segunda-feira, 18 de julho de 2016

Comentando Abril Despedaçado (2001)


A camisa dita quando se morrerá.
Semana passada e nesta semana estamos desenvolvendo uma atividade no meu trabalho combinando filmes e mesas redondas com várias disciplinas e, por conta disso, estou assistindo ou reassistindo alguns filmes.  Não sei se resenharei todos eles, mas não poderia deixar de comentar Abril Despedaçado.  Conhecia o filme, claro, sabia que a trama central envolvia uma situação de vendeta entre duas famílias, mas nunca tinha assistido a película.  Explicado isso, começo dizendo que é um filme belíssimo. Não é perfeito, nem acredito que seja para todos os gostos, mas é um filme poético, sensível e comovente.  Por isso mesmo, vale a pena assisti-lo com carinho e atenção.

Abril Despedaçado é baseado no livro homônimo de Ismail Kadare, que teve sua história transferida da Albânia para o semiárido nordestino em 1910.  O filme narra a rivalidade, gerada por conflitos de terra, entre a família Breves e a família Ferreira. Mantendo um peculiar código de honra, para cada morto de um clã, um correspondente do outro clã deveria morrer.  Assim, o jovem Tonho (Rodrigo Santoro) tem sua vida condenada aos vinte anos por ter assassinado o Ferreira que tirou a vida de seu irmão mais velho. Enquanto isso, Menino (Ravi Ramos Lacerda), irmão caçula de Tonho, questiona as tradições e, depois de receber um livro de presente de um casal de andarilhos, se dá ao direito de sonhar com um mundo mágico bem distante de sua realidade infeliz. 

Tonho teve sua vida roubada.
Abril Despedaçado é, ao mesmo tempo, um filme realista e onírico. Retratando a dura realidade do quase sertão nordestino, seu clima seco, a extrema desigualdade social, a ausência do poder público, ele entrega para a audiência os discursos e imagens que estão mais que assentadas em nosso imaginário social. É a representação social do Nordeste do país como espaço da miséria e da ignorância.  Por outro lado, Menino convida a audiência a sonhar e ter esperança, a acreditar que é possível libertar-se a opressão do código de honra patriarcal que rege a vida e a morte das personagens. 

Falando em Menino, o jovem ator Ravi Ramos Lacerda é maravilhoso e, infelizmente, não seguiu carreira.  Enquanto isso, o filme, indicado à vários prêmios como o Globo de Ouro, apresentou Rodrigo Santoro para o mundo e permitiu entrever um jovem Wagner Moura que nem de longe brilha como o garoto do filme.  Menino é a personagem central do filme, é ele quem ordena os discursos e explica os acontecimentos para a audiência.  

Livros libertam, livros fazem sonhar.
Em um filme de silêncios e olhares, ele é a voz mais ouvida.  Menino é seu nome mesmo.  Vi uma resenha explicando que tal era, porque os pais não acreditavam que ele fosse viver o suficiente.  De qualquer forma, é cruel ver alguém que nem ao nome tem direito, no entanto, há algo de consolador nisso, afinal, dar nome é tomar posse.  Sim, é assim nos mitos de criação. No judaico-cristão, Adão nomeia todos os animais e a mulher “criada” de sua costela, tudo que está no mundo lhe pertence de certa forma.  Já Menino, ao não ter um nome dado pelo pai – que é quem define vida e morte – permanece livre para sonhar.  

O livro que lhe é presenteado por Clara (Flávia Marco Antônio), ajuda a abrir-lhe o mundo, ainda que de faz de conta, pois, mesmo sem saber ler, ele interpreta as figuras e lhes confere uma narrativa.  Ela é sua musa inspiradora, a sereia de um garoto que sonha em conhecer o mar. A voz cadenciada do ator, seu sotaque musical, tornam suas histórias, narradas para si mesmo, uma delícia de se ouvir.  Uma das cenas mais tristes é exatamente quando o pai, o castrador, confisca o livro, a única fonte de alegria de Menino.  A partir daí, seu medo é esquecer as histórias, esquecer da sereia, deixar de sonhar.

Clara é a musa dos dois irmãos.
Falando dos patriarcas, o dos Breves (José Dumont) e os do Ferreira (Everaldo Pontes), eles representam a manutenção das tradições e costumes imemoriais que garantem a coesão dos clãs, mas, também, a perpetuação da violência, do obscurantismo e da infelicidade.  A personagem de José Dumont sabe que sua família, que perdeu muitas terras para os Ferreira e que foi próspera “nos tempos da escravidão”, está acabando e, ainda assim, atira seus filhos, primeiro Inácio (Caio Junqueira), depois Tonho, para a morte ao obrigar os moços a cumprirem o ritual macabro de trocar vida por vida no prazo dado pela camisa manchada de sangue.  

Quem mata tem exatamente o tempo do sangue na camisa exposta “amarelar” até que lhe seja tomada a vida.  Ele sabe que o fim da família está próximo, mas, ainda assim, é capaz de dizer que eles já perderam tudo e não podem perder, também, a honra.

O trabalho duro no engenho de cana.
Já os Ferreira, mais prósperos, que não dependem do seu próprio trabalho braçal como seus vizinhos, estão também aferrados ao código de honra mantido por um homem cego e velho.  Na verdade, tanto o avô cego, quando o neto (Wagner Moura) míope, vêem mal e não enxergam adequadamente a realidade.  O neto já se percebendo na condição de coronel em relação aos vizinhos, deseja usar de métodos mais efetivos do que o tempo da camisa, afinal, bastaria pegar um punhado de jagunços para dar cabo de todo o clã dos Breves.  O velho patriarca, no entanto, é enfático, não enquanto ele viver, pois todo sangue tem o mesmo valor.

Abril Despedaçado transpôs para o Brasil da República dos Coronéis os princípios do Kanun, o código de honra daquele país.  Segundo o Kanun – que foi oral até o século XX – para cada vida tirada uma vida deve ser ceifada, mas crianças, mulheres e velhos não podem ser contados nas vinganças.  Há crimes de honra em todos os lugares, mas um código de honra tão organizado e letal, nunca existiu no Brasil.  Mais ainda, e é bom lembrar que o filme não é de todo realista, que se fosse vida por vida, ambas as famílias teriam sido extintas há muito tempo e a idéia do neto dos Ferreira seria o mais corrente em um sertão nordestino ou outras áreas dominadas por coronéis.  

Menino se recusa a deixar de sonhar.
No Brasil daquela época e mesmo em alguns lugares hoje, contratar um matador/justiceiro ou mesmo um bando para dar cabo da vingança fosse o mais comum.  Crime de honra mesmo, aquele que se perpetua ainda que sem a estrutura de outros países, é o feminicídio, afinal, e isso não mudou, a honra dos homens é frágil e um “deslize” das mulheres pode colocá-la a perder.  Assim, morrem mulheres todos os dias, porque, de alguma forma, ofenderam ou colocaram em risco a honra de um homem.  

Lendo sobre o livro, imagino que quando Ismail Kadare, autor do livro, escreveu Abril Despedaçado em fins dos anos 1970, o Kanun fosse somente uma lembrança, pois a idéia da vendeta viceja onde o poder centralizado não se faz sentir, ou o sistema de justiça não tem crédito.  Assim, na Albânia comunista a repressão ao Kanun foi intensa e somente com o fim do regime os feudos de sangue entre as famílias, além de outras tradições, retornaram.  Aqui, no Brasil, confia-se pouco no sistema de justiça e o poder central é omisso, mas nunca se formou um sistema de vendeta tão organizado.  Por isso mesmo, a única saída é a fuga da região, ou do próprio país.

Certamente um casal, mas, também, uma situação de abuso.
Quando Tonho conhece Clara e se apaixona, ele começa a questionar o código de honra e os ditames de seu pai.  Se olharmos de forma rápida, talvez Clara pareça ser somente uma materialização de um velho estereótipo feminino no cinema e na literatura: a musa.  Sim, ela é uma espécie de musa tanto para Tonho, quanto para Menino, ou Pacu, como é “batizado” pelo companheiro de artes circenses da moça, Salustiano, interpretado pelo excelente Luiz Carlos Vasconcelos.  Agora, basta olhar com atenção para perceber os indícios de uma relação abusiva.  Clara, uma adolescente ou pouco mais que isso, parece ser filha da antiga companheira de Salustiano.  Ele a apresenta como “afilhada”, um conhecido observa que “como ela cresceu”, Salustiano a olha com carinho, verdade, mas, também, com desejo e ciúme.  

Tonho, ao seguir com a trupe circense por alguns dias, detona uma crise entre o homem mais velho que, provavelmente, tomou Clara ainda menina como amante e companheira depois da morte de sua mãe.  Clara tem a sua história, portanto, ainda que não seja protagonista.  E, ainda que o filme nos dê a mensagem que o amor liberta, algo que liricamente funciona maravilhosamente bem, foi necessário que Clara tomasse sua vida em suas mãos.  “Ele já está morto”, diz Salustiano tentando contê-la na sua vontade de partir.  “Mas eu não estou!”, eis a resposta da menina que toma sua vida em suas próprias mãos, independentemente de ficar, ou não, com Tonho.  É o momento feminista do filme, por assim dizer.

O vôo de Clara.
As outras mulheres da história estão assujeitadas aos ditames patriarcais.  Dentre as Ferreira, nenhuma tem nome, elas operam mais como sombras vestidas de negro e sentadas em uma longa mesa na qual os homens são escassos.  Uma dela tem voz, servindo de olhos para o velho cego e notificando o amarelamento da camisa.  Não sei se percebi mal, mas a camisa não estava de fato amarela, ela mente ao patriarca seu avô, ou avô de seu marido, enfim, a relação não é clara, para que a vingança contra Tonho seja levada à cabo com maior rapidez. 

Já a mãe de Tonho e Menino não tem nome mesmo é a mãe que chora os mortos, mas mantém a firmeza diante do código de honra até que a quebra das regras a faz tomar a palavra e impedir que o marido cometa um desatino.  Ela é forte, afinal, ninguém sobrevive naquele lugar se não for, mas não tem autonomia.  Cumpre-se a Bechdel Rule no filme?  Não, mas o filme fala das mulheres, da sua condição, mesmo sem falar delas propriamente.

O vôo de Tonho.
Já terminando, o filme é rico para abordar uma série de questões.  Há, por exemplo, o viés do trabalho infantil em uma situação de abandono do poder público.  Menino estava tendo sua infância roubada. Sem nome, sem escola, trabalhando duro, porque a família dele não poderia abrir mão, sua possibilidade de sonhar – configurado no livro confiscado pelo pai – é uma forma de trazê-lo de volta para a dura realidade.  

Há várias analogias com a liberdade e libertação, seja na cena de Clara voando na corda, ou na do balanço, ou ainda nos animais que continuam girando no engenho mesmo sem estarem amarrados ou serem tocados pela voz e o chicote do homem.  Enfim, é um filme muito bonito, rico em imagens poderosas, silencioso e, ao mesmo tempo, repleto de discursos que podem e precisam ser lidos.  Eu recomendo.  É fácil de conseguir assisti-lo na internet, ou mesmo baixá-lo, como eu fiz.


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