quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Discutir Gênero é importante, nas escolas é fundamental!


Estamos às vésperas de um novo governo que prometeu implementar o Escola Sem Partido.  Já falei do projeto aqui, não pretendo explicar em minúcias, mas  tudo começou com uma ideia de combater doutrinação política nas escolas, algo que existe, à esquerda e à direita, também, para quem se faz de inocente, e se desdobrou em um projeto obscurantista de patrulha dos conteúdos e das discussões fundamentais para a formação de pessoas completas e capazes de tornas nosso mundo melhor.  E parto do princípio que você acredita que é possível construir um mundo melhor para todos e todas, não ao estilo The Handmaid's Tale, OK?  Se não acredita, pare de ler aqui e siga adiante, vai ser perda de tempo.

Pois bem, explicando de novo, porque é fundamental ao texto, gênero se remete aos papéis sociais que desempenhamos, as expectativas que a sociedade projeta em nós (*texto detalhado aqui*).  Daí, termos cor de menino e de menina.  Brinquedos direcionados a desenvolver certos aspectos de nossa afetividade e inteligência, codificados por cores, para que sejam vistos como para um ou outro sexo.  Só que muita gente acredita que isso tudo, que é normal hoje, mas não seria em 1970, ou em 1890, ou para todas as classes sociais, ou em todas as culturas mesmo hoje, é NATURAL.  Já houve momento em que quando desvelávamos essas coisas, as pessoas ficavam animadas, hoje, por causa da propaganda mentirosa ligada a tal "ideologia de gênero" e ao "kit gay", duas coisas que não existem, as pessoas, muitas delas bem intencionadas, tem medo.
Crianças deveriam ser livres para brincar.
Primeira coisa, gênero, ou sexo social, tem a ver com comportamentos e atitudes.  Nada se remete a desejo.  Meninas tomboy, aqui, no Brasil, chamavam de moleque macho em alguns lugares, na maioria das vezes só queriam se divertir da forma como os meninos se divertiam e isso nada tinha a ver com sexualidade (*hetero, homo, bi, whatever*).  Subir em árvore, se sujar de lama, brincar de polícia e ladrão nunca tornaram uma menina um menino, da mesma forma que um menino brincar de boneca e casinha não o tornava uma menina.  No entanto, os papéis muitas vezes são rigidamente impostos.  Eu já vi uma menininha de uns três anos ser repreendida por querer brincar da bola.  Perdia a conta do tanto que já ouvi de absurdos quando é um menino que quer brincar com coisas de menina, ou com as meninas.  Nesse caso, a sociedade tende a ser ainda mais violenta e castradora.

Mas o que eu queria comentar mesmo?  Ah, sim!  Li (*1 - 2*) sobre o programa Encontro da Fátima Bernardes e o confronto entre a apresentadora e Martinho da Vila.  Ele, um homem de 80 anos, expressou sua incapacidade de entender a diferença entre assédio e paquera:  "Tem um lance. O cara que é solteiro, descompromissado, ele tá com problema pra quando ele… Ele conseguir chegar numa mulher… ‘Meu Deus, o que não é assédio? Qual é a maneira que vou chegar nela e que não é assédio?’ Isso também é uma questão".  Por qual motivo eu escrevi a idade dele?  Porque efetivamente há um problema geracional envolvido.  
Fátima e Martinho da Vila discutiram sobre assédio e paquera.
A maioria dos homens que foi jovem nos anos 1950-60 certamente não aprendeu a diferenciar assédio de paquera, talvez alguns nem saibam separar sexo de estupro, e, mais provavelmente ainda, mulher sozinha em uma festa ou cinema, na condução, ou em qualquer espaço público, para homens dessa geração, deve estar ali pedindo atenção.  Obviamente, se ela é casada, ou está acompanhada, cabe respeitar não a ela, mas ao homem ao qual ela pertence.  Fora o poder dado aos homens de arrumar as mulheres em caixinhas, as repeitáveis, para casar, e as outras.  Sabe, privilégio masculino?  Pois é, às mulheres nem cabia dizer "não", porque esses mesmos homens aprenderam muitas vezes que mulheres dizem "não" quando querem dizer "sim".  As que sempre dizem "sim" são as que não valem a pena. 

Obviamente, o fato de um sujeito não entender, não quer dizer que a gente não precisa e deve explicar e marcar posição.  Aliás, aí entra a questão da educação, se educarmos novas gerações, não teremos que consertar adultos.  A apresentadora, Fátima Bernardes, rebateu: "Engraçado que essa é uma questão masculina, mas não é uma questão feminina. A gente sabe quando é a paquera e quando é o assédio. Muitos homens ainda pensam em qual seria essa diferença. Para as mulheres, é muito mais tranquilo. É quando ela não se sente invadida de alguma maneira. Quando aquilo é algo que a faça sentir enaltecida, não ameaçada".
Rayane, 16 anos, foi brutalmente assassinada.
Quando uma mulher se sente ameaçada, quando tem seu espaço invadido, quando diz "não" e aquilo é interpretado como "sim", ou "talvez", é assédio.  Daí, a gente tem esse tipo de notícia "Segurança é preso e confessa ter matado Rayane após oferecer carona para a jovem em Guararema, diz polícia", a introdução do texto diz o seguinte "Para polícia houve estupro, mas Michel Flor da Silva alega que relação sexual foi consensual e que depois adolescente "surtou". Homem, que também é capoeirista, afirma que deu um golpe na jovem, que desmaiou, e depois a levou a outra área, onde a asfixiou com cadarço."  A moça tinha 16 anos, poderia ser minha filha.  O assassino tem 28 anos.  A leitura da notícia completa mostra que a polícia não acredita na versão do sujeito, que houve consentimento, que ele se mostra frio e sua história não confere.  

A garota estava desaparecida desde 20 de outubro, quando fora a uma festa com o consentimento dos pais.  Não, não pare para discutir a moral da moça, foque na atitude do sujeito.  A gente chama isso de masculinidade tóxica, não raro, termina em feminicídio.  Mas há quem defenda, e não são poucas pessoas, que não se pode discutir gênero, isto é, comportamentos e expectativas em relação a sexo feminino e ao masculino, e ensinar que "não" é "não" para os meninos, que isso seria bom para o conjunto da sociedade.  Mesmo um cara legal, pode escorregar em algum momento, se tivesse sido ensinado, na escola, em casa, pelas mídias em geral, talvez teríamos menos mulheres mortas, ou com medo. 
"Não", "Talvez", "Sim".
Falando no medo, toda menina aprende a ter esse sentimento desde pequena, mas, segundo alguns, se nos derem armas, estaremos mais seguras.  Ah, mas arma custa caro, sabe? E mulheres recebem menos que os homens na média... Mas é porque engravidam, problema nosso, enfim.  De repente, se não falarmos do problema, ele desaparece.  De repente, nem existe um problema, é tudo coisa da cabeça das feministas... 

Brincadeiras sem graça à parte, espero que eu tenha me feito compreender.  Comportamento a gente pode aprender e mudar.  Mesmo comportamentos que são sociais, isto é, coletivos, mudam ao longo do tempo, podem ser transformados e reinventados.  Tanto é assim, que podemos olhar para os anos 1950 e poucas pessoas, em nosso país, imaginariam mulheres militares que não fossem enfermeiras, havia, inclusive, quem não as queria nem nessa função, hoje, a despeito de resistências, temos mulheres se preparando para carreiras combatentes.  Da mesma forma, as relações entre os sexos, devem se pautar em respeito e escolha.  Mas a patrulha ideológica reacionária e burra chegou a tal ponto que até quadrinhos querem censurar no Brasil de nossos dias, basta sentirem cheiro de alguma discussão ligada à papéis de gênero.
A ideia de consentimento foi construída na Idade Média. 
Aliás, lembrando de uma historiadora que eu aprendi a gostar muito, Reginé Pernoud, não foram as feministas que inventaram o primeiro rascunho de consentimento, mas a Igreja Católica quando impôs, porque foi na marra mesmo, que os noivos precisavam dizer "sim" no altar.  Sem consentimento, o casamento não é válido.  Consentir.  Obviamente, o fato do consentimento ter sido inventado na Idade Média, não quer dizer que a coisa funcionava direito, que crianças não eram levadas a consentir por seus pais e responsáveis, que não havia uma série de obrigações sociais acima da vontade dos noivos, não pensem que é isso que eu estou afirmando, estou apontando quando a ideia surgiu, o que eu estou afirmando é que a ideia de consentimento não foi uma invenção das esquerdas, dos comunistas, das feministas.  Consentir é fundamental, porque está ligado ao respeito pelo próximo. 

Ideias ainda fortes de que os homens se comportam mal com as mulheres que não se comportam, só legitima a violência.  Há mulheres que saem na defesa dos homens "que se comportam mal" dizendo que se sentem felizes em serem assediadas.  Não raro, são da mesma geração de Martinho da Vila.  Agora, não é difícil separar "assédio" de "paquera", o que não quer dizer que um "não" será sempre um "não", se houver convivência, se a outra pessoa aprender a apreciar o interessado, ou sua mudança de atitude, enfim, se a pessoa interessada souber persistir de forma não abusiva.  É isso.  Gênero deveria ser elemento transversal e alvo de discussão em várias, ou todas as disciplinas, porém, talvez um professor, ou professora, termine criminalizado por trazer questões como essa para sala de aula, ou palestras, ou o que seja, porque, para muita gente, isso é doutrinação e respeito ao próximo, direitos das mulheres, enfim, são temas de esquerda.  Triste momento esse em que vivemos.

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