sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Comentando Vice (EUA, 2018)


Um dos concorrentes ao Oscar de melhor filme, além de outros sete prêmios, é Vice.  Trata-se de uma dramédia, por assim dizer, que tem como protagonista um vilão com "V" maiúsculo.  Sim, o cara mau é o centro do filme e a película não tem o objetivo de mostrar como ele se ferrou no final, adianto logo, porque ele está vivo, muito rico e passa bem.  Na verdade, Vice mostra como os maus podem prevalecer em um mundo como o nosso.  O filme é excelente por si mesmo, ainda que possa exagerar o protagonismo de Dick Cheney em alguns momentos da recente história dos Estados Unidos, mas deve ser lembrado, e deveria ser premiado, pelo desempenho de Christian Bale e de Amy Adams, que são os maiores responsáveis pela grandeza do filme.

Vice é uma biografia ficcional de Dick Cheney, vice-presidente de George W. Bush Jr. (Sam Rockwell) entre 2001 e 2009, enfatizando o caráter maquiavélico do protagonista, sua capacidade de fazer tudo que fosse necessário para alcançar seus objetivos, neste caso, a riqueza, o poder e, sim, a supremacia política e militar dos EUA.  O filme tem um narrador, Kurt (Jesse Plemons), que faz algumas aparições e cuja identidade é revelada somente no final da película.  Vice também destaca a importância de Lynne (Amy Adams), esposa de Cheney, para o progresso na carreira do protagonista, com seu apoio e visão política.  
Um homem que ama o poder.
Se você não muito novinho, nem acredita que o quarto avião do ataque em 11 de Setembro foi derrubado pelos heroicos passageiros, o filme já abre reforçando a versão dos fatos que muita gente crê ter sido a verdadeira, Cheney deu a ordem de derrubada do avião que iria atingir a Casa Branca.  E, bem, Dick Cheney no filme é apresentado como o sujeito capaz de tudo pelo poder e pelo dinheiro, insensível ao sofrimento dos mais fracos e, o mais importante, perceptivo dos ventos de mudança e capaz de mudá-los, se necessário e possível, a seu favor.  Ele também é um fiel membro do partido republicano e não um sujeito que aderiu, como o filme sugere, encantado pelo carisma de Donald Rumsfeld (Steve Carell).

Não sei vocês, mas sempre me dá gosto ver um vilão tão inteligente agindo e o filme é de um humor negro refinadíssimo.  Basta alguns minutos da película para entender o motivo de Christian Bale ter agradecido ao diabo pela inspiração, quando recebeu o Globo de Ouro de Melhor ator por comédia e musical.  Sei que a balança está pendendo mais para o lado de Rami Malek, por sua interpretação de Freddie Mercury, mas acredito que Bale mereça mais.  Aliás, peguem lá minha resenha de Bohemian Rhapsody e vejam que eu reconheço o talento de Malek, mas não fiz toda essa festa, não.  Eu não estou mudando de ideia, mas confirmando uma expectativa.
A vitória de Jimmy Carter foi uma derrota para Cheney. 
Ele sempre foi republicano, ao contrário do que o filme sugere.
Só que Vice, que é um filme que usa de recursos narrativos muito interessantes, como os cortes abruptos, a não linearidade, o final falso para um novo recomeço, não foi um estouro de bilheteria.  Não é um filme ácido, mas é um filme cruel e que pisa nos calos de muita gente.  Ao expor as entranhas da política norte-americana, a intervenção em outros países e crimes cometidos contra civis, talvez alguns tenham se ofendido.  Mas, claro, em um país livre e que se orgulha disso, um filme como Vice pode ser feito e exibido sem grandes problemas.  Estou enfatizando isso, porque, em nosso país, censura parece estar voltando à moda de uma forma muito perigosa.

Um dos meus sites de referência, o History vs Hollywood, apontou uma série de problemas no filme, uns bem pertinentes e alguns que considero exagerados.  Por exemplo, a interpretação de que o drama familiar dos Cheney em relação à filha mais jovem, que é lésbica assumida, foi apresentado de forma imprecisa e corrida.  Eles apontam, também, que Cheney não foi o responsável por expor a identidade da agente da CIA Valerie Plame como vingança pelas matérias que seu marido jornalista fez expondo a mentira sobre armas de destruição em massa para legitimar o ataque ao Iraque.  Olha, nisso já não acredito, mas, por causa de Vice, acabei encontrando a resenha do filme Jogo de Poder, que é sobre Plame e o marido.  Vale ler como complementação.  E o filme é muito bom, pelo que me recordo.

Cheney trabalhou para petrolíferas que
lucraram muito com a guerra do Iraque.
Sim, Vice pode ter superdimensionado o caráter vilanesco de Cheney, mas é mais que sabido hoje da manipulação da opinião pública e as cenas dos grupos de opinião são ótimas.  Uma das melhores partes é quando os republicanos querem impedir uma lei de taxação das grandes heranças, poupando os mais ricos, e testa o poder das palavras.  E se usassem a mídia (*o papel da Fox News é destacado no filme*) para focar na herança jogando os cidadãos comuns contra uma medida?  Os pobres e não somente eles, porque até um vídeo de época com Whoopy Goldeberg se revoltando contra a lei apareceu no filme, se revoltam com a possibilidade de serem tributados.  A taxa atingiria os ricos, na verdade, os muito ricos, mas os pobres acreditam que eles serão os atingidos.  Bingo!.     

Hoje é mais que sabido que, para justificar uma guerra contra o Iraque, acusando o país de ter armas de destruição em massa, todos os meios foram utilizados, inclusive retirar um brasileiro, José Bustani, da presidência da agência das Nações Unidas responsável por monitorar a existência de armas químicas. Na verdade, o objetivo da ação contra o Iraque, que nada tinha a ver com o 11 de Setembro, era se apossar do petróleo do país.  Se você estiver minimamente atento e não tiver embarcado no FlaXFlu sobre a Venezuela, deve estar percebendo que, mais uma vez, as mesmas estratégias estão em andamento.  Pouco antes de continuar a escrever essa resenha, já havia mortos na fronteira com o Brasil, ou assim parece.  Sim, neste caso, estaremos envolvidos, na verdade, acredito que os EUA esperam que façamos o trabalho sujo.

Nos EUA, ser primeira-dama é algo muito importante.
O filme não poupa os políticos norte-americanos de críticas, especialmente, os republicanos, mas há a inserção de um discurso de Hillary Clinton apoiando a Guerra contra o Iraque feita em bases absolutamente falsas.  Fala-se do surgimento do ISIS e do papel dos Estados Unidos nessa desgraça.  Há grande destaque para como as políticas neoliberais, essas mesmas que querem implantar no Brasil definitivamente agora, favoreceram os mais ricos e tornaram os pobres ainda mais pobres e não somente fora dos EUA, mas lá, também.  Não é um filme bonito, mas é um filme necessário.  Uma cena ótima com o grupo político de Cheney é quando se discute a tortura.  "Os EUA não torturam, então, o que fizemos no caso X ou Y não foi tortura."  Realmente... 

Mas vou desviar a análise do filme de Cheney, o protagonista, para alguém muito importante para a história, sua esposa,  Lynne é interpretada de forma espetacular por Amy Adams.  Poucas vezes a representação da esposa de um político poderoso e seu papel para que ele se tornasse o que se tornou foi tão bem retratada.  O filme é sobre ela, também, isso precisa ser dito, especialmente, em uma análise feminista do filme.  A personagem de Adams é apresentada como uma mulher muito inteligente, alguém extremamente capaz, porém, que se vê nascida com o sexo errado.  Lynne acredita que precisa de um homem que possa realizar por ela os feitos que gostaria.  
Lynne compartilha do poder, ela é parte do sucesso do marido.
Mulheres não se tornam presidentes, ou CEOs de uma grande companhia, ela diz algo assim em uma discussão com o marido.  Lynne era mulher extremamente educada, primeira de sua turma, e muito bem formada para os padrões da época (*ela chegará até o doutorado*), só que ela não sonhava altos vôos para si individualmente, ela os projetava no marido.  Na época, Cheney parecia condenado ao fracasso, duas vezes expulso de Yale (*Já imaginou isso?*), ele corria o risco de ser um red neck qualquer, terminar seus dias como trabalhador braçal.  Lynne o coloca na parede, ela não queria ser a esposa de um zé qualquer, ela poderia escolher outro homem e ajudá-lo a subir na vida.  É uma das cenas chave do filme, fundamental para entendermos o caráter de um e de outro.  

Uma característica positiva de Cheney, por assim dizer, é que ele é um homem de família.  E, claro, para quem desejava um futuro político nos anos 1960, ainda mais dentro de um espectro político conservador, ser divorciado, ter uma família destruída, seria uma péssima credencial.  Não estamos ainda na Era Trump, ou Bolsonaro, muito pelo contrário.  Ele quer ficar com Lynne, precisa dela, sabe o quão astuta e inteligente ela é, por isso, Cheney luta para merecê-la.  É possível por causa de Lynne fazer uma ponte entre Vice e outro filme concorrendo à premiações, A Esposa.   
Ele tem orgulho do homem que criou.
Tal e qual a personagem de Glenn Close, a de Amy Adams é peça fundamental no sucesso do marido. Só que Lynne não se coloca nas sombras, porque primeiras-damas tem deveres públicos a cumprir.  Lynne não está à margem do poder, ela é co-participante das ações do marido.  E, o mais importante, tem sua importância reconhecida por ele.  Houve reclamação de que Lynne não teria sido responsável pela eleição do marido ao Congresso em 1979 (*acho*).  Nem acredito que o filme apresente a coisa dessa forma, o que Vice mostra é uma esposa parceira nos projetos do marido, uma mulher que é um animal político, também, e com tanto tino, na verdade até mais, que o companheiro.  E, de novo, ela precisa dele.  E tem sorte (*ou vocês acreditam que eu não iria comentar isso?*) dele precisar dela e acreditar nisso.

Não sei se o filme cumpre a Bechdel Rule, não lembro de conversas diretas entre as poucas mulheres em cena e, se elas existiram, foram sobre algum homem, mas Lynne Cheney é uma personagem espetacular, uma mulher forte de direita, como tantas que existiram e ainda existem, e um presente para uma atriz como Amy Adams.  Ela deveria levar o prêmio de coadjuvante, mas eu sei que vai para A Favorita, Rachel Weisz muito provavelmente, não acredito em zebra aqui.  Amy Adams vai se consagrar como a que sempre é indicada, a que sempre é merecedora, e a que nunca é contemplada.  Quer dizer, ela será, mas, provavelmente, não por seu melhor papel, ou desempenho.
Condoleezza Rice (LisaGay Hamilton) tem pouco a fazer no filme.
Uma crítica pequena que tenho ao filme, mas muito grande se pensarmos sob a ótica feminista, foi o que fizeram com a mãe da personagem, Edna Vincent (Fay Masterson).  Ela é apresentada como uma mulher acuada e vítima da violência doméstica, uma mulher servil também, vide a cena do diálogo fundamental entre os jovens Cheney e Lynne.  Só que Edna também teve uma vida pública, foi xerife adjunta, deve ter tido papel fundamental na formação do caráter da filha.  E, não, há qualquer suspeita de que tenha sido assassinada pelo marido., ou que cometeu suicídio.  Ainda que a questão possa ser discutida, o filme faz uma acusação muito forte ao pai de Lynne Cheney (Shea Whigham).  

Outra crítica que parece procedente se relaciona a associação do jovem  Antonin Scalia (Sam Massaro), depois indicado à Suprema-Corte, à interpretações heterodoxas dos poderes constitucionais do presidente dos EUA, segundo o filme apresenta, o presidente norte-americano poderia, dentro da lei, agir como um ditador sem ser questionado, mas eu tenho pouco, na verdade zero, conhecimento do assunto.  O fato é que o filme faz uso farto de imagens de época e interpretações dos fatos históricos sempre, claro, para enfatizar o maquiavelismo de Cheney e seu coração de pedra, menos, claro, quando se trata de Mary (Alison Pill), sua filha caçula.  
Lynne exige ser levada para junto do marido no 11 de Setembro.
A cena em que a filha confessa sua homossexualidade é outro ponto marcante do filme. Cheney e a esposa eram parte do partido republicano, defendiam valores conservadores, mas, ainda assim, acolheram a filha.  É uma cena tocante e que não depõe contra a coerência das personagens.  Ainda que nunca tenha acontecido, vi como crível o recuo em relação a uma candidatura presidencial, porque isso iria expor a vida de Mary ao escrutínio da opinião pública.  De resto, há várias cenas da família reunida, a filha mais velha, Liz (Lily Rabe), marido e filhos, junto com Mary e sua companheira, Heather Poe (Melissa K Marks).  

O filme não mostra, mas Cheney se posicionou publicamente pelo direito dos homossexuais de se casarem.  Obviamente, isso não o torna um cara legal, mas reforça a ideia de que era um homem de família.  Há quem não veja que pessoas são seres complexos, na maioria das vezes, e capazes de posições que nem sempre parecem coerentes com a maioria de suas crenças e valores.  Agora, quando sua filha Liz concorre ao Congresso pelo partido republicano, ela tem a favor (*ou contra si*) o fato de ser filha de Cheney.  Acreditar que ele não deu seu aval para que a filha mais velha se posicionasse publicamente contra o casamento gay para vencer a eleição é ingenuidade.  Clãs políticos como o dos Cheney agem como grupo e, não, de forma desordenada.  Claro, que caberia à Liz escolher a irmã, ou a cadeira no Congresso, ela fez suas escolhas.  Publicamente, Cheney e Lynne não a apoiaram nesse ponto.  
O presidente é um perfeito idiota.
Voltando ao pai de Lynne, o filme faz um grande trabalho de maquiagem com Christian Bale, mas é deficiente quando se trata de Shea Whigham e Steve Carell, que interpreta Rumsfeld por todo o filme.  Cheney deveria parecer bem mais jovem que ambos, mas parece ter a mesma idade, ou até ser mais velho que eles.  Falando em indicações por atuação, Sam Rockwell foi indicado pela sua interpretação de George Bush.  Apesar de fisicamente terem ficado muito parecidos, não vi nada de muito especial na atuação dele.  Na verdade, a função de Bush é parecer um completo banana sendo manipulado por seu Vice.  Catapultado de completo fracasso como filho, os pais questionavam lançar a candidatura de Jeb a presidente dos EUA.  Enfim, Steve Carell fez muito mais no filme, ainda que eu não acredite que ele merecesse indicação por Vice.

Vice é um filme bem exagerado, vocês vão ver, só que deixa uma série de interrogações.  E vamos ver se você descobre quem é Kurt e como ele sabe tanto sobre Cheney.  É uma das surpresas de Vice. Será que Cheney era metade do que o filme mostra?  Será que foi capaz de todas as vilanias para alcançar o poder e o dinheiro?  Será que realmente não se importava com os mais fracos nem em seu próprio país?  Será?  Além de Amy Adams, Sam Rockwell, e Christian Bale, o diretor, Adam McKay, está indicado, também.  E merece ser lembrado.  Ah, e não levantem antes do fim dos créditos, porque a cena bônus é absolutamente deliciosa. 


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