segunda-feira, 30 de junho de 2014

Lei obriga exibição de filmes nacionais nas escolas de educação básica


Na sexta-feita (27), a presidenta Dilma sancionou a Lei nº13.006, de autoria do senador Cristovam Buarque (DF), obrigando a exibição de duas horas obrigatórias de filmes nacionais nas escolas brasileiras de educação básica, isto é, até o 9º ano (*antiga 8ª série*).  O link para o Diário Oficial está aqui.  Houve inclusive alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (nº 9.394/1996) para que a nova legislação fosse acomodada.  Segundo a lei, “(...) a exibição de filmes nacionais constituirá componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola”.  De pronto pensei em três coisas “Será que vão realmente pensar os filmes a partir da proposta pedagógica da escola? Ela existe de fato (*a tal proposta pedagógica...*)?” e “A Globo Filmes agradece!”.

Olha, eu gosto de cinema.  Sempre que posso, e isso desde que comecei lecionar em escolas públicas, em 1998, uso cinema com minhas turmas e os resultados são ótimos.  E vejam bem, usar cinema em sala de aula não é passar filme para não dar aula.  E já vi professores fazendo isso, tá?  É pensar uma atividade que seja interessante e que ajude os meninos e meninas a fazerem pontes com o conteúdo e reflexões sobre um monte de coisas.  Só para citar um exemplo que não é da minha disciplina.  O pessoal de Biologia do colégio no qual leciono exibe Gattaca todos os anos para discutir genética.  Imagino que o leque de discussões depois de um filme tão bom sejam inúmeras.  Agora, já vi professor levar Conan, o Bárbaro para mostrar para a turma o que era a Idade Média... Tsc... Tsc... O que a gente faz com um bagulho desses? 


Sim, vou ser muito franca: a maioria dos meus colegas não sabe usar cinema em sala de aula, nem quadrinhos, nem a internet, nem qualquer coisa que não seja giz-livro-quadro negro.  A realidade é essa mesmo.  Algumas vezes, há o recurso - multimídia, computadores, abertura por parte da escola - mas não há o preparo e mesmo a vontade de desenvolver um trabalho com qualidade.  Agora, quem quer corre atrás da formação, quando não tem como, usa de criatividade, tem boa vontade, mas preguiça e burrice são barreiras muito maiores. 

Enfim, de cara percebo uma série de problemas na lei.  Primeira coisa e cito o autor do projeto: “A única forma de dar liberdade à indústria cinematográfica é criar uma massa de cinéfilos que invadam nossos cinemas, dando uma economia de escala à manutenção da indústria cinematográfica. Isso só acontecerá quando conseguirmos criar uma geração com gosto pelo cinema, e o único caminho é a escola”.  De novo, caímos na velha história: reserva de mercado, incentivos enviesados à indústria nacional, obrigatoriedade do que deveria ser cultivado de outra forma.  E esse papo é velho, caduco mesmo.  


Peguem qualquer dos primeiros livros acadêmicos sobre quadrinhos publicados no Brasil – anos 1980, antes até – e está lá o blá-blá-blá da necessidade da reserva de mercado para o desenvolvimento de uma indústria nacional.  Sendo projeto do Cristovam Buarque, e eu votei nele, o sujeito tem muitos méritos, sim, não me surpreende esse pensamento arcaico.  Como projeto não amplia para o cinema em geral, fecha no cinema nacional impossibilitando o que poderia ser de fato um estímulo ao gosto pela Sétima Arte.  

No Facebook, eu brinquei dizendo que deveria ser jabá da Globo Filmes, que vem papando boa parte das salas de exibição.  Poder econômico que se impõe levando para o cinema produções que tem o mesmo formatinho da TV. E dá lucro, apesar do conteúdo muitas vezes medíocre.  Pergunto-me se não vão empurrar goela abaixo dos alunos e alunas os filmes da Globo, do luxo ao lixo, indiscriminadamente.  Será que a qualidade e a adequação do material será levada em conta ou vamos cumprir a lei e pronto?  Isso, claro, se a lei for cumprida... Outra coisa, MEC vai fornecer DVDs e/ou Blurays para as escolas públicas ou vai ser no piratão?  Como a coisa vai ser organizada?


E, agora, algo mais complicado.  Boa parte da produção do cinema nacional é adulta ou tem classificação indicativa elevada.   E não estou pensando em sexo e palavrões, como alguns de cara imaginaram.  Penso no conteúdo geral dos filmes.  Filmes de grande qualidade, mas que definitivamente não são para um público infanto-juvenil.  Obviamente, ninguém vai passar pornochanchadas, estou imaginando, por exemplo, um Como Nascem os Anjos, Cidade de Deus, Terra Estrangeira, Pra Frente Brasil, Tropa de Elite, etc.  Só para citar filmes dos anos 1980 para cá.  

O grande problema é a lei não é para o ensino médio ou para o EJA, mas até o 9º ano.  Quantos filmes nacionais ou documentários (*devem valer, ou não?*), por exemplo, temos para o público de 6 e 7 anos?  O aluno ou aluna de 13, 14, 15 anos do 9º ano pode assistir um material mais denso, podem organizar um ciclo de cinema e ditadura, por exemplo, sem problema algum.  Mas e as crianças vão assistir o que exatamente?  Quantos filmes nacionais infantis nós temos?  Vão desencavar todo o acervo dos Trapalhões?  Percebem o problema?


Alguns colegas levantaram, também, o terror dos professores de humanas: quem vai ceder seus tempos de aula.  Mataram a charada?  Em muitos lugares poderão ser os professores de História, Geografia, Sociologia, Artes, Filosofia.  Vão criar outros espaços?  Contra-turno?  Normalmente, são essas disciplinas que mais usam cinema.  E falo no bom e no mau uso, vide o “passar filme para não dar aula”.  Será que não vai ser um tal de "pede o tempo do professor de História para cumprir a lei"?  Mas, ainda assim, isso é o que menos me incomoda.

Olha, de tudo isso que escrevi, e nem sei se este texto é bom mesmo, o que mais me irritou é essa coisa de enfiar cinema nacional goela abaixo para criar cinéfilos.  Prazer pelo cinema não se cria à força.  Ainda mais se o que for oferecido tiver o formato daquilo que temos na TV e, pior ainda, do material televisivo mais rasteiro e sem graça.  Agora, se as duas horinhas fossem para cinema em geral, com liberdade para escolher títulos bons e não somente dentro do acervo nacional, talvez, fosse válido.  Ainda assim, talvez... 

3 pessoas comentaram:

Você tem razão, Valéria. A sua reação foi igual à minha quando li seu tweet. As cotas para produção brasileira tem dado bons frutos na TV a cabo, pois dão oportunidade à criação de trabalhos de qualidade, como as séries da HBO (Mandrake, (fdp), Psi). Porém, no caso da escola, na situação em que o cinema nacional se encontra hoje, não existe material suficiente pra mostrar às crianças respeitando-se a faixa etária de classificação dos filmes. Eu diria que para o público juvenil ainda há algumas obras, mas elas focam mais em relacionamentos interpessoais e não seriam de grande valia para um professor de humanas. No campo infantil a situação é ainda pior, acho que só Xuxa e Trapalhões e olhe lá... Acho que o gosto pelo cinema independe da procedência dos filmes em questão. Devemos valorizar o produto nacional sim, mas quando bem produzido.

Bom ponto Valéria
Mas pode ser que a longo prazo isso incentive quem está cursando Cinema a produzir mais e melhor....

pra esse momento também concordo, o acervo brasileiro carece de conteúdo
.

A intenção da lei pode ser até boa, mas não vai ser desse jeito que as pessoas criarão gosto pelo cinema, ainda mais o nacional. Eu acredito que um dos maiores problemas do cinema brasileiro é a dependência da Globo e a falta de um elenco de atores independentes, que atuem exclusivamente no cinema. Hoje em dia, mesmo os filmes que não são da Globo estão repletos de atores "globais" que já estamos cansados de ver nas novelas. Pelo menos para mim, isso já é um fator desestimulante. Nos EUA, por exemplo, não vejo essa mistura: geralmente atores de TV atuam quase exclusivamente na TV e vice versa. Outro problema é a dependência de conteúdo adulto. Parece que já virou regra os filmes brasileiros terem alguma cena de sexo. Quando as cenas fazem parte de um contexto maior dentro da história, dar para aceitar numa boa, mas não é o que acontece: há um verdadeiro abuso desse tipo de cena em praticamente todos os gêneros, desde o melodrama até a comédia pastelão. Eu sou um cinéfilo inveterado, mas não vou mentir: não gosto muito do cinema nacional e são poucos os filmes que conseguem me agradar. Torço para que essa quantidade aumente e a qualidade melhore também.

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