Estamos às vésperas de um novo governo que prometeu implementar o Escola Sem Partido. Já falei do projeto aqui, não pretendo explicar em minúcias, mas tudo começou com uma ideia de combater doutrinação política nas escolas, algo que existe, à esquerda e à direita, também, para quem se faz de inocente, e se desdobrou em um projeto obscurantista de patrulha dos conteúdos e das discussões fundamentais para a formação de pessoas completas e capazes de tornas nosso mundo melhor. E parto do princípio que você acredita que é possível construir um mundo melhor para todos e todas, não ao estilo The Handmaid's Tale, OK? Se não acredita, pare de ler aqui e siga adiante, vai ser perda de tempo.
Pois bem, explicando de novo, porque é fundamental ao texto, gênero se remete aos papéis sociais que desempenhamos, as expectativas que a sociedade projeta em nós (*texto detalhado aqui*). Daí, termos cor de menino e de menina. Brinquedos direcionados a desenvolver certos aspectos de nossa afetividade e inteligência, codificados por cores, para que sejam vistos como para um ou outro sexo. Só que muita gente acredita que isso tudo, que é normal hoje, mas não seria em 1970, ou em 1890, ou para todas as classes sociais, ou em todas as culturas mesmo hoje, é NATURAL. Já houve momento em que quando desvelávamos essas coisas, as pessoas ficavam animadas, hoje, por causa da propaganda mentirosa ligada a tal "ideologia de gênero" e ao "kit gay", duas coisas que não existem, as pessoas, muitas delas bem intencionadas, tem medo.
Crianças deveriam ser livres para brincar. |
Mas o que eu queria comentar mesmo? Ah, sim! Li (*1 - 2*) sobre o programa Encontro da Fátima Bernardes e o confronto entre a apresentadora e Martinho da Vila. Ele, um homem de 80 anos, expressou sua incapacidade de entender a diferença entre assédio e paquera: "Tem um lance. O cara que é solteiro, descompromissado, ele tá com problema pra quando ele… Ele conseguir chegar numa mulher… ‘Meu Deus, o que não é assédio? Qual é a maneira que vou chegar nela e que não é assédio?’ Isso também é uma questão". Por qual motivo eu escrevi a idade dele? Porque efetivamente há um problema geracional envolvido.
Fátima e Martinho da Vila discutiram sobre assédio e paquera. |
Obviamente, o fato de um sujeito não entender, não quer dizer que a gente não precisa e deve explicar e marcar posição. Aliás, aí entra a questão da educação, se educarmos novas gerações, não teremos que consertar adultos. A apresentadora, Fátima Bernardes, rebateu: "Engraçado que essa é uma questão masculina, mas não é uma questão feminina. A gente sabe quando é a paquera e quando é o assédio. Muitos homens ainda pensam em qual seria essa diferença. Para as mulheres, é muito mais tranquilo. É quando ela não se sente invadida de alguma maneira. Quando aquilo é algo que a faça sentir enaltecida, não ameaçada".
Rayane, 16 anos, foi brutalmente assassinada. |
A garota estava desaparecida desde 20 de outubro, quando fora a uma festa com o consentimento dos pais. Não, não pare para discutir a moral da moça, foque na atitude do sujeito. A gente chama isso de masculinidade tóxica, não raro, termina em feminicídio. Mas há quem defenda, e não são poucas pessoas, que não se pode discutir gênero, isto é, comportamentos e expectativas em relação a sexo feminino e ao masculino, e ensinar que "não" é "não" para os meninos, que isso seria bom para o conjunto da sociedade. Mesmo um cara legal, pode escorregar em algum momento, se tivesse sido ensinado, na escola, em casa, pelas mídias em geral, talvez teríamos menos mulheres mortas, ou com medo.
"Não", "Talvez", "Sim". |
Brincadeiras sem graça à parte, espero que eu tenha me feito compreender. Comportamento a gente pode aprender e mudar. Mesmo comportamentos que são sociais, isto é, coletivos, mudam ao longo do tempo, podem ser transformados e reinventados. Tanto é assim, que podemos olhar para os anos 1950 e poucas pessoas, em nosso país, imaginariam mulheres militares que não fossem enfermeiras, havia, inclusive, quem não as queria nem nessa função, hoje, a despeito de resistências, temos mulheres se preparando para carreiras combatentes. Da mesma forma, as relações entre os sexos, devem se pautar em respeito e escolha. Mas a patrulha ideológica reacionária e burra chegou a tal ponto que até quadrinhos querem censurar no Brasil de nossos dias, basta sentirem cheiro de alguma discussão ligada à papéis de gênero.
A ideia de consentimento foi construída na Idade Média. |
Ideias ainda fortes de que os homens se comportam mal com as mulheres que não se comportam, só legitima a violência. Há mulheres que saem na defesa dos homens "que se comportam mal" dizendo que se sentem felizes em serem assediadas. Não raro, são da mesma geração de Martinho da Vila. Agora, não é difícil separar "assédio" de "paquera", o que não quer dizer que um "não" será sempre um "não", se houver convivência, se a outra pessoa aprender a apreciar o interessado, ou sua mudança de atitude, enfim, se a pessoa interessada souber persistir de forma não abusiva. É isso. Gênero deveria ser elemento transversal e alvo de discussão em várias, ou todas as disciplinas, porém, talvez um professor, ou professora, termine criminalizado por trazer questões como essa para sala de aula, ou palestras, ou o que seja, porque, para muita gente, isso é doutrinação e respeito ao próximo, direitos das mulheres, enfim, são temas de esquerda. Triste momento esse em que vivemos.
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