terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Jornal do Shoujo Café: a morte de Boechat, o decote da discórdia, mulheres não tem vocação para a política e outras notícias comentadas



Falhei uma semana e estou prestes a falhar em outra.  Enfim, nem sempre consigo fazer as coisas que preciso, ou quero, e melhor não me culpar por isso.  Volta ao trabalho é sempre complicado (*mais ainda este ano*) e ainda teve a Júlia doente e internada.  Sim, o relato está aqui, para quem quiser.  Enfim, havia um monte de notícias de uma ou mais semanas atrás que eu queria comentar.  Coisas relevantes, especialmente, em um blog feminista (*Você notou, não é?*), no fim das contas, vou fazer o que dá.
Arte do cartunista Kacio Pacheco.
1. A morte de Ricardo Boechat.  Ontem, morreu um dos melhores jornalistas do Brasil.  Não por eu concordar com ele, nos últimos tempos, até evitava ouvi-lo na rádio e preferia Kennedy Alencar, Reinaldo Azevedo e Mônica Bergamo.  No entanto, é necessário reconhecer-lhe os méritos, a importância e a grandeza.  Fora isso, acompanhei as manifestações de pesar e carinho de colegas e ouvintes que não eram de forma alguma fingidas, ensaiadas, protocolares.  Acho que foi a primeira vez que vi um pranto coletivo tão genuíno e, se eu mesma não chorei, me senti muito mal e triste.  

Por conta do ocorrido, finalmente perdi a paciência com um ex-aluno bolsominion, homem adulto, porque fui sua professora faz tempo, que sempre deixava risadinhas em certas coisas que eu postava no Facebook.  Ele riu da morte do Boechat, achou legal que alguns seguidores de certo pastor estridente e homofóbico que afirmaram que a morte do jornalista era fruto da ira divina.  Espero que tenha visto o próprio pastor se pronunciar publicamente condenando esse tipo de comportamento.  Enfim, há coisas que a gente não deve fazer.  Espero que Boechat tenha ido em paz, a imortalidade terrena, ele tem garantida.  E, diferente de muitos, teve seu valor reconhecido em vida.

Arte de Angelo France que merece ser vista.
2. No meio da tragédia, uma mulher de coragem.  Leiliane Rafael da Silva, de 28 anos, passava de moto quando o helicóptero com Boechat e o piloto, Ronaldo Quatrucci, se acidentou.  O motorista do caminhão que se chocara com o helicóptero estava preso na cabine.  Ela desceu da moto, impedida de tentar salvar os que estavam em chamas, ela tomou a iniciativa de salvar o motorista do caminhão.  Enquanto isso, pelo menos no início, os homens presentes se preocupavam em filmar.  Virou moda, agora, registrar as tragédias ao invés de tentar minorá-las.  

Cheguei a discutir feio com meu marido que afirmava (*imagino que não terá coragem de voltar a o tópico*) que a moça agiu mal, que deveria ter esperado os bombeiros, que poderia haver uma explosão, blá-blá-blá.  Estranho foi Leiliane ter agido, não os sujeitos filmando.  Ela ajudou a evitar, talvez, uma terceira morte.  Leiliane, que tem dois filhos e vai passar por uma cirurgia, não pensou duas vezes e, sim, ela meece ser lembrada.

A primeira temporada merece ser assistida.
3. O Conto da Aia é aqui!  Uma das notícias de hoje é que o projeto que visa proibir a interrupção de gravidez em qualquer situação no Brasil foi desarquivada.  O projeto, do derrotado Magno Malta, pretende garantir 'a inviolabilidade da vida desde a concepção'.  Isso estabelecido, mulheres e meninas, sim, crianças, estupradas seriam impedidas de abortar em caso de estupro ou risco de vida.  Segundo o desengavetador, o senador Eduardo Girão (Pode-CE), ele mesmo absolutamente protegido, porque nunca engravidará, nem terá a necessidade de pensar em interromper uma gestação, "(...) negou que seu objetivo seja dificultar ainda mais a possibilidade de mulheres realizarem abortos. Ele e outros senadores que apoiaram a medida justificaram que a ideia é que o Senado defina os termos da lei, sem a "interferência" do Supremo Tribunal Federal.".  Curiosamente, essa notícia infeliz veio logo em seguida ao anúncio da Rede Globo de que irá exibir O Conto da Aia na TV aberta.  Dada a situação em que vivemos, com Damares como ministra das mulheres e propostas assim, talvez O Conto da Aia não pareça uma distopia para muita gente, mas um futuro possível para o Brasil.

Krysta Davis e Derek Lovett com a bebê Rylei.
4. Jovem mãe norte-americana decide levar gravidez até o fim para doar os órgãos do bebê.  Krysta Davis, 23 anos, estava com 18 semanas de gravidez quando os médicos a informaram que sua bebê não viveria mais que 30 minutos.  A legislação permitia que ela induzisse um parto prematuro, a outra opção, seria levar um bebê inviável no ventre e, se possível, doar os órgãos. Ela escolheu levar adiante a gravidez e contou com o apoio do namorado, Derek Lovett.  A bebê nasceu no Natal e sobreviveu uma semana.  Enfim, escolher é o verbo chave e, por isso, é possível admirar esse ato de amor.  Só para efeito de comparação, uma menina argentina de 12 anos (*DOZE ANOS*), violentada por um home de 60 anos, teve que levar sua gravidez até o fim, porque mesmo que a interrupção fosse legal, ela tinha o prazo e a autorização foi retardada o quanto possível.  A gravidez seguiu seu curso e a criança foi submetida a uma cesariana, outra violência.  A bebê, uma menina, como a do casal norte americano, pesava míseros 750 gramas e não sobreviveu.  Tudo pela vida, mas de quem?

Gente como os homens que criam esse tipo de projeto acima e as mulheres que os endossam, algumas, claro, por saber que se fosse com elas, poderiam flexibilizar seus valores morais e pagar por uma "alternativa" fora da lei, nunca irão compreender o direito que uma mulher deveria ter sobre seu próprio corpo.  Para esse tipo de gente, mulheres são hospedeiros e capazes de engravidar somente para abortar.  

5. Ela disse "não", ele estava armado.  Uma das primeiras medidas do novo governo brasileiro foi flexibilizar a posse de armas de fogo.  Basta dizer que tem cofre em casa, nem precisa provar nada.  Posse, não porte, mas o que essa gente não percebe é que cumprir regras não é algo que boa parte dos brasileiros costume fazer, especialmente, quando a punição é branda.  Era promessa de campanha e, como bem disse o vice-presidente, nada tem a ver com violência.  Pois bem, em Brasília, neste fim de semana, um sujeito de 19 anos queria ficar, ou namorar, sei lá, com uma garota de 17.  Insistiu e insistiu, eles estavam em uma festa, mas ela disse "não".  Segundo notícia do Correio Braziliense, "Autor e vítima se depararam, ele demonstrou que queria ficar com ela, mas ela disse que não queria. Então o jovem saiu da festa e premeditou o crime. Esperou que ela também saísse e ficou aguardando no interior do veículo. Quando a encontrou, esperou que a vítima se distanciasse um pouco das amigas e tentou atropelá-la".  

Enfim, pode parecer que uma coisa nada tem a ver com a outra, o rapaz ejá tinha ficha criminal, mas pensem somente em quantos sujeitos, "gente de bem", desejam a liberação do porte para andar armados por aí.  Sujeitos que foram educados, seja pela família, ou pela sociedade como um todo, a acreditarem que uma mulher não tem o direito de recusá-los, de dizer "não".  Aqui, em Brasília, já tivemos quatro feminicídios em 2019, fora as tentativas, como nesse caso.  Quem ama, ou diz amar, não deveria matar, mas, infelizmente, as coisas não são bem assim, não com o modelo de masculinidade (*tóxica*) vigente.

O decote da discórdia.
6. Deputada vítima de ataques por causa do seu decote.  Semana passada teria uma série de coisas a comentar por conta da posse dos deputados e senadores.  Pois bem, um dos assuntos mais comentados nacionalmente no dia da posse posse foi a roupa usada pela deputada Paulinha, do PDT de Santa Catarina.  Quem me conhece de outros textos, sabe que eu não diria jamais que aquela roupa é adequada à hora e ao lugar, mas reduzir uma mulher a sua roupa, desqualificá-la moralmente, é o machismo no seu melhor.  Ela foi chamada. inclusive, de representante das prostitutas por alguém que, claro, despreza as mulheres que estão nessa condição, e as considera moralmente inferiores.  Outros escreveram dePUTAda em seus comentários nas redes sociais.  Ela recebeu, também, ameaças.  A moral não está na roupa, tampouco ela define o caráter de qualquer pessoa, mas, quando se é mulher, as coisas podem escalar dramaticamente.  Voltarei a isso mais adiante.  

A deputada foi prefeita duas vezes da cidade de Bombinhas e veio credenciada pela aprovação ao seu governo, no entanto, já sofreu ameaças, tentativas de intimidação e toda sorte de absurdos.  Mas vejam que ela não se acomodou ao lugar de vítima e contra-atacou de forma exemplar: "Claro que foi um dia de bastante sofrimento, não vou negar. Mas eu não vou arredar o pé daquilo que eu sou. Eu quero ser feliz acima de todas as coisas. E isso implica em me apresentar para as pessoas como eu sou. Corpo, alma, verdadeiramente aquilo que eu sou. Acho que esse preconceito precisa ser desconstruído. E de fato, no ambiente da política, a presença esmagadora de homens nos faz encolher, nos faz retroagir".  Para se ter uma ideia, o caso ganhou repercussão internacional.

Normal, normalíssimo... 
Enquanto isso, em Goiás, o deputado Amauri Ribeiro (PRP) tomou posse com a esposa sentada em seu colo sem nenhum constrangimento.  Deve, sim, ser a coisa mais normal do mundo, afinal, lugar de mulher não é na política mesmo, mas no colo de político pode.  Diferente da Paulinha do PDT que parece ter um currículo limpo e de trabalho em sua cidade natal, o deputado eleito do PRP responde quatro processos, um deles por espancar barbaramente dua filha de 16 anos.  Normal, era somente um pai educando a filha.  E, sim, ele recebeu inúmeros apoios.  Além desse fato, ocorrido em 2015, ele fez apologia à zoofilia, algo totalmente normal em uma infância na roça e ainda estimulado pelo pai.  De resto, acredito que essa esposa dele fez um papelão.  Sim, ela tem escolha, poderia ter se negado ao espetáculo.

Luciano Bivar, presidente do PSL, especialista em natureza humana.
7. Mulher não combina com política.  Segundo investigações da PF, o PSL, partido do atual presidente, criou candidata laranja para usar verba pública de R$ 400 mil.  O negócio parece feio, mas não sei se irá ser devidamente investigado, sabe-se lá... .  Enfim, desde 1997, a lei eleitoral brasileira exige que os partidos e as coligações respeitem a cota mínima de 30% de mulheres na lista de candidatos para a Câmara dos Deputados, a Câmara Legislativa, as Assembleias Legislativas e as Câmaras municipais. É lei.  Os partidos precisam cumprir.  Por conta disso, é possível que tenhamos várias candidatas assim, elas existem para cumprir cotas e usar o dinheiro público.

Mas por qual motivo não temos mulheres candidatas?  Para quê criar cota?  Bem, as mulheres não são educadas para a vida púbica, normalmente, nem somos estimuladas a sonhas com a política.  É coisa de homem, jogo duro e sujo.  Isso tem impacto até na forma como as pessoas votam.  Há quem não vote em mulher por não confiar nelas.  Daí, o presidente do PSL, ao invés de admitir a fraude, dizer que vai punir os envolvidos, nega a candidatura laranja e defende fim da cota de gênero, porque, bem, se existem fraudes deve ser por estarem tentando desvirtuar a natureza feminina.  Lembram que segundo a ministra Damares, lugar de mulher é em casa, de preferência na rede e ganhando joia do marido?  Pois é... 

Para o presidente do PSL, é questão de natureza mesmo.  As mulheres não foram talhadas para a política: “[A política] não é muito da mulher. Eu não sou psicólogo, não. Mas eu sei isso”, mais adiante na entrevista, ele trata a repórter com extrema complacência e desrespeito, "É, tem o preenchimento de cotas, tem uma série de coisas. Tem que ir com vocação, pessoas que têm vocação. Tá certo? Veja bem, menina linda, eu quero que você filtre bem o que eu estou falando pra você.".  Mais adiante, ele fala de vocação masculina, a chama de querida, e arremata que mesmo que a mãe da jornalista gostasse muito de politica, tanto como o pai, ele seria o candidato, mas não há imposição ou discriminação.  A valente repórter insiste que ele está falando m**** com toda a educação (Isso não á a mesma coisa que falar que futebol não é para mulher?) e ouve o seguinte "Escuta uma coisa. Você vai passar a vida inteira e o time de futebol de mulher jamais vai atrair o público que atrai o futebol masculino. Ou não é? Ou não é? Eu fui presidente do Sport, eu sempre ajudei o feminino. Para arranjar um patrocinador é a coisa mais difícil do mundo. Então, queridinha, olha, a gente tem que estudar a arte humana. Tudo tem um ingrediente, como posso dizer, um ingrediente do estudo da natureza humana, é… é…".  É isso, se houve fraude, a culpa é da lei que quer forçar a natureza humana a ser o que não é. Só digo uma coisa, lembrem do Conto da Aia.  ainda há tempo de evitar coisas piores.

Paul Delaroche era conhecido por suas pinturas super dramáticas.
8. E, por fim, porque ficou longo demais.  Hoje, 12 de fevereiro, lembramos a execução em 1554, de Lady Jane Grey, uma adolescente de 16 anos que se tornou, por maquinação política de seu sogro, rainha da Inglaterra por nove dias.  A aventura não terminou bem.  Quando Maria I, filha de Henrique VIII e Catarina de Aragão, foi aclamada pelo povo e recebeu o juramento do conselho, a jovem Jane perguntou se poderia ir para casa e voltar para seus livros.  Protestante convicta, educada em uma corte humanista, ela dominava vários idiomas, dentre eles, latim, grego e hebraico.  Ela foi mandada com o marido para a Torre de Londres.  

Um possível retrato de Jane Grey.
Maria pensou em perdoá-la, mas quando o pai da jovem liderou uma revolta, se viu obrigada a condenar a jovem prima à morte, ou seu casamento com Felipe II poderia ser cancelado.  Por sua juventude e pelos interesses religiosos que pesavam na época, ela se tornou uma mártir protestante.  Além disso, sua vida ganhou ares românticos e foi levada para o cinema.  O Frock Flicks publicou um artigo muito legal sobre Jane Grey no cinema e deu destaque para o filme com Helena Borham Carter de 1986. Eu amo esse filme.  Cheguei a comprar o DVD britânico que, curiosamente, tem legendas em português (*de Portugal*).

Lady Jane, um dos meus filmes favoritos na
minha transição da adolescência para a vida adulta.
Já o Madame Guillotine fez um post sobre o quadro de Paul Delaroche, romantizando a execução da jovem dama.  Não sabia, mas o pintor pretendia fazer um quadro da morte de Maria Antonieta, mas como o sentimento anti-Bourbon era forte, ele remodelou o quadro.  Talvez seja por isso que Jane esteja vestida de branco.  Nunca li nada sobre como Lady Jane estava vestida na sua execução, mas Maria Antonieta estava de branco, porque não lhe permitiram usar luto.  O que os revolucionários não sabiam, ou lembravam, é que durante muito tempo a cor branca foi a cor do luto para as rainhas de França.  Enfim, só para fechar com uma curiosidade, afinal, daqui a pouco o mangá da Rosa de Versalhes estará em todo o Brasil.  Falando nisso, já ouviu o Shoujocast sobre os 40 anos da animação da Rosa de Versalhes?  Ele está no ar.

0 pessoas comentaram:

Related Posts with Thumbnails