domingo, 11 de agosto de 2019

Comentando Happy Mania #1: um belo exemplo de como opera o Dispositivo Amoroso


Happy Mania, publicado na revista Feel Young entre 1996 e 2001, foi o primeiro grande sucesso de Moyoco Anno.  Como a autora decidiu fazer uma continuação da série, mostrando os protagonistas vinte anos depois, lembrei-me que tinha o volume #1 na minha estante.  "Que tal fazer uma resenha?"  "Ah, mas você está com O Marido do Meu Irmão aberto sem terminar faz um tempão, sua sonsa!" "Mas vai ser rapidinho!" Bem, estou eu aqui para escrever algumas palavrinhas sobre Happy Mania, que está incluído no livro  1001 Comics You Must Read Before You Die: The Ultimate Guide to Comic Books, Graphic Novels and Manga do Paul Gravett, como um quadrinho que todo mundo deveria ler.  Eu discordo e vou explicar o motivo.  A série começa da sequinte maneira:

Kayoko Shigeta é uma jovem de 24 anos e a coisa mais urgente para ela é encontrar um namorado, mas não somente isso, ela acha que o homem da sua vida pode aparecer a qualquer momento.  Shigeta divide um apartamento com uma amiga chamada Fuku (Fukunaga) que a adverte várias vezes que ela confunde sexo com amor, que são duas cosias diferentes.  A outra personagem importante nesse primeiro volume (*e na série inteira*) é Takahashi, colega de trabalho de Shigeta em uma livraria e que a ama, apesar de todos os rolos que ela apronta, e tenta ajudá-la sempre.  

Uma protagonista totalmente perdida...
Só tenho dois pontos importante a comentar desse volume de Happy Mania, o primeiro é elogioso, então, comecemos por ele.  Moyoko Anno sabe contar uma história, mesmo em início de carreira, ela dominava muito bem a narrativa.  Seu traço não é atraente, ou deslumbrante, ela desenvolveu muito o seu estilo desde então, mas ela consegue contar muito bem a sua história, sem perder o ritmo.  Em Happy Mania é possível perceber os motivos pelos quais ela se tornou a grande mangá-ka que é.  Termina aí o elogio.

Eu tenho esse volume de Happy Mania na estante faz mais de dez anos. Nunca o tinha lido completo.  Retomando-o, entendi bem o motivo.  Shigeta, a protagonista, me angustia.  Ela só tem um objetivo na vida, casar.  Ela não tem apreço pelo trabalho, ela não parece ter consideração pelas pessoas, ou, por exemplo, não atrasaria o aluguel e as contas do apartamento que divide com a amiga.  O que ela faz com seu salário?  Não se sabe.  Shigeta é capaz de colocar um homem, aquele que ela considera sua alma gêmea, como prioridade de qualquer coisa, inclusive em relação a si mesma.  
E egoísta, narcisista e delirante.
Ela é absolutamente assujeitada ao dispositivo amoroso.  Um dispositivo é uma rede de discursos, narrativas e conhecimentos que se entrelaçam, recebem estímulos e encontram resistências; que constroem corpos, sentimentos, legitimam prazeres e caracterizam a culpa.  O dispositivo amoroso é aquele que constrói as mulheres como seres movidos pelo sentimento, pelo cuidar, pelo amar e pelo se dar ao outro.  Se a realização amorosa da heroína é central nesse tipo de narrativa, cabe compreender como o dispositivo amoroso, opera a construção desse feminino, do ser mulher.  Normalmente, a ideia do dispositivo amoroso vem imbricada com o dispositivo sexual, o primeiro, subordina as mulheres, o segundo, norteia a vida dos homens, os dois se entrelaçando.  Só que Shigeta gosta de sexo, gosta muito de sexo.

E isso poderia ser bem trabalhado na história.  Uma protagonista ninfomaníaca e totalmente consciente disso seria interessante, não é?  O problema é que a personagem parece ver no sexo, que ela gosta de fazer, repito, somente a chave para conseguir o homem da sua vida.  O que acontece então, ela conhece um homem, transa com ele, se apega como se fosse para toda a vida e é chutada.  E o ciclo recomeça.  Só no volume um, aconteceu QUATRO VEZES.  Nunca via um mangá com um troca-troca tão grande, porque, normalmente, a mocinha pode até fazer muito sexo, mas, normalmente, é com o mesmo cara.
Takahashi incapaz de esquecer Shigeta.
"Ah, deixa de ser moralista!"  Muito pelo contrário, se essa situação fizesse a personagem feliz, se a empoderasse de alguma forma, se não servisse somente para fazer humor com sua situação miserável, eu não veria problema.  Shigeta se entrega a tal ponto que nem é capaz de usar camisinha.  A amiga, Fuku, a recrimina por isso, mas é como se não fizesse diferença.  E isso não é engraçado, é uma atitude perigosa que pode trazer uma série de complicações para a vida de uma mulher.  Shigeta aceita ser humilhada pelos caras, entra inclusive em uma relação poliamorosa,  simplesmente por acreditar que o sujeito vai escolher ficar com ela no final.

Em contrapartida, como é extremamente egoísta e pouco solidária, ela humilha Takahashi, a quem considera um sujeito sem atrativos.  Sei que, mais adiante, ela irá transar com ele, mas continuará seu rodizio até que, provavelmente, se casará com o rapaz.  Só esse prospecto, Shigeta casando-se com Takahashi, porque ele é o último recurso e vai esperar por ela, me angústia.  Aliás, Takahashi mente para que a Shigeta não seja despedida, quando falta ao trabalho por causa de um novo namorado.  Quando ela é demitida, ele até consegue arrumar um outro emprego para a protagonista e ela é incapaz de esboçar um agradecimento. Enfim, o rapaz não merece ser maltratado e merece uma pessoa melhor que Shigeta.
Algumas das capas originais.
Shigeta é capaz, também, de transar com o namorado de uma colega de trabalho simplesmente por acreditar que o rapaz, que ela viu em um trem, é o homem de sua vida.  O sujeito, um canalha, nem pensa duas vezes em fazer sexo com ela dentro do carro.  E Shigeta, que quer dizer não, que tem uma breve crise de consciência, é incapaz de fazê-lo, porque, afinal, ele é o homem da sua vida, não é?  Entendem como funciona o dispositivo amoroso?  O pior é que, no fundo, no fundo, ela se envolve com o jovem, monta uma make espetacular e vai atrás dele, porque acredita que a colega, uma moça tão sem atrativos, possa ter um namorado, ainda por cima bonito, e ela, não.  É o fundo do poço.

Eu cheguei a rir em um ou dois momentos, como quando Shigeta tenta se enganar quando encontra uma mulher nua na cama de um dos seus "namorados" (*"Ela pode ser irmã dele e não ter trazido um pijama.  Ela pode estar usando um pijama nude..."*).  Moyoco Anno sabe contar uma história, como pontuei lá em cima, mas Shigeta é o tipo de personagem com quem não consigo simpatizar e, pior, conheço mulheres assim.  Gente que ferra com sua vida, porque acredita que qualquer homem que se digne a olhar para elas é o homem da sua vida, o futuro pai de seus filhos.  No final do volume, Shigeta está desempregada e, de novo, sem namorado e sem sexo, porque isso é efetivamente  MUITO importante para ela.
Takahashi sempre estará para apoiar Shigeta
e ela, claro, vai voltar a fazer bobagem.
Minha edição de Happy Mania é da Tokyopop, a editora que revolucionou o mercado norte americano publicando os mangás sem espelhá-los.  A Tokyopop publicou uma série de mangás shoujo e josei importante e é curioso ver a propaganda de Mars, Paradise Kiss e outros nas páginas finais de Happy Mania.  Não confio muito na tradução dessa época.  A editora também não usava os honoríficos.  Então, Takahashi chama Shigeta de Ms., mas ela o chama simplesmente pelo nome.  Imagino que no original ela o chamasse de "kun", talvez.  Teria que tentar achar o mangá em algum lugar para ver.

É isso, se Happy Mania fosse o primeiro josei que eu tivesse lido na vida, especialmente, com todo o alarde em torno dele, acho que eu iria ficar com o pé atrás com essa demografia.  Por tudo o que sei da obra, não se trata de uma série feminista, tem uma pegada chick lit, mas não sei se a personagem evolui ao longo da trama.  Pelo que me informei, não é o caso.  Mas eu poderia continuar a leitura, porque, bem, Moyoco Anno é uma excelente contadora de histórias e tem uma domínio muito bom da narrativa visual, mesmo sendo uma iniciante.
Minha edição é esta aqui.
Efetivamente, não incluiria Happy Mania entre os quadrinhos que todo mundo precisa ler, se é para colocar Moyoco Anno, que peguem outra coisa, Hataraki-Man (働きマン), por exemplo, ou Shibou to Iu Nano Fuku o Kite ( 脂肪と言う名の服を着て), ou ainda Sakuran (さくらん).  Existem Shigetas aos montes por aí, mas se a cada volume o que tivermos é a protagonista se apaixonando, transando, se apegando e sendo chutada até casar com Takahashi no final, não vale a pena encarar onze volumes.  A própria Moyoco Anno fez coisa muito mais interessante depois.  E, para quem se interessar, a série virou dorama em 1998 e teve 12 episódios.  Tem raw no Youtube.

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