segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Comentando Infiltrado na Klan (EUA, 2018)


Terça-feira fui assistir Infiltrado na Klan (BlacKkKlansman), filme do diretor Spike Lee que conta a incrível história de um policial negro que, nos anos 1970, conseguiu se tornar membro da Ku Klux Klan, a mais famosa de todas as organizações racistas dos Estados Unidos.  O filme consegue fazer um panorama de como os discursos e práticas racistas e antissemitas conseguem se adaptar aos novos tempos, sobreviver, e como as resistências também devem criar estratégias para minar-lhes os espaços.  É um filme forte, cinema de resistência, por assim dizer, em um momento no qual os bons parecem estar perdendo o jogo.  Infiltrado na Klan se encerra com imagens reais e dramáticas das manifestações de 2017 em Charlottesville, Virginia.  O filme de Spike Lee merece ser lembrado nas principais premiações e, acredito, Topher Grace tem grandes chances de levar prêmios de ator coadjuvante por sua interpretação do infame David Duke.

Resumir o filme não é difícil, não a trama central da película.  Década de 1970, Ron Stallworth (John David Washington) é o primeiro policial negro de Colorado Springs.  Depois de conseguir ser transferido da seção de arquivos para o trabalho nas ruas, ele consegue travar contrato por telefone com membros da célula local da Klan e é aceito.  Sendo negro, ele precisa de um substituto para participar das reuniões da organização racista e acaba sendo ajudado por um colega, o policial judeu Flip Zimmerman (Adam Driver).  A farsa vai tão longe que Stallworth consegue, inclusive, enganar o líder da KKK, David Duke (Topher Grace).


Cartaz muito bem humorado.
Infiltrado na Klan foi um dos melhores filmes que assisti este ano, talvez, dada a sofisticação da narrativa e os recursos utilizados, inclusive a intertextualidade, pois o filme está em diálogo o tempo inteiro com outras obras cinematográficas e com a própria História, fatos passados e futuros em relação à narrativa.  Mesmo falando de um acontecimento específico, que é embelezado para a película, temporalmente localizado, Infiltrado na Klan nos leva a refletir tanto sobre o racismo e suas manifestações no passado dos EUA, quanto sobre as expressões de ódio dos supremacistas brancos em nossos dias, pois termina com os acontecimentos de Charlottesville, um discurso de David Duke, e as cenas terríveis do atropelamento de 35 manifestantes antifascistas e da fala complacente do presidente do país, Donald Trump, para com os racistas agressores.  

O filme me fez pensar, também, em nosso país.  Principalmente, numa cena, na qual o Sargento Trapp (Ken Garito), superior do protagonista, diz para Stallworth que a Klan quer mudar sua forma de atuação, infiltrando gente como David Duke na política, e o policial negro retruca que um idiota como ele nunca seria eleito. O sargento ri e responde algo como “Você está sendo muito ingênuo.”.  Certamente, Spike Lee inseriu esse diálogo em referência à Trump, mas poderia se aplicar ao nosso país.  Vide quantos analistas – eu inclusive pensava assim – que negavam qualquer possibilidade de ver o candidato da extrema-direita eleito presidente e eis que ele conseguiu e com grande apoio popular.


Stallworth engana David Duke.
Infiltrado na Klan abre com a colossal cena de E o Vento Levou (*um filme que eu amo*), com Scarlett O’Hara desesperada em busca do Dr. Mead, pois precisava de um médico para Melany que estava em trabalho de parto.  Egoísta (*se bem que essa não seja questão do filme*), ela ignora os milhares de soldados feridos ou mortos depois da batalha de Atlanta (22/07/1864).  Vocês podem assistir a cena completa aqui.  A sequência está inserida dentro de um filme (*Infiltrado na Klan*) que está dentro de outro filme, uma propaganda da Klan apresentada pelo líder racista Dr. Kennebrew Beauregard (Alec Baldwin).  O Velho Sul foi atraiçoado, é o que E o Vento Levou sinaliza, mas ele renasce vigoroso com a Ku Klux Klan.  Daí, entram as cenas de O Nascimento de uma Nação (The Birth of a Nation), de 1915.  Trata-se da primeira utilização do filme monumental de D. W. Griffith, um dos fundadores do cinema.  

O filme fez um sucesso tão grande que ressuscitou a Klan, romantizando suas origens, reforçando seus principais temores e bandeiras, ajudando a construir a simbologia do grupo, inclusive inventando a tal história de queimar cruzes.  Sessões de O Nascimento de uma Nação serviam para arrecadar recursos para a KKK.  Segundo consta, Griffith nunca se perdoou pelo efeito que seu filme causou.  E, sim, trata-se de um grande filme até hoje.  Terrível e, ao mesmo tempo, um dos melhores exemplares do cinema em seus primórdios.  Daí, o impacto emocional da película sobre as audiências da época e mesmo depois. Mais tarde, os membros da célula da Klan fazem uma sessão privada de O Nascimento de uma Nação, se emocionam e vibram com o heroísmo dos cavaleiros da Klan.  Aquela, pensam eles, é sua história e cabe recuperar a dignidade (*e privilégios*) dos brancos em um momento no qual as minorias, especialmente os negros, queriam ter sua voz ouvida.  


Topher Grace será indicado ao Oscar.
Infiltrado na Klan recorre ao cinema ainda outra vez ao discutir a recepção do Blaxploitation, o primeiro gênero de cinema étnico produzido nos EUA.  Com protagonistas e histórias centradas em personagens afro-americanos, ele foi visto tanto como uma forma de empoderamento pelos negros, quanto como um perpetuador de estereótipos que se fazem presentes até nossos dias sobre os afro-americanos.  É possível ver essas duas leituras na discussão entre Stallworth e sua namorada politizada, Patrice Dumas (Laura Harrier).  Agora, o que prevalece é que este tipo de cinema, assim como o discurso dos Panteras Negras ou do “Black is beautiful” tiveram um impacto enorme sobre a comunidade afro-americana.  Mesmo aqueles que não eram propriamente politizados, não estavam alheios às mudanças e conflitos.

Mas a história do homem negro infiltrado foi verdadeira?  Sim, o núcleo central da história é aquele mesmo.  Stallworth revelou sua história em 2014 através de um livro, Black Klansman. O policial foi o primeiro cadete negro da polícia de Colorado Springs, em 1972.  Formou-se em 1974, com 21 anos, e foi colocado para trabalhar no arquivo.  Posteriormente, foi escalado para uma missão disfarçado na qual deveria observar a palestra dada pelo líder negro e ex-Pantera Negra Kwame Ture (Corey Hawkins), que faz um dos grandes discursos do filme.  A partir daí, ele sai dos arquivos e passa a trabalhar em missões na rua.  A infiltração na Klan se dá em 1978.  No filme, fica parecendo que tudo aconteceu rápido, em poucos meses, se muito, mas foram anos de trabalho e afirmação para Stallworth.  O filme situa a ação em 1972 e podemos ver cartazes de campanha de reeleição de Nixon em uma das cenas.


O verdadeiro Stallworth.
O que não se sabe até hoje, por questões de segurança, afinal, seu rosto era de conhecimento dos membros da célula da Ku Klux Klan, é o nome do parceiro do policial.  Colocá-lo como judeu foi uma forma de acrescentar tensão ao filme, porque a personagem de Adam Driver, que está muito bem na película, também pertenceria a um dos grupos perseguidos pela Klan.  A organização nativista não discriminava somente negros, mas qualquer um que não fosse WASP, isto é, branco, anglo-saxão e protestante.  Além disso, tinha aversão por ideologias de esquerda, daí ser anticomunista, também.  

Há quem não lembre disso, mas uma pesquisa básica resolve o problema.  Aliás, no livro O Século Inacabado vol. 1, que traz artigos sobre História dos EUA, é muito interessante ver que mesmo no auge da Klan, nos anos 1920, eles enfrentaram forte resistência especialmente dos católicos de origem italiana e irlandesa.  Tentando se infiltrar no norte e no oeste do país, não raro terminavam frustrados, porque, ao contrário do sul, muitos policiais eram de origem imigrante e católicos.  Além disso, as comunidades se organizavam para resistir.  A Klan chamava a polícia e ela, ou não vinha, e os supremacistas apanhavam, ou vinha e prendia os membros da Klan. Isso, claro, quando não tinham embates com a máfia, também.  Eu adoro essa parte do livro, mas voltemos para a resenha.


Cerimônia de iniciação.
Flip Zimmerman, o policial judeu, é obrigada a repensar sua vida por causa da missão.  Ele nasceu judeu, mas era não-praticante, esquecendo-se de suas origens.  Ao se infiltrar na Klan fingindo ser Ron Stallworth, ele será confrontado e terá que reproduzir o discurso antissemita.  Aliás, pelo menos duas cenas com ele são das melhores do filme.  Uma, quando um membro alucinado da célula da KKK, Felix Kendrickson (Jasper Pääkkönen), coloca uma arma na sua cara e quer que ele se submeta a um exame em um detector de mentiras.  Stallworth, que estava na escuta, termina interferindo para salvar o colega.  A outra, quando o mesmo Kendrickson engata um discurso negacionista do Holocausto e Zimmerman diz que negar o genocídio dos judeus é negar um dos maiores feitos dos nazistas.  

Negacionistas normalmente tentam legitimar seu discurso racista esquivando-se de assumir a violência da extrema-direita contra determinadas minorias.  Seria uma questão de preservação da “raça” pura, dos valores cristãos, da família, da honra das mulheres brancas e de sua pureza, não de ódio, embora ele sempre esteja pronto a explodir.  David Duke, e repito que Topher Grace está espetacular, incorpora esse discurso mais amaciado, menos caipira e brutal, mas igualmente carregado de falácias e pronto a se materializar em atos de violência.  É aquilo, por fora bela viola, por dentro, pão bolorento. 


O detector de mentiras.
Dentro da célula da Klan, além de Kendrickson, temos Walter Breachway (Ryan Eggold), primeiro contato de Stallworth e que posa de equilibrado, apesar de ser dele o discurso incorporando os gays aos alvos da Klan (*ao que parece a célula real planejava ações contra bares gays, algo que não é explorado no filme*) e Ivanhoe (Paul Walter Hauser), o militante de QI bem abaixo da média e que se ressente de estar em situação econômica pior do que muitos negros.  Ele nem é contra os negros na TV, ou no cinema, desde que representem estereótipos, como a Tia Jemima.

Agora, se Zimmerman precisa se reconciliar com suas origens, o protagonista, Stallworth deve repensar os seus conceitos em relação a sua negritude.  Ser policial é ser um inimigo para muitos dos elementos dos movimentos negros da época.  O discurso do pantera negra Kwame Ture faz sentido para ele.  Ao mesmo tempo, ele não consegue abraçar os ideiais da namorada, Patrice, uma ativista e crê que é possível mudar o sistema de dentro.  Difícil, mas ele amava ser policial e, sim, ele tenta fazer a sua parte.  É um embate importante que permite que Stallworth, que diz para seus examinadores que nasceu em uma família estruturada e conservadora, coisa que muitos negros não tinham, possa olhar para além de seu mundinho.  E não pensem que ele não sentia o racismo na pele, ele simplesmente não tinha uma visão politizada da questão como Patrice e os outros jovens ligados aos Panteras Negras, ou ao movimento “Black is beautiful”.  E uma curiosidade, John David Washington é filho de Denzel Washington e bonito e talentoso como o pai, eu acrescento.


A importância das organizações estudantis negras.
Falando em viver e sentir o racismo, uma sequência das mais importantes é a do depoimento de Jerome Turner (Harry Belafonte) para a audiência de jovens universitários sobre o julgamento e linchamento de um companheiro de adolescência acusado de ter violentado uma mulher branca em 1917.  O caso, ilustrado com fotos reais, não sei se do assassinato do mesmo jovem que é contado no filme, ou de outro dos tantos negros (*e negras, também*) supliciados por décadas, foi um dos grandes momentos do filme.  Para quem não sabe, faziam-se cartões postais com fotos dos corpos destroçados, ou carbonizados e eles eram vendidos, pedaços dos corpos eram guardados como souvenir, dava-se feriado nas escolas para que as crianças pudessem assistir.  É esta sociedade violenta, racista, machista que dá origem à Ku Klux Klan e alimenta até hoje os movimentos do tipo nos EUA.

A escolha de Harry Belafonte, já bem idosos, foi uma homenagem de Spike Lee, porque o ator participou ativamente da luta pelos direitos civis e marchou ao lado de Martin Luther King.  Acredito que as lágrimas de atores e atrizes na audiência eram reais.  Aliás, em algumas cenas, tanto no discurso de Kwame Ture, quanto no testemunho de Jerome Turner, a câmera foca no rosto de homens e mulheres negros, a maioria jovens, mas alguns já maduros.  As expressões são muito convincentes.  Há atuação, mas há, por certo, sentimento envolvido.  Ao capturar essas reações e coloca-las em um filme de ficção que transita entre vários gêneros – policial, comédia, drama, suspense, documentário – Spike Lee produziu uma obra de grande impacto.


Menção à Angela Davis, uma das maiores
lideranças negras feministas norte-americanas.
Já caminhando para o final, falo das mulheres, porque mesmo sendo um filme sobre homens, não há mulheres policiais, nem, na célula da Klan, elas estão na película e são ativas.  Não falo somente das figurantes nas duas palestras que comentei, mas, especialmente, Patrice, a líder estudantil negra, e Connie Kendrickson (Ashlie Atkinson), a esposa engajada e impedida de participar ativamente da Klan.  Em alguma entrevista do diretor, lembro de ter lido que ele homenageou as mulheres do movimento Pantera Negra através de Patrice, uma personagem ficcional. Diferente de estágios anteriores das lutas pelos direitos dos negros, a atuação das mulheres, vide Angela Davies, foi muito ativa e visível.

Reforço o visível, porque em fases anteriores, como as lideradas por Luther King (1929-1968), ou mesmo Malcolm X (1925–1965), as mulheres não estavam a frente do movimento.  Participavam, eram presas, vide Rosa Parks, mas o protagonismo era masculino, mesmo quando elas tinham posições de liderança, seu papel era subestimado, ou elas eram ignoradas quando era importante negociar com as autoridades.  Em seus funerais, não raro eram descritas como “doces”, “de fala mansa”, “nunca raivosas”, “apoiadoras”, enfim, imagens femininas subordinadas e acolhedoras. O movimento dos direitos civis nunca teve interesse em acabar com todas as formas de opressão.  O que aconteceu no caminho?  A ascensão do movimento feminista.  


Um dos destaques é o figurino de Marci Rodgers.
As mulheres como Patrice não são somente militantes do movimento negro, são feministas, questionam papéis de gênero, daí, sua posição de liderança e sua visibilidade.  Se quando os Panteras Negras surgiram, o lugar das mulheres deveria ser o de retaguarda, o feminismo fez com que elas assumissem, também, a vanguarda dentro do movimento.

Já as mulheres da Klan, estão sempre em posições subordinadas.  Connie compartilha dos mesmos ideais de seu marido, sua função, no entanto, é servir quitutes e bebidas e se afastar.  Quando há a cerimônia de iniciação dos novos membros da Klan, esposas e namoradas aguardam do lado de fora.  Uma mulher não pode ser um “cavaleiro da Klan”, esse não é seu lugar.  Como a organização assume um discurso de retorno ao paraíso perdido defendido pelos que acreditam na “ideologia de gênero”, cabe às mulheres se conformarem ao seu papel subalterno.  Connie sabe que deve servir à organização e aguardar que, um dia, eles lhe deem alguma função para além do quarto e da cozinha.  Outras, talvez, se contentem somente com isso mesmo.   E acredito que o filme não cumpre a Bechdel Rule, pois quando duas mulheres com nomes conversam é sobre algum homem.  De qualquer forma, as mulheres têm papel importante na película, mas o filme, como o nome mesmo diz é sobre um, na verdade, dois homens.


Connie tem sede de ação.
Um dos méritos do filme, aliás, é representar as mulheres da Klan como apoiadoras e instigadoras, não somente como mulheres conformadas e assustadas, vítimas de maridos violentos, como em tantos outros filmes por aí.  As mulheres racistas existem, ainda que seu poder e autoridade seja delegado e nisso Infiltrado na Klan se afasta de Histórias Cruzadas e 12 Anos de Escravidão que apresentam mulheres racistas quase como autônomas na sua opressão contra os negros.  Outro ponto positivo do filme é retratar as formas de violência policial contra negros e negras e que, no caso delas, o estupro poderia ser um deles.  E, não, a cena redentora com todos cooperando para pegar o policial racista e assediador não é um dos pontos altos do filme, mas uma das cenas mais inverossímeis, ainda que sirva para afirmar que o corporativismo é uma das chagas do sistema e que ele só mudaria se os “bons policiais”, no caso, os não racistas, denunciassem os “maus policiais”.

Acredito que já cobri os principais pontos, se comentar mais, serão spoilers mais do que qualquer coisa.  Cabe pontuar, entretanto, que a investigação real de Stallworth não resultou em ações que impediram atentados, mas na localização de sujeitos da organização racista infiltrados em altos cargos do governo e das forças armadas. Os planos da Klan foram frustrados, mas a missão ficou em segredo.  Algo que o filme mostra é Stallworth jogando fora seu cartão de membro da Klan, o policial, na verdade, guarda o documento em um lugar de honra como prova de que realmente enganou os racistas.  Uma cena do filme que ficou ótima e foi criada para ele é quando Stallworth foi escalado para segurança de David Duke e pede uma foto com o racista.  Fiquem atentos à sequência.


Emocionante participação de Harry Belafonte.
De resto, ao terminar com os protestos de Charlottesville, em 2017, o filme ostra que a questão racial – mesclada com tantas outras – continua central nos EUA, que o ódio às minorias está mais do que vivo e somente a resistência pode impedir que organizações como a Ku Klux Klan e outras voltem a ganhar poder e intimidar as pessoas. Mais ainda, há o medo de que as organizações democráticas possam ser infiltradas por ultradireitistas, algo cada vez mais real no mundo.  

O filme fecha com uma homenagem à Heather Heyer, morta pelo neo-nazista James Alex Fields Jr. que atirou seu carro contra uma passeata pacífica.  Heyer foi a única vítima fatal, mais de 30 pessoa sforam feridas.  Infiltrado na Klan termina com um R.I.P., não o famosos “Rest in Peace” (Descanse em Paz), mas com “Rest in Power” (Descanse no Poder).  E se eu tivesse que definir o filme em uma palavra usaria “poderoso”.  Espero que ganhe muitos prêmios e inspire muita gente.


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