segunda-feira, 14 de março de 2016

Como é fácil esquecer "Que Horas Ela Volta?"


Na época do filme "Que Horas Ela Volta?" era comum ver gente de classe média para cima refletindo sobre a questão da desigualdade, da exclusão social, de como sua classe social é abusada, de como a realidade brasileira parece chocante aos olhos de europeus e norte-americanos.  O tempo passa, o tempo voa, e no sábado apareceu esta charge aí em cima circulando no Facebook.  Madame vai ao protesto e leva a babá junto, afinal, quem vai cuidar da criança?  Alguns riram, a maioria achou insólito, até que a realidade materializou-se no Rio de Janeiro.  Diferença?  Havia um pai em cena, dois para cuidar das crianças, portanto, e a babá estava de branco para deixar bem claro que ela estava trabalhando e não era parte do grupo.

A vida imita a arte.
A foto repostada gerou furor.  Será que é verídica?  Será que eram todos parte do mesmo grupo?  Sim, a resposta do patrão não tardou.  Logo, a discussão se desvirtua.  Se fosse branca alguém se chocaria?  Não há nada de escravidão nisso.  Ela está ganhando seu salário.  Quem cuida dos filhos da babá?  Ah, mas ela fez uma escolha!  Há babás que ganham muito mais do que eu que sou XXX (*coloque uma profissão que exija nível superior*).  É bom ser babá.  Então, você trocaria sua profissão pela de babá que paga tão bem?  Usaria o uniforme branco com orgulho pelas ruas?  Deixo o texto da Hailey para reflexão.

De resto, é interessante ver como "Que Horas Ela Volta?" causou desconforto e impacto e, meses depois, a foto do casal com a babá já não tem efeito psicológico algum. Agora, basta repetir que é normal, é escolha, que não é evidência de imensos abismos e desigualdades.  Que a prática não se remete aos bons tempos da escravidão e que não seria muito mais caro e, portanto, inacessível para a grande maioria, ter babá ou doméstica ou mesmo diarista em um país desenvolvido, tipo os Estados Unidos que muita gente quer tomar como modelo. 

Outro ângulo.  Afinal, quem vai cuidar do "pet"?
Muitos anos atrás, a Veja trouxe uma matéria de capa sobre como era menos complicado ser mulher profissional (*profissões de escritório, gerência e outros, claro*) no Brasil.  Motivo?  Aqui, era muito barato ter empregados domésticos.  Sim, gente barata, a maioria negra, ainda que nem todas, gente que é apontada muitas vezes "Se você não estudar, fulaninho/a, vai ser gari ou empregada doméstica!".  Na verdade, a depender de em qual berço você nasça, as portas se abrirão para você de qualquer jeito, afinal, aqui impera a meritocracia, mas o estigma pesa sobre várias profissões.  Elas parecem escape em tempos de necessidade, não o sonho de uma criança.  Um dos motivos, o baixo salário, a falta de direitos e os sentidos associados a ela.  

Talvez, alguém tenha protestado no domingo impulsionado pela raiva de ter que pagar direitos trabalhistas aos seus empregados.  Afinal, antes desse governo que aí está - com todos os defeitos e problemas que ele tem - o patrão ou patroa poderia se jactar de ser tão bonzinho que até pagava os direitos trabalhistas para seus empregados.  E, bom que se diga, havia os que pagavam sem precisar ou alardear, que são corretos nas suas relações laborais, mas não é o caso da maioria, não, nem apaga os terríveis problemas de desigualdade social que temos no Brasil.  E isso não é de hoje.  

A mulher negra cuida do filho da Casa Grande,
enquanto o seu aguarda pacientemente a sua vez.
Quantas mulheres pobres, em sua maioria negras, deixam e deixavam suas crianças para trás para cuidar das crias dos patrões, mesmo no domingo, aliás, afinal, se não existem mais os laços de escravidão, perpetua-se a necessidade extrema de se sacrificar e aos seus filhos e filhas para ter o mínimo, talvez não muito mais do que recursos para sobreviver.  Muitos dos membros das nossas elites, ou que se acham elites, afinal, empregados domésticos são baratos, se sentiriam absolutamente desamparados sem elas. De mãos e pés quebrados.

Enfim, voltando a "Que Horas Ela Volta?", espero que esse momento pavoroso que vivemos hoje não ajude a matar todas as Jéssicas em gestação, porque nas suas cabeças e corações boa parte da burguesia e classe média que se emocionou e indignou com o filme já as expulsou da piscina, matou, enterrou e agora fica com cara de paisagem. 

Em Brasília, um pai e uma mãe mostrando que é, sim,
possível, protestar com dois filhos e sem babá.
E mais, só não vê problema naquela foto quem sempre foi Casa Grande, eu, que nasci muito mais perto da Senzala, não posso fechar os olhos, não. Se você acha que a foto é só uma crítica ao seu protesto, desculpe, há bons livros de história do Brasil, sociologia, filmes e documentários que podem ajudar a iluminar a questão. Uma ida a qualquer shopping de Brasília (*tem um do lado da minha casa*) ou, talvez, da Zona Sul do Rio no domingo também ajuda. Basta sentar e apreciar. Eu, me desculpe, penso além do seu protesto, muito além.

E, por favor, se discorda de mim, não precisa comentar. É cansativo, é doloroso, é sem noção não refletir sobre desigualdades perpetuadas desnecessariamente. Se concorda, idem, fico feliz que já esteja cansado/a de pensar sobre isso. Na verdade, depois de certos comentários que li no Facebook, estou satisfeita em escrever.



Atualização: A babá Maria Angélica Lima deu uma entrevista para o Jornal Extra.  Como esperado, a coisa foi conduzida para a exaltação da dignidade da profissão de babá, algo que nunca foi colocado em pauta no meu texto.  As respostas de Maria Angélica são muito claras e lúcidas, mas preciso dizer o seguinte,  depois que o patrão deixou claro que se não estivesse satisfeita poderia se demitir, ela não poderia dizer coisas muito diferentes. Verdade integral, ou não, é o que precisa ser enunciado para a garantia da própria sobrevivência.  As perguntas certas não foram feitas e, se fossem, a babá não poderia respondê-las mesmo.  De resto, a questão estrutural não se anula, a desigualdade extrema no Brasil é que permite que alguns sequer tenham que empurrar seus carrinhos de bebê no domingo e outros não tenham outra opção a não ser ocupar esses trabalhos que, muito provavelmente, jamais seriam sonhados pelos filhos dos patrões.  

1 pessoas comentaram:

Obrigada. Só tenho isso a dizer depois do show de hipocrisia e "honestidade seletiva" que vi sobre esse caso.

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