sábado, 3 de março de 2018

Primeiros sinais de Gordofobia na minha filha ou "não quero crescer para ser uma falsa magra"


Estava voltando com Júlia para casa ontem e, quando estacionei o carro, ela do nada falou com uma voz meio chorosa "Eu não quero ser gorda quando crescer.  Ser gordo é feio."  Tomei um baque.  "Onde falaram isso para você?  Foi na escola?  Foi em algum desenho animado?"  Ela se esquivou, eu insisti.  "Vovó é gorda.  Você acha que a vovó é feia?"  "Não, vovó não é feia."  "Mamãe é gorda (*não vou mentir que lido bem com isso, mas nunca falei nada a respeito na frente dela*), você acha a mamãe feia?" "Você não é gorda, é só meio gorda." Daí, tive que rir.  

Foi custoso, mas ela acabou dizendo que viu que era feio e perigoso (*sim, havia isso na história*) ser gordo, porque passou uma matéria no jornal.  Júlia tem uma capacidade de observação e de memória que não raro nos surpreende.  Daí, lembrei que estava assistindo um telejornal, acho que da Bandeirantes, e houve uma matéria sobre o "perigo de ser falso magro", seja lá o que isso signifique.  Daí, ela não queria crescer e ser uma falsa magra...  


Enfim, conversei bastante com ela. Disse para ela que ela, Júlia, era normal, nem gordinha, nem magrinha, e que estava bom como estava.  Ela pediu que eu não contasse para ninguém, acho que bateu vergonha. Disse que havia pessoas de vários jeitos, que temos que cuidar da nossa saúde, que ser pesado demais pode ser um problema, mas que não é feio ser gordo, o que é feio é ser uma pessoa ruim e que eu não queria que ela fosse uma pessoa ruim.  Vamos esperar, mas vejam que uma criança de 4 anos é plenamente capaz de reproduzir esses conceitos horrorosos.  Ela estava com medo de, no futuro, se tornar aquilo que ela, sem mesmo saber por qual motivo, temia e abominava.

Engordei com três anos de idade.  Era bonito ser uma criança gordinha e me encheram de vitaminas (*e comida*), porque eu era muito magrinha.  Conforme você vai crescendo, e eu era grandalhona, a coisa deixa de parecer fofa e acabei sendo estigmatizada.  Ouvi meu pai dizer várias vezes que queria que eu fosse magra e bonita como minhas primas.   Fui mandada para uma nutricionista pela primeira vez aos 9 anos de idade.  Com 14 anos, mamãe me levou em um médico e tomei medicação para "ajudar" no emagrecimento.   

"Toda sociedade tem sua forma de torturar suas mulheres. 
Nossa forma de torturar é exigir perfeição." 
"Toda criança pequena deve ter um intenso medo de ser gorda. 
Não deveria ser desse jeito.  Esta menina deve ter o direito
de crescer sem que seu corpo seja criticado."
Nem preciso dizer do efeito daninho dessas brincadeiras.  Nunca me colocaram para fazer atividade física alguma e, bem, ser vítima de deboche nas aulas regulares de educação física era uma experiência semanal das mais degradantes.  Já flertei com a anorexia pelo menos uma vez.  Não quero nada disso para a Júlia, mas não falo sobre isso com ela, nem comento minhas inseguranças, ou fico me lamentando.  Ainda assim, ela me saiu com essa história e eu fiquei assustada.

Daí, lembrei de uma pesquisa publicada em 2015 (*não lembrava da data, mas sabia que era recente*) que apontava que crianças, especialmente meninas, de 5 anos já expressavam preocupação com seu peso (*não com sua saúde*) e queriam ser mais magras, mesmo sendo magras.  Que tinham medo de engordar.  Fiquei abalada com a tal conversa, minha menina só tem 4 anos.  Há conversas que eu esperava ter mais tarde, bem mais tarde com ela.  Já bastava esta semana ter que explicar em um combo só assédio e racismo (*a razão foi esta notícia ter passado na TV*), foi uma semana pesada, enfim... 

5 pessoas comentaram:

kkkkkkkk. que onda. faz tempo que não comento aqui. como tá sendo a criação do teu primeiro filho valeria? era o que voce imaginava?

Olha, eu tenho uma que recentemente fez 6, e é difícil. Ela tem um amiguinho da antiga escola que, ano passado, foi chamado de gordo por duas meninas da sala - ele é gordinho e saudável, assim como boa parte da família dele, e é bem maior que a maioria das crianças da idade deles, portanto ele não está acima do peso, ele só é grande e não é magricela. Claro que ele chorou, e ela veio contando o que aconteceu e eu falei pra ela que era muito feio fazer isso e expliquei que esse tipo de coisa machuca as pessoas, e ela disse que sabia e que tinha contado pra tia e as meninas foram repreendidas. Dias depois, uma dessas mesmas meninas falou pra minha filha que o cabelo dela era muito feio - minha filha era a única menina de cabelos crespos da sala - e eu falei pra ela dizer pra menina que feio era ela ser do jeito que era, falando coisas ruins pra magoar os coleguinhas.
Fico preocupada, porque sei que ela vai passar por coisas assim na escola. Mas a parte boa é que ela não estressa, manda a coleguinha ir plantar batatas e segue achando que os cachinhos dela são a coisa mais linda do mundo e que o amigo "gordinho" é a pessoa mais maravilhosa que ela conhece. Por enquanto acho que estamos fazendo um bom trabalho por aqui, mas a convivência com outras pessoas, ah, isso que é complicado.

Valéria querida,
seu texto me lembrou de quando eu era pequena. Sempre estive acima do peso e se quando criança isso não gerava nenhum grande problema, quando cheguei na pré-adolescência minha vida virou um inferno. Todo médico que eu ia dizia que eu tinha que emagrecer, e chegou ao ponto de eu ir numa dessas médicas "de tudo", sabe, e a 1a coisa que ela me disse foi que eu "nunca ia ser magra". Lembro que eu fiquei triste nem por nunca ser magra, mas por a 1a coisa que uma médica que eu fui pra conversar sobre saúde falar pra mim ter sido sobre minha aparência... Danem-se minha inteligência, minhas notas na escola, meus amigos, o fato que eu sempre desenhava... O importante era que eu era gorda e - pior! - jamais ia sair daquele estado. Fiquei muito triste por ela, e, logo veria, grande parte da sociedade me enxergar só assim, como uma gorda que não tinha nada a oferecer além... De ser gorda.
Fui muito zoada inclusive por pessoas da família, que diziam que eu não ia passar na porta, que ninguém ia me querer se eu fosse gorda, coisas assim. Imagina ouvir isso com 14 ou 13 anos, quando se aceitar já não é fácil. Eu sei que a intenção do pessoal não era má, não era gratuito - até porque se gratuitamente me chamavam de gorda, na escola, por exemplo, eu mandava pastar e pronto -, mas com toda essa pressão minha vontade era abrir a geladeira e comer todos os danoninhos da casa... Hoje eu rio, mas na época foi doloroso.
Hoje eu emagreci bem, mas foi sobretudo por causa do andamento da minha vida - prestei um concurso militar que tinha corrida como prova eliminatória, e aí acabei pegando gosto por correr por conta dos treinamentos e foi assim que perdi peso. Nunca fiz nenhuma dieta enlouquecida nem tomei remédios, graças a Deus. Imagina se na época que todo mundo ficava fazendo piada comigo eu tivesse ido por esse caminho, de ficar sem comer ou tomar qualquer coisa "milagrosa" pra ficar magra. Em nome da "saúde", vejo muita gente acabando com ela. Enfim... Só queria compartilhar que essa questão de "ser gordo é feio" é velha, já vou fazer 30 anos e sofri com isso quando era mais jovem. Fico triste de ver que não evoluímos tanto assim, mas espero que a geração da Júlia consiga superar esses estigmas. Com uma mãe como você, sei que a Júlia vai ajudar muito nesse caminho de mudanças =)
Um bjo mto carinhoso, acompanho seu blog há anos e tenho muita admiração por você.

Minha filha sempre foi super magra, sempre com a curva abaixo da média, desde que nasceu.
E agora, aos 9, tem medo de ficar gorda.
É incrível como essas coisas surgem e a gente nem sabe como. Dá medo.

Lendo seu post recente sobre o Projeto de lei que proíbe o casamento de adolescentes com 16 anos ou menos, resolvi buscar posts anteriores no link de Questões de gênero e como os mais recentes já havia lido, fui retrocedendo até encontrar esse aqui que achei bem interessante. Não sou mãe ainda (quem sabe um dia..) mas lembro que durante minha infância a questão do peso já demonizado pelos adultos nas crianças. Sempre fui magrela mas achava terrível quando minha mãe fazia comentários maldosos sobre os filhos de outras pessoas em relação a serem gordas(os). Até hoje ela é assim e faço o possível pra não discutir cabecinha dura dela. É muito cruel o que se tem feito com nossas crianças ao longo da história e infelizmente os relatos de Philippe Ariès sobre a adultização das crianças nos séculos XV. XVI e por aí vai, nunca foram tão atuais..

P.S.: Fiquei boba, pois não sabia que você era gorda, Valéria!Tenho a ideia equivocada de que gente gordinha sempre tem bochechas cheias (meus rimos e meu namorado, por exemplo! rsrs) e como a foto do seu perfil aqui na página não demonstrava, me surpreendi! Desculpe a ousadia, mas acabei ficando curiosa (não sou uma psicopata, não se preocupe!) e fui pesquisar na internet por você - já que não sou chegada a redes sociais como twitter e instagran - e encontrei uma foto linda com a Júlia:

http://sites.correioweb.com.br/app/50,114/2014/03/24/noticia_saudeplena,148028/praticar-exercicios-fisicos-com-os-filhos-logo-apos-o-parto-e-possivel.shtml

Será que essa sling influenciou o gosto de Júlia pela cor amarela? ^.^

Abraços e parabéns pelos posts!

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