terça-feira, 7 de maio de 2013

Comentando O Sonho de Wadjda (Wadjda, 2012): Pioneirismo e Feminismo made in Arábia Saudita



Sábado fui assistir O Sonho de Wadjda e fiquei realmente feliz de ter esse filme pioneiro em pelo menos duas salas aqui em Brasília, espero que o pessoal valorize a oportunidade.    É difícil poupar elogios a uma produção que se destaca em tantos aspectos.  Wadjda é o primeiro filme de ficção totalmente filmado na Arábia Saudita, país dominado por uma leitura muito conservadora do Islã (*estou sendo boa*).  Não bastasse isso, a produção foi dirigida e roteirizada por uma mulher, Haifaa Al Mansour, que escolheu contar a história de uma menina e seu sonho.  Trata-se, também, de um filme feminista em sua abordagem da condição das mulheres na Arábia Saudita.  O filme é melhor do que eu esperava, muito bem narrado, e com personagens simpáticas, a começar pela menina protagonista, a jovem Waad Mohammed, Wadjda.  

O resumo da história é bem simples de fazer: Wadjda é uma menina de 11 anos que mora em um subúrbio de classe média em Ryad, capital da Arábia Saudita.  A garota é considerada uma “rebelde” pela diretora de sua escola, a Senhorita Hussa (Ahd Kamel), porque usa tênis e, não, os sapatos pretos sem graça do uniforme; por não usar o véu adequadamente; por vender pulseiras artesanais de times de futebol para as colegas... Para a arrogante diretora, Wadjda é um caso perdido.   Só que a menina não se importa muito com a opinião da Senhorita Hussa, pois todos os pensamentos da menina estão focados em como juntar 800 riads (*mais ou menos 429 reais*) para comprar uma bicicleta e poder apostar corrida com seu amigo Abdullah (Abdullrahman Algohani).  

Só que na Arábia Saudita, ou pelo menos na vizinhança de Wadjda, meninas não andam de bicicleta, pois não é decente, como a diretora faz questão de dizer, ou porque pode impedir que uma mulher tenha filhos, ou mesmo danificar a sua “virgindade”, como repete a mãe (Reem Abdullah) da garota.  Mas Wadjda não desiste e diz ao dono da loja que não venda sua bicicleta.  As esperanças da menina são alimentadas por uma competição na escola: quem mostrar mais competência nos conhecimentos e na recitação do Corão receberá um prêmio de 1000 riads.  Assim, Wadjda, que nunca se importou muito com as aulas de religião, mergulha de cabeça na possibilidade de conseguir a sua desejada bicicleta.

Em linhas gerais, o filme foca no sonho da menina e, a partir daí, aborda uma série de questões referentes à miserável (*sim, ricas ou pobres, as sauditas são cidadãs de segunda classe segundo a lei*) condição feminina no país.  A mãe de Wadjda, por exemplo, apesar de ter uma profissão (*é professora*), ser muito bonita e inteligente, vive atormentada pelas maquinações da sogra (*nunca mostrada, mas muito citada*), que quer obrigar o filho a tomar uma segunda esposa.  Afinal, ele precisa de um filho, um herdeiro.  Em uma das cenas mais tristes do filme, quando a mãe da menina já sabe que vai perder o marido, Wadjda está decorando a árvore genealógica da família e a mãe lhe diz secamente “Para quê isso? Você não está aí, só os homens podem fazer parte.”  A menina então escreve seu nome em um pedaço de papel e o prega com um alfinete, sem que ninguém veja, ao lado do nome do pai.  No dia seguinte, encontra o papel amassado sobre a mesa... Quem o retirou, a mãe ou o pai?  O marido, quase sempre ausente, parece complacente com a filha “rebelde”, assim como os pais de alguns desenhos da Disney, deixando para a mãe a função de repressora.  Elogia a menina, é amoroso com ela, a deixa jogar com seu PlayStation, mas é evidente que Wadjda não tem para ele o mesmo valor de um filho.  


Outro dos dramas que o filme enfoca é a questão do transporte para as mulheres.  Acredito que todo mundo que está lendo esta resenha saiba que as mulheres não podem dirigir na Arábia Saudita.  E que ninguém pense que isso é algo comum no mundo árabe-muçulmano, trata-se de uma peculiaridade do país.  Há movimentos que pedem o direito de dirigir, normalmente lideradas por mulheres de classe média-média e média-alta, afinal, as ricas e muito ricas podem ter seus motoristas particulares e dirigir em suas viagens pela Europa ou EUA.  Só que o filme em questão não fala dessa classe média endinheirada e elitizada, fala de gente que está um pouco ou muito abaixo.  A mãe de Wadjda e suas colegas professoras têm que se submeter a pegar uma lotação velha, sem ar condicionado, dirigida por um estrangeiro (*acredito que paquistanês*) grosseiro chamado Iqbal (Mohammed Zahir). Mesmo sendo bem remunerado, ele humilha a mãe da menina todos os dias.  É uma tortura ver as cenas, a mãe de Wadjda passa três horas viajando todos os dias.  

Não acredito que a mãe – ela não tem nome no filme, mas é interpretada pela atriz mais famosa do país (foto) – pudesse ter carro próprio, mas fiquei me perguntando se não haveria a possibilidade do transporte público naquele país.  Fui procurar e encontrei reclamações na internet (*como esta aqui*) de mulheres sauditas sobre isso.  Ônibus é só para os homens e, mesmo assim, os muito pobres.  Mulheres devem ter motoristas, pagar táxi ou pegar lotações.  E quem não pode?  Parece que tudo é feito para impedir a circulação das mulheres.  A mãe de Wadjda poderia trabalhar mais perto, pois o hospital está contratando atendentes.  Uma das suas amigas, Leila (Sara Aljaber), trocou o emprego na escola pelo hospital.  Só que a mãe de Wadjda considera o ambiente misto do hospital moralmente condenável e teme pelos ciúmes do marido.  No caso do hospital, ele oferece transporte para as funcionárias e com ar condicionado!  Algo que com a pesada vestimenta que as mulheres são obrigadas a usar em público, é mais do que essencial.


Em nenhum momento no filme Wadjda, essas restrições às mulheres são vendidas falaciosamente como uma escolha feminina, elas são imposições, são feitas por causa dos homens e para eles.  Wadjda, por exemplo, é mal vista pelas colegas, por achar absurdo ter que sair do pátio de sua escola, porque lá distante, em um telhado qualquer,  há homens trabalhando.  Mas a colega mais religiosa da turma, Salma, logo diz “Meninas decentes, entram!”.  Decência pautada pelo olhar masculino e pela expectativa de sua aprovação.  Todas saem do pátio, mas Wadjda dá de ombros e continua pulando sua amarelinha até que a diretora aparece... 

Boa parte da ação se passa em três ambientes: a casa da menina, onde se desenrola o drama do casamento de seus pais; a rua, no caminho da escola, quando Wadjda interage com seu amigo Abdullah; e a escola.  Bem, é raro termos filmes que foquem no ambiente escolar feminino e Wadjda contempla bastante esse aspecto.   É na escola que vemos o quanto a educação pública no país é arcaica e castra as meninas.   Toda a educação na Arábia Saudita é segregada, e Wadjda estuda em uma escola pública feminina.  Boa parte dos conteúdos giram em torno da religião e é na escola que temos a terceira personagem feminina mais expressiva do filme, a diretora, a Senhorita Hussa.  Uma das questões mais fundamentais para a manutenção se sistemas de opressão é que o oprimido contribua ativamente para que as estruturas sejam mantidas.  A diretora do colégio é uma dessas mulheres patriarcais que tem como função principal reprimir outras mulheres, garantindo o seu espaço de poder delegado pelos homens.  


Curiosamente, ao contrário dos estereótipos dos filmes ocidentais, a Senhorita Hussa é uma mulher jovem, bonita e elegante.  Vale registrar, que todas as professoras que aparecem em destaque são mulheres bonitas, com traços físicos e étnicos bem diversificados. É, aliás, a diretora quem emite algumas das frases mais cruéis e misóginas do filme “uma mulher que deixa que sua voz seja ouvida, não se difere da mulher que se desnuda em público”.  É a diretora que manda que as meninas cubram seus rostos, e não se trata do niqab usado pela mãe de Wadjda em público, mas de um véu que é jogado sobre o rosto e impede que as mulheres vejam direito.  Um dos sintomas de que Wadjda logo, logo, terá que cobrir seu rosto é quando a diretora exige que ela use a abaya – vestimenta típica feminina – sobre o uniforme.  Ouvi falar dessa história de cobrir o rosto pela primeira vez no livro Princesa e nada do que eu vi em Wadjda entrou em contradição com o que eu li nos dois livros da americana Jean Sasson.  A diferença é que as mulheres riquíssimas da trilogia da autora podem curar suas frustrações e depressão fazendo compras e passeando pela Europa, coisa que está além das condições de produção das mulheres do filme Wadjda.   Mas vamos voltar ao foco, antes que eu me perca...  

Várias questões são pinceladas no filme, mas não aprofundadas.  Por exemplo, sabemos que uma das colegas de turma de Wadjda, Salma, acabou de se casar.  A menina deve ter 11 anos, o noivo tem 20.  Não sabemos se o casamento foi consumado, ou temos detalhes.  Simplesmente, a professora de religião – uma mulher de aparência muito moderna – faz cara de desgosto e adverte que fotos são proibidas na escola.  Sim, há sunitas muito religiosos que consideram fotos e filmagens como algo demoníaco, e a própria diretora ressaltou que isso dificultou as filmagens de rua.  Em outro momento, a professora de religião adverte que as meninas menstruadas e, portanto, impuras, não podem tocar o Corão.  Essa realmente foi novidade para mim, mas achei material suficiente para mostrar que a coisa é pertinente (*exemplo*).  Na verdade, o que era uma dispensa – mulheres menstruadas são isentas de certas obrigações rituais – passou a ser visto como obrigação.  E, como no texto que eu linkei, não convém questionar, se deve cumprir.  Vontade de Deus!


Dois incidentes acontecem na escola e merecem atenção, pois ambos envolvem a protagonista e apontam para a repressão às meninas.  No primeiro, Wadjda serve de pombo correio entre uma adolescente e seu namorado.  Em troca de 40 riads – 20 de cada um – Wadjda entrega uma permissão falsa para que o rapaz possa tirar a moça da escola passando-se por parente.  A rigor, ainda que isso seja burlado, como é possível ver no próprio filme, mulheres não podem sair na rua ou viajar sem um guardião, normalmente, um homem da família.  Enfim, o caso dessa menina e seu namorado é descoberto, a moça é expulsa da escola, e o casamento entre os dois é marcado.  Como diz a mãe de Wadjda, “poderia ser pior”.  A protagonista toma uma dura da diretora, mas nega qualquer envolvimento.  É neste momento que ela tem suas pulseiras e fitas cassetes confiscadas.  Sim, um dos sintomas de que a família de Wadjda não é rica é o fato de não terem computador, nem CD player, ainda que o pai tenha uma mega TV e um PlayStation.

Mais adiante, duas amigas, meninas mais velhas que também tinham uma atitude rebelde, são pegas em situação “suspeita” pela diretora.  Elas estavam desenhando tatuagens nos tornozelos e com uma revista de futebol.  Wadjda estava perto, mas diz não ter visto nada.  O que fica caracterizado no filme, ainda que nada seja dito, é que as duas são acusadas de lesbianismo e obrigadas a assinar uma confissão, ou seriam expulsas. Se algo assim acontecesse, a punição dos pais poderia ser maior e o escândalo apressaria um casamento, talvez com um velho com outras esposas... A diretora aproveita a ocasião para falar a toda a escola proibindo que as meninas tragam flores umas para as outras, troquem cartões ou andem de mãos dadas.  Qualquer dúvida sobre a transgressão das meninas?  E elas viram párias no colégio... Tudo isso poderia acontecer em um colégio de freiras ocidental até umas duas décadas atrás, mas não deixa de ser chocante.


Junto com a protagonista, a outra personagem mais simpática do filme é Abdullah.  O menino é visivelmente apaixonado por Wadjda e não está nem aí para a o sonho da menina em disputar corrida com ele.  Abdullah também não se importa em emprestar a bicicleta, ou ajudar Wadjda a dar uma dura no motorista grosseiro da mãe dela.  Na verdade, ainda que a menina não note, os dois poderiam ser caracterizados como namorados.  É quando está junto com o amigo que algumas das observações sobre segregação de gêneros são feitas.  A mãe de Wadjda adverte que eles são muito crescidos para estarem juntos e coloca o menino para correr.  Também quando está com o garoto, Wadjda é assediada por um pedreiro.   Assim, do mesmo jeito que acontece por aqui.  A roupa da mulher não importa, tampouco o fato de ser uma criança.  Eu teria medo de deixar uma menina na rua em um país que parte do principio de que a rua não é espaço feminino.  E nisso, apesar das coisas que acontecem por aqui, acho que na Arábia Saudita os desdobramentos para a vítima seriam piores.  Afinal, onde estava o guardião dela?  

Outra cena interessante que acontece quando Wadjda está com Abdulla é a confraternização com o pai de um sujeito que virou homem bomba em algum lugar.  Quem passa a informação é o menino, dizendo que os homens da vizinhança vieram dar os parabéns ao pai e que ser mártir abre as portas do paraíso e tem como recompensa 70 virgens.  Aliás, as superstições religiosas e o fanatismo estão bem marcadas no filme em outros momentos, como quando a mãe de Wadjda manda que a menina não deixe o Corão aberto para que o demônio não cuspa nele, ou a diretora que manda que as meninas fiquem bem juntas na hora da oração, pois assim não haveria espaço par ao demônio.  


O texto, essa massa confusa eu escrevi, já está longo demais. De qualquer forma, eu me surpreendi com os temas – e nem citei todos – levantados no filme.  Só mesmo o patrocínio de um príncipe poderoso para permitir que a diretora não tivesse problemas com a polícia religiosa ou a censura, especialmente quando dois cineastas amadores foram para cadeia por fazer um filme mostrando que existem pobres na Arábia Saudita, coisa que a mídia ocidental parece ignorar ou associar somente aos estrangeiros que lá trabalham.  Em Wadjda, também se marca claramente o espaço público e o privado, com as mulheres desveladas quando estão na escola ou em sua casa, e cobertas quando saem à rua.  Isso eu já tinha visto no filme egípcio, Cairo 878, mas é algo proibido nas produções iranianas.  Seja na rua ou dentro de casa, as mulheres do cinema iraniano precisam usar o véu.  Nesse sentido, os filmes feitos no Egito e este saudita são mais realistas.

Eu imagino que assim como fazem com outras mulheres muçulmanas que abordam de forma crítica a condição feminina em seus países, vá aparecer alguém acusando a diretora de difamar o Islã.  De qualquer forma, é uma grande vitória que um filme como Wadjda possa ganhar o mundo, especialmente quando em seu país de origem as mulheres nem ao cinema ou a locadora podem ir.  Na entrevista que li com a diretora, ela diz que se inspirou em uma sobrinha, uma menina que assim como Wadjda sonhava, mas foi castrada pelos pais.  A rigor, como a diretora bem explica, meninas não são proibidas de andar de bicicleta, mas a maioria dos pais acha inapropriado.  Na verdade, enquanto escrevia este texto, li a notícia de que agora será permitida educação física e prática de esportes nas escolas femininas sauditas... Como a matéria bem diz, nas escolas de elite, particulares, a coisa já era prática, mas que o benefício virá, talvez, para as escolas públicas, como a de Wadjda.  Quem sabe? 


Recomendo muito O Sonho de Wadjda por sua coragem e simplicidade, por ter escolhido contar a história de uma menina e por terminar passando a mensagem de que mulheres – no caso mãe e filha – precisam se apoiar.  Não posso contar se Wadjda venceu ou não o concurso, ou se ganhou sua bicicleta, mas digo que o filme é otimista e o mais feminista dos filmes que assisti nos últimos meses.  

P.S.: Recomendo uma leitura no curto blog dessa moça saudita.  Pela interrupção brusca dos posts, acho que o que ela mais temia aconteceu, arrumaram-lhe um marido qualquer.

1 pessoas comentaram:

Algo curioso: Eu havia lido sinopse desse filme e então deixei pra lá. Mas a partir de um ponto a curiosidade brotou e eu não conseguia lembrar o nome do filme de jeito nenhum. Ao ver como as mulheres são tratadas lá eu começo a pensar que talvez o Brasil não seja um país tão horrível assim. Afinal, temos liberdade religiosa e é até normal fazer amizade com alguém de religião diferente. Certo dia li um artigo onde dizia que as mulheres na Asia não podiam andar ao lado dos homens ou se assentar ao mesmo tempo que eles. Elas deveriam sempre andar atrás e esperar o homem começar a comer para então se sentar a mesa. O que essas mulheres passam chega a ser o máximo do absurdo. Teoricamente Deus não teria feito o homem para mulher e a mulher para o homem? Então porque elas são tratadas como se estivessem abaixo deles? Entendo que há muitas mulheres que são pobres e não tem condição de sair do país, mas acredito que se eu estivesse no lugar delas faria todo o possível para fugir de lá.

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