sábado, 8 de outubro de 2016

Marcela Temer e seu papel da Ponte para o Passado


Quarta-feira foi lançado pelo Governo Federal o Programa Criança Feliz.  Sob a responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário, ele visa atender as crianças brasileiras do 0 aos 4 anos de idade.  O anúncio, no entanto, não foi feito por alguém do ministério, mas pela primeira-dama que, segundo todas as fontes, escreveu o seu próprio discurso.  

O novo programa, que tem como foco bebês e crianças, vem em um momento em que se discute a desvinculação da licença-maternidade do salário mínimo [1], algo que prejudicará todas as mulheres trabalhadoras, seus bebês e famílias, e quando se retira do Minha Casa Minha Vida as faixas de renda inferiores, de novo atingindo as mulheres pobres e negras, as maiores beneficiadas, e suas crianças.  Só começo dizendo que é muita hipocrisia e que, desta vez, Marcela Temer não foi incluída pela mídia, ela é parte do teatro que o novo governo está promovendo.


Fator de distração?
Enfim, quinta-feira, José Simão, que tem um quadro de humor na Rádio BandNews FM,  disse que o vestido da Marcela Temer era um misto de camisolinha e vestido para catar framboesa em pique-nique. A descrição foi perfeita. Look estudado para passar uma mensagem determinada: ela não é profissional, ela é mãe, mais ainda, uma mãe idealizada de propaganda norte americana dos anos 1950, aquela que é bonita (loura), recatada e do lar.

Ela poderia ser tudo isso, ou só isso, a depender do ponto de vista, e não teríamos nada a ver com a vida dela, no entanto, a Sr.ª Temer saiu do seu castelo e adentrou no mundo público.  Com sua fala e imagem, ela ajudou a reforçar papéis fictícios (*porque só valem para certos grupos muito restritos*) de gênero: ninguém cuida melhor de uma criança do que a mãe (*veja bem quem é contra ou dá munição para a não extensão da licença paternidade*), existe uma coisa chamada instinto materno (*se você, mulher, não tem isso, é um monstro*), e, melhor ainda, tudo deve ser feito de coração, não precisa nem de salário (*viu, profissionais da área de assistência social?*).  Mais ainda, e citando o texto de Renata Corrêa na Caros Amigos:
"Quando o programa se chama “Criança Feliz” ignorando a figura da mulher e focando na pureza infantil, quando se diz que cada cidadão é importante desde a gestação numa clara alusão a postura anti escolha e anti legalização do aborto, quando Marcela diz numa das partes mais vazias e chocantes de seu discurso que “Meu trabalho será voluntário para sensibilizar e mobilizar setores da sociedade em torno de ações que possam garantir melhoria (sic) na vida das pessoas”, deixando claro que o trabalho qualificado e remunerado para mulheres não é sequer respeitado simbólica e factualmente nesse governo (...)"
A fada entre os homens de preto.
Olha, até que ela aceitasse um papel nessa pantomina, e isso nada tem a ver com a necessidade de programas sociais para a primeira infância no Brasil (*se bem que aumentar o número de creches públicas já seria muito bom para todas as mulheres que trabalham fora, não é mesmo?*), mas do retrocesso naquilo que se espera dos papéis públicos das mulheres, Marcela era inatacável. Eu escrevi sobre isso, afinal, ninguém poderia exigir dela que fosse coisa alguma. Seu silêncio e reserva não podiam ser vistos como defeito.  Era a mídia que queria transformá-la em ícone de beleza, de moda (*comparando-a à Gracie Kelly*) e mesmo Temer nunca a tinha usado como troféu.  Tudo mudou agora.

E, não, aquele modo de se vestir para se apresentar em um evento oficial de governo não é o de uma mulher conservadora, ou de direita, aliás, as duas coisas não são a mesma coisa. Querem ver, peguem a Marcela da pose do primeiro governo Dilma e comparem com a nova Marcela.  Ambas são lindas, mas uma apresenta-se como mulher adulta e elegante, a nova, mostra uma faceta infantilizada.  Muito diferente, não é mesmo?  Agora, pegue a imagem pública de outras mulheres que se enquadram nesse nicho (*conservadoras, de direita, jovens*) brasileiras, norte americanas, britânicas, japonesas e veja se elas ficam fazendo cover de Prof.ª Helena de Carrossel. Essa imagem não fará bem para nossas meninas, para seu futuro, tampouco para a maioria das mulheres adultas, porque ele barateia e reduz a nossa imagem, ao mesmo tempo que promove um ideal de princesa absurdamente castrador, irreal e ultrapassado.


Em dois momentos.
Ao apresentar-se como colaboradora e chancelada pela sua condição de mãe, Marcela Temer aceita participar ativamente da reviravolta que significou a derrubada de Dilma.  Ajuda, também, na desqualificação de profissionais que trabalham com a primeira infância, que normalmente são mulheres, aliás, porque os homens nem entram na equação.  Veja aí o "Criança Feliz"...  Essas profissionais são normalmente as "tias" (*professoras, orientadoras educacionais, psicólogas, etc.*) e se isso tem algo de carinhoso, tem, também, o caráter de roubar-lhes seu status de profissional.  Temer já havia dito que Marcela era qualificada para ser embaixadora do "Criança Feliz" por ser mãe.  Precisa estudar, não, gente, é só parir. 

Afinal, trabalho de mulher, de mãe de verdade, tem que ser de coração, gratuito e ela mesma disse: "Quem ajuda os outros, muda histórias de vida. Por isso, fico feliz por colaborar com causas sociais do nosso país".  É assim que a Marcela entra no governo de seu marido?  Em tempos idos, a função maior de uma rainha cristã era fazer caridade.  Nada poderia ser mais triste para uma soberana do que ser privada disso por seu marido, há uma santa famosa, Isabel de Aragão, Rainha de Portugal, que arriscou a vida para fazer caridade, porque seu marido mau não queria que ela gastasse recursos com os pobres.  Esse perfil parece estar sendo resgatado agora, nada mais justo, afinal, se o presidente gosta de se comparar à reis e imperadores (*1 e 2*), normal que a esposa possa querer parecer uma princesa encantada, ou que o novo presidente queira vendê-la como tal.  Nunca saberemos.


Look cuidadosamente estudado.
Temer arremata a cosiisa toda ao situar a função de sua esposa: "A Marcela vai um dia convidar as senhoras primeiras-damas e prefeitas para estarem em Brasília para que não seja apenas um programa da União, mas também da Federação".  Percebem que é coisa de mulher? Que se trata de ignorar o papel dos homens em relação às suas crias?  E se o prefeito não tiver "primeira-dama"?  Manda a primeira-filha? E se o homem for sozinho, pode ir? E se a prefeita quiser mandar o marido, afinal, se tem primeira-dama, por qual motivo não termos primeiro-cavalheiro?  Precisa ser mãe para participar? É como se tivéssemos dado um giro e caído lá nos anos 1960 e, não, estou falando do despertar do movimento feminista, mas de quem quer confiscar os direitos das mulheres e impedir qualquer avanço delas no espaço público.  De resto, a Assistência Social é política pública de direitos e não ação caridosa das senhoras da boa sociedade.

Repetindo e reforçando, caso não tenha me feito entender: ao entrar no teatro para agradar ao marido, ou a si mesma (*o que duvido, mas ela não é criança, tem 33 anos*), Marcela agora pode receber críticas que são suas, particulares, não rebarba daquelas feitas a Temer.  Se ela aceita ser a "fada" no meio do ministério geriátrico, branco, masculino e investigado pela Justiça do marido, ela abre espaço para que seu papel possa ser problematizado. Ao ajudar a ressuscitar o primeiro-damismo assistencialista, Marcela deixa de ser coadjuvante silenciosa e torna-se corresponsável na farsa e na tentativa de redimensionar o papel das mulheres na esfera pública e política, ajudando a reforçar papéis de gênero que prejudicam à todos nós, homens e mulheres.   E, não, isso nada tem a ver com negar a beleza dela.  Ela é linda, dentro de todos os padrões de beleza vigentes, e, provavelmente, junto com Maria Thereza, esposa de João Goulart, a mais bonita das primeiras-damas que o Brasil já teve


A bela Maria Thereza Goulart.


[1] Não tenho fonte para essa informação.  Foi algo comentado no Jornal da Bandeirantes, ontem, à noite.  Segundo o telejornal, a proposta será apresentada às centrais sindicais.  Minha aposta é a seguinte: como são homens a maioria dos que comandam as centrais sindicais, como eles, também, são machistas, e como pode imperar a lógica do "mal menor" que pede o sacrifício dos direitos das mulheres, não será espantoso que passe.
P.S.1: Recomendo muito o texto da ex-deputada federal Manuela D’Ávila, ela escreveu uma bela carta para Marcela Temer, um texto muito, muito melhor que o meu.
P.S.2: Segundo meu marido, Marcela Temer parece saída do livro Stepford Wives (Mulheres Perfeitas) de Ira Levin.  O livro é de 1972 e  a primeira adaptação para o cinema é de 1975.  Tem resenha desse filme no Shoujo Café.
P.S.3: No micro-discurso de Marcela, nenhuma palavra sobre amamentação.  Pergunto-me o motivo do esquecimento, especialmente, quando o brasil é referência nas campanhas sobre esta questão.

1 pessoas comentaram:

Cover da professsora Helena!!! XD Essa foi uma ótima metáfora. Aí começa-se a vender o discurso que maternidade é única função e salvação da mulher. Que o mundo só tá assim porque a mulher abandonou a "sua natureza". Me lembrou a esposa do Silas Malafaia e uma cantora gospel com a campanha para mulheres tiram foto de avental e com bebê no colo.

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