quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O Caso QueerMuseu tem tudo a ver com poder e nada a ver com arte, ou moral


Estava pensando se escrevia, ou não, sobre o incidente com a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no Santander Cultural de Porto Alegre.  Fiquei chocada com o ocorrido, isto é, militantes de um grupo político de direita hostilizando os visitantes, agredindo-os verbalmente, até que o Banco Santander, responsável pela exposição, fechou a mostra.  Houve, claro, ameaça de boicote ao banco, algo legítimo, e pichações das fachadas de várias agências do Santander.  Curioso/a em relação à exposição, há um vídeo aí embaixo:


Agora, lembrem, por favor da posição que o MBL recorrentemente toma quando grupos de esquerda ou movimentos sociais em geral ameaçam boicotes ou, eventualmente, vandalizam patrimônio público e privado.  Eles podem, claro, porque se arvoram em falar em nome da "maioria" da sociedade.  Sim, eu tenho lado e nunca será o do MBL, porque mesmo se eles tiverem razão em uma situação específica, eles não dão ponto sem nó.  Vamos lá.

Agência pichada no Rio de Janeiro,
sem dúvida, uma demonstração de força.
Não sou juíza de arte, aliás, me vejo como uma criatura bem medíocre diante da avaliação do que é, ou não, arte.  Nunca deixaria ninguém à mercê dos meus gostos.  Não consigo sentir intensamente como alguns sentem.  Daí, sou de uma limitação atroz quando o assunto é arte, música, ou poesia.  Sou cafona até.  Tive um professor de Literatura no 3º ano, um dos melhores mestres que tive, que criticava as pessoas que só entendiam de arte quando a coisa era bem rasinha.  Ele citava a velhinha levando o cachorrinho para passear.  Eu sou dessas pessoas, infelizmente.  

Arte, para mim, meio que deixou de ser compreensível no início do século XX e o último grande movimento que me tocou foi o dos Pré-Rafaelitas.  Gente que olhava para trás, reinventava o passado. Daí, acredito que se eu fosse ao Queermuseu provavelmente iria olhar com uma frieza e falta de paixão que a exposição não merece.  Agora, como historiadora interessada no assunto, conheço o suficiente de arte grega e romana para ter visto homoerotismo de todos o jeito, fora zoofilia e outras coisinhas mais. 

 Arte Pré-Rafaelita, Lady Godiva (John Collier, c. 1897),
talvez o MBL considerasse indecente, ou não.
Como historiadora, posso escrever um texto analisando algumas coisas - estilo, época, simbologia - mas não seria jamais juíza de coisas subjetivas como beleza, mais ainda se alguma coisa é arte, ou não.  E, bem, não vou botar nenhuma das imagens greco-romanas no post, aliás, só consigo nessas horas lembrar de A Gaiola das Loucas - não sei se o original francês ou o norte americano - e lembrar das tigelinhas com os gregos "pulando carniça" (*video aqui*). Só que todo o horror que aconteceu nada tem a ver com arte, tem a ver om estratégias de poder.

Alguém disse no Twitter que o MBL tinha feito esse escarcéu em relação ao Queermuseu como um teste para seu potencial de mobilização em 2018. Concordo integralmente. Não é a arte que os mobiliza, nem a moralização da sociedade, nem um espírito fascista, é a possibilidade de acesso ao poder a ao lucro.  Seja pelo voto ou por cargos de confiança (*aqueles que pagam muito sem que você precise passar em concurso*), os olhos estão em 2018.  Essa demonstração de força será lembrada pelos interessados - partidos de direita e extrema-direita, políticos - já que as alianças para 2018 ainda estão em aberto.

Apoiam cortes de verba para a saúde e todas as reformas
do governo atual, mas vem com esse papinho mole.
Enfim, alguns sujeitos que agem na internet para perseguir pessoas combinando estratégias nos chan da vida, não raro usam o termo "gado" em relação à massa que colocam em movimento.  Algumas pessoas não entenderam, mas quando isolaram a imagem do cabrito penetrado de uma obra maior (*‘Cena de interior II’, de Adriana Varejão, 1994*), de seu contexto, e publicaram em grupos chave de direitos dos animais, o objetivo era colocar a massa em movimento, mexer com os sentimentos de um grupo que agrega, no geral, pessoas de bom coração, mas de todos os matizes políticos e capacidades críticas. Houve quem culpasse uma famosa ativista dos direitos dos animais pelo escândalo, mas o post que vi dela era posterior à suspensão da mostra.  Ela era o eco da estratégia bem sucedida, mas é sempre bom culpar pelo menos uma mulher, mesmo quando nenhuma delas puxou o movimento.

Da mesma forma, quando pegam o "criança viada", baseado em um site de humor que voltou ao ar por conta do escândalo, e colocam em um grupo anti-pedofilia, ou de religiosos, junto com um vídeo falso, ou outras imagens desconexas, eles sabem que resposta esperar. Eu nunca gostei da brincadeira, mas gostar e proibir, ou tentar transformar em crime, é coisa muito diferente. O mesmo vale para a imagem de Cristo e outras com apelo religioso.  Deu certo, funcionou.  O material circulou em grupos de família e de igreja no WhatsApp, gerou cliques para o povo do MBL no Youtube e outras plataformas.  Visibilidade é tudo.  Queria ver a mesma empolgação para expulsar os vendilhões do templo, coisa que os Evangelhos dizem que Cristo fez, mas não se mexe com os amigos.  Com eles se une forças.  

Espalhando histórias falsas para ajudar a levantar a fervura.
De resto, em questão de fé, eu prefiro ser testemunha à advogada, ou, pior ainda, polícia. Cristo não precisa disso.  Ilustrações não atingem minha fé e testemunho cristão não é coisa que a gente dê somente quando convém.  Mas o importante, foi que se criou a onda e ela arrasta tudo, sem pensar, sem discernir. Enquanto isso, os ideólogos do movimento, observam seus soldados (*os caras que invadiram a exposição e fizeram os vídeos estridentes*) e o "gado" (*em alguns casos gente bem intencionada, mas pronta a aderir a qualquer campanha moralizadora*), contabilizam os ganhos e se planejam para o ano que vem. E a estratégia é boa, deu certo. Em 2018, os falsos liberais, tanto no sentido da tolerância quanto do econômico, vão atacar ainda mais pesado. Certamente o moço que foi um dos ponta de lança da gritaria em Porto Alegre vai tentar ser o Hollyday gaúcho.

Enfim, ainda que exista homofobia no ataque, não se trata somente disso, talvez ela nem esteja na base da reação, se trata de manipular sentimentos, apelar para a irracionalidade. Nisso, sim, há semelhança com os totalitarismos - de esquerda e de direita - que definem o que é, ou não é, arte, o que pode, ou não pode, ser visto e exibido.  Houve inclusive um artigo que fez referência ao conceito de "Arte Degenerada" (“Entartete Kunst”) dos nazistas.  Eles baniram a arte moderna, ainda que alguns nazistas tenham guardado para si uma ou outra obra, porque, bem, sabe-se lá o que vai acontecer no futuro... 

A Bíblia tem situações bem complicadas
e sem recriminação.  Deveria ser banida?
Não consigo ver qualquer sinceridade no moralismo dos moços do MBL, agora, eu, s efossse o povo que bancou a mostra, me preveniria em um caso desses e colocaria 16 anos como classificação indicativa da exposição. Havia alguma? Isso esvaziaria antecipadamente parte do argumento. Eu sei, provavelmente não daria certo, um promotor deu seu parecer afirmando que não havia pedofilia na mostra e eles nem Tchum, mas eu faria do mesmo jeito.  o importante, acredito, é não se iludir com o MBL, não acreditar que eles realmente estejam agindo pautados em valores, ainda que não sejam os nossos.  Da mesma forma, é preciso pensar até que ponto, assim como fez o Museu de Londres em 2013 em uma exposição sobre Pompéia, não cabia se precaver, porque os tempos são maus.

De resto, minhas crenças, meu gosto pessoal, não podem pautar o que pode ser visto, lido, admirado.  Em uma sociedade moderna e laica, deveria existir o respeito à lei, a diversidade, aos direitos humanos.  Uma mostra em um museu não obriga ninguém a vê-la.  o que ocorreu em Porto Alegre foi lamentável e um péssimo precedente.  De resto, deixo com vocês uma propaganda australiana que fala de tolerância, que é muito legalzinha, mas que aborreceu muitos hindus.  Eles têm lá sua razão, podem até boicotar a marca, mas querer pautar as coisas que podem, ou não, serem expostas como fez o MBL neste feriado é um absurdo.  Não é novidade na História Ocidental, mas é absurdo do mesmo jeito.


Agora, a repressão policial sobre os manifestantes contra o fechamento da exposição só nos faz temer pelo pior.  Hoje, foi o Queermuseu, amanhã, pode ser o seu quadrinho favorito, o filme com uma piada vista como blasfema, um livro.  De resto, o Santander, banco do meu marido, foi covarde. Mas é uma empresa e deve acreditar que perderia mais do que ganharia mantendo sua posição e pedindo reforço policial.  Tempos tenebrosos.  

1 pessoas comentaram:

Este foi um dos melhores textos que li sobre este caso revoltante e preocupante de obscurantismo, conservadorismo tosco e de exercício de força, sim, sua avaliação parece bem acertada, Valéria, o MBL, que é um grupo reaça e com objetivos políticos e partidários (embora eles já tenham jurado que não são apartidários). 2018 está aí e eles vão se fazer presentes, com sua luta por um Brasil reacionário.
Arte não é gosto pessoal, mas mais do do conhecimento teórico sobre arte é necessário, em primeiro lugar discernimento e equilíbrio, para saber que a respeito de produção artística, o gosto individual não pode ser critério de julgamento no âmbito coletivo. De resto, para ser honesto e/ou não passar por tolo, as coisas não devem ser "denunciadas" avaliadas fora de seu contexto, que foi o que o movimento reaça fez.

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