quinta-feira, 28 de setembro de 2017

A Quinzena do Terror virou um mês para se esquecer

Fiz um post dias atrás sobre a terrível quinzena de acontecimentos que abriu setembro, pois bem, ela se desdobrou em um mês inteiro.  De que estou falando?  Ora, ontem, o STF - que tem prerrogativa em questões constitucionais - deliberou (*6 votos a 5*) que aulas de educação religiosa confessionais são absolutamente legais.  O que isso significa em termos práticos?  Que crianças poderão e serão catequizadas e evangelizadas nas escolas públicas.  É preciso dizer que se trata do ato final de um ataque ao Estado Laico, pelo menos nesse aspecto, porque a partir do momento que o STF autorizou é game over.  

Ora, as bases para o ensino religioso em escolas públicas, nas particulares religiosas a coisa é plenamente legal e não é questionada, se assenta na Constituição.  O artigo 210 diz: “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”.  Nada é dito que ela deveria ser confessional, mas está aberto o caminho.  A LDB, que é de 1996, vai além na questão no seu artigo 33: "O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.".


O que estaria previsto, então?  História das religiões?  Valores?  Minha mãe, e somos evangélicos/protestantes, muito antes da LDB e da Constituição de 1988, deu aulas de educação religiosa em escola pública.  Ela tinha uma coleção de livros católicos que falavam inclusive da teoria da evolução de forma muito didática.   Eu devo ter pego para ler quando estava com uns 10, 11 anos. Só que os tempos mudaram e não mudaram pouco. Duvido que aquela coleção do início dos anos 1980 que primava por valores, ainda que assentados em premissas cristãs, fosse aceita hoje, com nossa onda de obscurantismo e anti-intelectualismo.  Du-vi-do!

E, agora, segue minha experiência como minoria religiosa (*porque, sim, os evangélicos/protestantes já foram minoria*) na escola, especialmente na pré-escola e ensino fundamental poderia ter sido traumática. Isso, claro, se eu fosse uma criatura de me estressar com certas coisas... Nunca tive educação religiosa na escola, nem pública, nem privada, mas a fé de alguns professores/as transbordava em nós.  Aos 5 anos passei por uma humilhação pública quando a nova professora queria terminar nossas aulas rezando a Ave Maria.  A criatura (*EU*) abriu o bocão e perguntou o que era isso.  Uma coleguinha muito católica foi particularmente rude.  Ela disse que eu era herege (*foi a primeira vez que ouvi a palavra*) e ia queimar no inferno.


Cheguei em casa e relatei para mamãe.  No outro dia, ela estava lá para conversar com a professora.  Chegaram a um acordo, passamos a "rezar" o pai nosso.  Havia coleguinhas, pelo menos dois, praticantes do Candomblé na sala.  Ninguém se preocupou com eles que, aliás, eram alvo de chacota. Aliás, para eles, melhor rezar e tentar se misturar com o resto do grupo... Na 1ª série, um colega espírita kardecista também sofria com humilhações.  Era erroneamente chamado de "macumbeiro".  Xingamento, claro, mas para as boas crianças cristãs - evangélicos incluídos - umbandistas, candomblecistas e kardecistas eram todos macumbeiros.  

Eu era ensinada em casa e na igreja, não na escola, a ver todas essas práticas religiosas como execráveis.  Mas era, também ensinada a ver imagens como receptáculos de demônios (1Co-10:14-22) e uma vez entrei em pânico na missa de dia das mães da escola (*que não era religiosa, repito*), acho que tinha uns 6 ou 7 anos.  E, claro, houve a vez que me perguntaram pelos meus padrinhos de batismo.  Eu não tinha, nem sabia o que era, aliás, estava na 3ª série, e um coleguinha me perguntou "E quem dá presentes para você?".  Mesma resposta para Papai Noel:meu pai, minha mãe.   De novo, aquilo não me estressou, mas meu nível de sensibilidade para certas coisas era muito baixo.  Ser minoria nunca é fácil, mas poucas minorias aprendem sobre tolerância (*é o mínimo*) e praticam as mesmas coisas quando deixam de ser.  E que fique claro que, nós, evangélicos, nunca fomos um bloco homogêneo.  


Batistas, eu era e sou batista, discriminavam sistematicamente os pentecostais e outras confissões religiosas - presbiterianos, metodistas - pelos mais diferentes motivos.  Só que, agora, todo mundo tende a se juntar, mesmo certas linhas do catolicismo em algumas questões, em torno de bandeiras comuns: cura gay, proibição do aborto, ensino religioso confessional etc.  Somos um país cristão, não é mesmo?  Enfim, voltando ao ponto, se até a LDB a questão da educação religiosa não estava caracterizada como confessional, veio o acordo com o Vaticano durante o governo Lula, em 2009.  E, sim, nesse caso, a culpa é dele, vejam só o Artigo 11:
"A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a importância do ensino religioso em vista da formação integral da pessoa.  §1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação."
Foi em cima disso aí que se criou a brecha para esse salseiro que vimos nos últimos dias.  Infelizmente, antevejo muito constrangimento, muita angústia da parte de certas crianças, e muito proselitismo rasgado nas escolas.  Neste caso, a Escola Sem Partido não vai se pronunciar.  Os únicos partidos que não podem estar na escola são os de esquerda, todos os outros, inclusive os religiosos, podem.  Uma amiga que deu aula na rede estadual do Rio, onde, na prática, o ensino confessional vigora desde o último governo Garotinho, dizia que as aulas facultativas terminavam se tornando obrigatórias na medida que não havia outras. 


As crianças não terão escolha, seja porque a escola não tem estrutura para oferecer alternativas, seja porque os pais não irão permitir.  Religião é sempre algo bom?  Não sei, especialmente, quando olho o Rio de Janeiro, hoje, onde existe até a categoria "traficante evangélico" (*artigo acadêmico de 2008*) que destroem terreiros das religiões afro em nome de deus.  E coloco em minúsculo, porque não sei a qual deus estão venerando.  Não é o mesmo no qual eu creio.  O que quero frisar é que a tolerância com o crime - violências de todo o tipo, tráfico de drogas, assassinatos, estupros, etc. -  não deveria fazer parte do dia-a-dia das igrejas, de nenhuma delas, mas, hoje, faz.  Existe uma cruzada moral [1] que não considera criminosos esses traficantes que, em certos casos, parecem agir como braço armado de alguns (pretensos)pastores.  

Mas é aquilo, quando o Estado se ausenta, lava as mãos, outros poderes se afirmam.  Os cidadãos se tornam reféns e não tem em quem confiar, alianças estratégicas podem se firmar em casos assim, mas isso, claro, nada tem a ver com cristianismo.  De resto, enquanto faltam professores das mais diferentes matérias em nossas escolas, especialmente, os de exatas, quando se impõe uma reforma do ensino médio que permitirá ao estudante (*Duvido que haja escolha, mas seria assunto para outro post.*) escolher se quer estudar Biologia, Química, Física, História, Geografia, parece-me estranho que a preocupação seja em garantir o Ensino Religioso confessional.


De resto, como disse o Ciro Gomes em uma entrevista,[2] parece que abriram a sepultura do século do século XIX, e coisas nauseabundas estão emergindo de lá.  Uma das melhores coisas que o Exército Brasileiro já fez foi transformar o Brasil em Estado Laico.  Por isso, ainda que você possa considerar 1889 um golpe de estado, e trata-se de uma leitura válida, ao declarar-se laico, o Brasil se destacou de seus vizinhos, possibilitou, pelo menos aos protestantes, igualdade de direitos diante da lei.  Mas, claro, essa separação, que foi traumática para a Igreja Católica como instituição, para o povo simples (*vide Canudos*) que cria do fundo de seu coração em sacramentos como batismo e casamento, durou pouco.  Quando Getúlio Vargas assumiu, as relações promíscuas entre Estado e Religião já estavam avançando muito.  

Parece, no entanto, que slogans como "Deus, Pátria, Família" voltaram á moda.  Resta saber se você concorda com as mesmas noções que alguns estão gritando. Não será divertido, pelo menos para alguns, descobrir que o grupo mais forte tende a eliminar os inimigos e o aliado de ocasião hoje em uma cruzada moral pode ser o herege amanhã.  E será.


De resto, não se enganem, nossos direitos vão sendo usurpados pouco a pouco.  Se o STF legislou a favor do ensino confessional, amanhã poderá ter que decidir sobre a eliminação da possibilidade de aborto em qualquer situação.  Sim, isto está em discussão no Congresso.  Cria-se a cortina de fumaça de que grupos feministas, o PSOL, enfim, tem força para conseguir mexer na legislação sobre o aborto, descriminalizando-o, quando, na realidade, nosso Congresso discute reconhecer ao embrião os mesmos direitos que aos nascidos.  Isso tudo, ao mesmo tempo, em que se discute redução de maioridade penal e se consagram cortes nas áreas de educação e saúde.  Mas, para quem quiser acreditar em mim, a questão da vida é a que menos importa, o problema principalmente o controle dos corpos das mulheres.

Enfim, concluindo, hoje, 28 de setembro, é o dia de luta pela descriminalização do aborto na América Latina. Criado em 1990, na Argentina, durante o V Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, ele visa lembrar que na maioria do nosso continente o direito a interrupção da gravidez é restrito, caso do Brasil que só admite em casos muito específicos (*estupro, risco de vida da mãe, extrema má formação fetal*), ou proibido com mulheres sendo punidas por abortos espontâneos.  Hoje, os homens, porque são eles em sua maioria, da bancada religiosa (*evangélicos, em sua maioria, mas, também, católicos e kardecistas*) querem nos tirar até isso e nos jogar para o clube dos países mais atrasados em relação aos direitos das mulheres, não que já não estejamos mal, porque estamos.


Se nos calarmos, se continuarmos fingindo que não é conosco, periga regredirmos ainda mais.  E as perdas foram grandes, enormes e há mais algumas por vir.  E para dizer que não falei nada de positivo, a Arábia Saudita vai permitir que as mulheres dirijam automóveis a partir de junho do ano que vem.  Decisão do rei, anteontem.  Não se sabe se todas as mulheres poderão dirigir, nem quais serão os impedimentos.  De qualquer forma, se a bancada religiosa conseguir o que deseja, os direitos de interrupção das sauditas serão maiores que os nossos, aqui, no Brasil.  Elas, pelo menos, podem interromper a gravidez se sua vida ou sanidade mental está em risco.


[1] "O que está avançando no governo Temer é uma pauta mais moral. Não no sentido de ser contra a corrupção, mas de costumes", diz o deputado Flavinho (PSB-SP).  Lembrei dessa citação.
[2] Ela é grande, foi para a Mariana Godoy.

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