cortesã exposto. Vejam bem, século XIX, sociedade muito católica, a Bíblia proibindo mais de uma vez (*no Velho e no Novo Testamento*) que o filho se deite com a mulher de seu pai, Inácio é um homem casado e todo mundo aceita que os dois fiquem juntos.  Aliás, a normalização atingiu até Abelardo que, ao descobrir que não era irmão de Alice, me soltou que não tinha cometido pecado algum.  Fazer sexo com a esposa do irmão não era somente pecado aos olhos da sociedade, era crime, também, adultério.

Com tanto tempo para arrumar as coisas, 227 capítulos, os autores decidiram se atropelar em questões tão importantes.  Sim, Ester e Inácio deveriam, pela lógica da historia, terminar juntos no final, isso não se discute, mas precisariam partir da cidadezinha onde toda essa confusão ocorreu.  Deixavam Abelardo cuidando da fazenda e iam embora construir sua vida em outro lugar, onde ninguém soubesse esse rolo todo, teriam lá os seus filhos e seriam felizes, escapando de julgamentos morais.  Era o mínimo, porque aceitação de um arranjo desses por toda a boa sociedade é um negócio muito fora da casinha mesmo.

Acho que é isso.  A novela teve seus bons momentos, mas se esticou demais, criando situações repetitivas e desnecessárias, como Olívia fugindo do assédio de Higino, ou as mil armações do vilão para prejudicar o Barão Sobral (*e seus filhos*) e obrigá-lo a vender sua fazenda.  Além disso, houve saltos no tempo abruptos e a dificuldade em acompanhar a cronologia da trama.  Omissões, como não citar o fim da Guerra do Paraguai, foram outro problema grande.  A abordagem do tema da escravidão oscilou entre o ruim e o lamentável e não é problema da época, é elitismo e falta de consciência histórica dos autores mesmo.  E, muito provavelmente, deve ter havido alguma pressão na época, para que discussões sobre fuga e quilombo fossem enfiadas bem no final da trama. E eu perdi, no máximo, uns quatro capítulos.  Calhou de ser exatamente quando o tal quilombola aparece, isso, claro, se ele aparece.  O quilombo mesmo, nunca foi mostrado.

Eu entendo os motivos de Força de um Desejo não ter feito o tanto e sucesso que a Globo esperava.  No geral, talvez ela merecesse mais atenção do que recebeu, ao mesmo tempo, como foi uma produção muito bem cuidada e com grande elenco, ela acabou ficando na memória de muita gente como uma ótima novela, mas não foi não.  Aliás, o que me dava mais prazer era rever gente como Mario Lago, Claudio Corrêa e Castro, José Lewgoy, Chica Xavier, a própria Nathalia Timberg e Reginaldo Farias, que ainda estão bem vivos, atuando de forma tão competente.

3 pessoas comentaram:

Valéria, vc planeja ver Oppenheimer? gostaria de ver uma crítica de uma professora de História sobre esse filme

Não no cinema, Pedro. 3h10, eu não tenho ânimo para ir ao cinema longe de casa e arriscar pegar um engarrafamento depois.

Oi Valéria, eu queria saber se você planeja ver Barbie. Eu estou curioso sobre a sua opinião sobre o filme.

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