quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Comentando Infância Clandestina (Argentina, 2011)



Ontem assisti um filme que periga entrar fácil na minha lista de melhores do ano, Infância Clandestina. Dirigido por Benjamín Ávila e co-roteirizado pelo brasileiro Marcelo Müller, ele se baseia nas memórias do diretor e de tantas outras pessoas que foram crianças durante a violenta Ditadura Argentina (1976-1983). Isso dá ao filme a possibilidade de ser rotulado de “baseado em fatos reais”, sem que, efetivamente, se restrinja a um relato autobiográfico. Aliás, em todas as entrevistas que achei com Ávila e Müller, eles fazem questão de enfatizar que a idéia de um co-roteirista foi distanciar um pouco o filme da experiência do diretor, sem se desprender dela. Ávila viu a mãe pela última vez aos sete anos de idade em 1979, quando ela, uma guerrilheira do grupo dos Montoneros, retornou do exílio sonhando em participar da reorganização do movimento com o intuito de derrubar a ditadura. Ela engrossa desde então a lista dos desaparecidos. Mas vamos ao resumo do filme.

Fronteira Brasil-Argentina, 1979, o menino Juan (Teo Gutiérrez Romero) e sua irmã de menos de um ano atravessam para a Argentina com documentos falsos. O garoto, cujo nome se inspirava no do ditador Juan Domingo Perón (1895-1974), passa a se chamar Ernesto em homenagem ao líder guerrilheiro Ernesto Che Guevara (1928-1967). Recebido pelo tio Beto (Ernesto Alterio), o menino e sua irmã vão ao encontro dos pais em uma cidade do interior da Argentina. Lá, o menino frequentará a escola, fará amigos, encontrará o primeiro amor, mas tudo isso sob uma identidade que não é a sua e o perigo real de ver sua família se esfacelar, pois na sua casa é um aparelho onde funciona uma célula do grupo guerrilheiro dos Montoneros. Com muita delicadeza, vemos essa situação se desenrolar a partir do olhar de um garoto de 12 anos.


Infância Clandestina é um filme bonito, tocante e que não abre mão de se posicionar politicamente. Sem demonizar um lado ou outro, até porque o menino Ernesto/Juan sofre com as opções feitas pelos pais, ele dá nome aos grupos que tomam parte da história argentina. Peronistas e Anti-peronistas; Montoneros e Agentes da Ditadura; gente comum sem nenhuma filiação política e militantes; crianças e adultos. Não vi muitos filmes argentinos, mas o primeiro que assisti foi História Oficial, que trata do tema da infância clandestina e roubada. Mesmo sem ser especialista – estou longe disso, aliás – em História da Argentina, é impossível não ter ouvido falar ou lido sobre as Mães da Praça de Maio, que pediam que lhes entregassem seus filhos e filhas. Hoje, essas mães são avós e querem seus netos roubados pela Ditadura e dados em adoções tão clandestinas e manchadas com o sangue dos militantes. História Oficial deu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro para os argentinos. Infância Clandestina foi a indicação do país este ano. Não sei mesmo se está na seleção final para indicação, acho que o resultado sai hoje. Nosso candidato, O Palhaço, nem entrou no grupo do qual saem os indicados.

Depois de História Oficial, assisti alguns filmes argentinos, todos com o excelente Ricardo Darín. É até curioso não vê-lo em Infância Clandestina... Agora, uma bobagem que se tem escrito (*pegue qualquer resenha do filme ou matéria*) é a comparação entre o filme argentino e o brasileiro O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias. Daí vem aquela ladainha que os comentaristas brasileiros adoram que é dizer que Infância Roubada foi indicado por ter criancinha. Olha, não sei se a memória desse povo funciona, mas em 2010 os argentinos levaram o Oscar com O Segredo dos Seus Olhos (El Secreto de sus Ojos), que não tem velhinho, criancinha ou cachorro, nem Holocausto Judeu, nem nada do gênero, mas tem roteiro e direção primorosas somadas à excelentes atuações. Quem indica os filmes aqui no Brasil tem que parar de ficar fazendo cálculos idiotas e indicar quem merece, porque normalmente o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro é mais justo do que as premiações dos longas americanos. Mas voltemos às comparações com O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias...


Eu assisti O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias antes da fase de resenhar tudo para este blog e sabe o que senti a respeito do filme? Que se tratava de um material covarde, raso e que apelava para coisas bonitinhas e clichês. A São Paulo de O Ano não tinha racismo, parecia muito mais justa socialmente, a filiação política dos pais do menino nunca fica clara. Resumindo, a mesma linha que marcou O Que é Isso Companheiro?, acusado pela crítica norte americana de ser politicamente inócuo. Repito, não basta colocar criança e velhinho, é preciso coragem para indicar o filme certo, coisa que por aqui não fazem. Se tiver a chance, assista O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias e Infância Roubada e compare os dois. É goleada para os argentinos.

Voltando ao filme argentino, trata-se daquele tipo de história de amadurecimento (*coming of age*) em que uma criança é violentamente arrancada da infância. O menino Ernesto gosta de fazer tudo o que as outras crianças da sua idade fazem: brincar, dançar, comer doces, juntar-se com um bando de garotos para falar bobagens. Ao contrário de filmes que censuram a fala das crianças, em Infância Clandestina os meninos falam palavrões e há toda aquela animosidade de grupo que era e é estimulada entre garotos e garotas. O gênero é criado no social, essa aversão nào é natural. E aí entra um ponto importante do filme, Ernesto se apaixona pela irmã de um amigo e isso rende humanas, belas e engraçadas cenas. E o menino é valente, vai até a casa da menina convidá-la para sua festa de aniversário... Tio Beto, a melhor personagem adulta do filme, é o mentor do menino, instruindo-o em como agir de forma correta com as mulheres/meninas.


Beto dá bons conselhos ao sobrinho não somente no caso do namoro com María (Violeta Palukas), mas, também, em como se comportar em situações críticas. O menino se recusa a hastear a bandeira nacional, Beto é quem vai resolver o problema com a escola e o faz de forma muito sábia. Por que brigar por tão pouco? Por que colocar em risco toda a família? O menino entende. Da mesma forma, é tio Beto quem briga para que se faça uma festa de aniversário? Que raios de revolução é esta que não permite a alegria e que coloca as crianças em situação tão triste? Ser criança é brincar, rir, cantar, dançar, namorar... E não pensem que Beto não é um revolucionário de verdade, porque ele é. Mas há revolucionários de todos os tipos, os pais de Ernesto são bem diferentes...

E entramos em uma questão chave, é justo que os pais arrastem os filhos e filhas em suas aventuras? Revolução, trabalho missionário, tudo exige sacrifício enorme, mas o adulto opta por ele, a criança é arrastada. Em suas entrevistas, o diretor Benjamín Ávila diz não ter dúvida do amor de sua mãe por ele, mas parece não entender bem a ingenuidade que a fez arriscar os filhos no seu retorno à Argentina. A ingenuidade dos guerrilheiros, mesmo os muito mais organizados montoneros, sempre me desconcerta... Em Infância Clandestina, a avó de Ernesto, que tio Beto leva para visitar como presente de aniversário, propõe levar os netos, cuidar deles. A mãe do menino, a excelente Natalia Oreiro, vira uma leoa. Minha dúvida até então era se ela era uma montonera “de verdade” ou embarcara na do marido. Sim, os ideais eram dela, e ela não abriria mão dos filhos. A avó estava certa...


Enfim, considero um egoísmo muito grande sacrificar crianças em aventuras desse tipo. Pior é a contradição, os pais questionam o governo, querem derrubá-lo, pregam a revolução, mas do menino exigem obediência cega às suas ordens e uma adesão total aos objetivos do grupo de guerrilheiros. Isso implicava no caso de Ernesto abandonar a identidade falsa e tudo o que estava ligado a sua vida na pequena cidade: escola, amigos, e María... Já escrevi antes, mas o que torna Infância Clandestina um filme excelente é ser guiado pelo olhar da criança, ou do menino que está no limite entre a infância e a adolescência, mostrando seus medos, ansiedades, raivas, alegrias. Um pouco como Onde Vivem os Monstros, só que em um ambiente hostil e com adultos nem sempre compreensivos e que exigem demais de uma criança... Sobra o tio Beto, mas Infância Clandestina não tem final feliz...

Um dos pontos altos do filme é o uso do quadrinho. Em momentos de maior violência e tensão, deixamos de assistir um filme e passamos a ver uma graphic novel. E tudo é encadeado de forma bem interessante. Os desenhos mostram bem o horror, sem que, por conta disso, o filme se torna pesado demais. Há muito de sonho no filme. Ernesto sonha e imagina coisas, se perde em seus desejos. Sonha com María, sonha com o tio Beto, sonha... É uma forma de escapar da pressão. A fotografia do filme também acompanha os sentimentos da personagem, se tornando clara ou escura. Algumas imagens, como a exibição de ginástica rítmica, momento em que Ernesto vê María pela primeira vez, é pura poesia. E isso com o irmão da menina desejando que ela caia, porque, afinal, ele é uma chata. :D


O filme cumpre a Bechdel Rule. Tem várias personagens com nome, a começar por Carmem, interpretada pela braisleira Mayana Neiva, que cuidava das crianças no Brasil, passando pela mãe do menino (Christina ou Charo), pela avó (Amalia), pela professora (Zulma) e por María. O elenco é quase meio a meio e as mulheres têm papéis ativos e importantes no filme. A mãe de Ernesto em particular é uma personagem completa, ela é mãe e guerrilheira, terna e aguerrida, mas pouco compreensiva com a sua própria mãe e com seu filho em um momento de crise... Eu entendo o drama da mãe, o que é difícil de entender é como tantos militantes políticos (*e religiosos*) arrastaram suas crianças para situações extremas como essas... Enfim, a visão de História tradicional defendida pela Ditadura e que mostrava o europeu como portador da civilização, do progresso e da verdade, também está presente no filme, nas cenas na sala de aula e outros espaços escolares.  Só isso já renderia outro artigo.  

Só para terminar, Infância Clandestina não recebeu indicação ao Oscar. A lista saiu enquanto eu escrevia este texto. Outra coisa a comentar é que assisti ao filme com um amigo cego e especialista em História da América Latina. Foi ele que me falou do filme – que até a Veja teve que elogiar – e me chamou para ir assistir. Ter que “traduzir” o que estava em tela para ele, foi uma experiência curiosa. Ele entende razoavelmente o espanhol, desde que não falem correndo, mas todos os silêncios precisavam ser descritos. Isso me fez perder algumas coisas, mas, no geral, foi interessante. O que eu gostaria é que a áudio-descrição se tornasse obrigatória e houvesse suporte para deficientes visuais em todas as salas top. Assisti o filme no Museu da República, que deve ser um dos cinemas mais baratos do Rio de Janeiro. Recomendo a visita ao museu e ao cinema, o espaço é muito bom mesmo.

5 pessoas comentaram:

Ao ler a resenha, lembrei do relato de uma colega de trabalho sobre os avós maternos dela. O avô era médico e o casal morava no Vale do Jequitinhonha em MG (região bem pobre ainda hoje). O avô tinha um comportamento quase messiânico: era desprendido de valores materiais e costumava doar o que tivesse em casa para ajudar os pacientes - num caso extremo, minha colega contou que ele vendeu a casa onde ele e a esposa moravam para ajudar várias famílias com o dinheiro da venda.
Só que o casal teve vários filhos (comum na época) e ele faleceu pouco depois do nascimento do filho caçula, deixando a esposa e os filhos na penúria por vários anos.
Se por um lado a falta de consideração dele para com a própria família deixou todos numa situação muito difícil, por outro lado eles não foram deixados à própria sorte: a avó dela ganhou tempos depois uma casa para morar de um ex-paciente do marido que tinha algumas posses na região. Parece que tem um município na região hoje que leva o nome dele.
Lembrei dessa história porque minha colega foi bem enfática quando nos contou esse episódio: "eu concordo que vocação é uma coisa que não se escolhe, mas que tem uma vocação tão séria como a do meu avô não poderia constituir família".

sabe onde acho a legenda desse filme? Estou muito interessada em ver, mas ainda nao chegou nos cinemas aqui em Recife...

Ana, infelizmente não encontrei legendas, mas há um site que serve para tentar mapear. De repente, aparece: http://www.subtitleseeker.com/search/

ainda não encontrei, mas obrigada pela dica!

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