quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Um pouco da Bolívia e sobre representatividade: Não é por ser mulher que a gente tem que aplaudir


Não ia escrever sobre a Bolívia, a rigor, até poderia falar sobre as questões ligadas às mulheres, mas, enfim, tropecei nesse Tweet acima.  O que está escrito?  "Esta é a segunda presidenta da Bolívia.  Os Estados Unidos não elegeram ainda uma mulher presidente desde que ratificamos a nossa Declaração de Independência 243 anos atrás.  Parabéns para a Bolívia!  Que isso possa levar a uma eleição democrática livre e justa!" #BoliviaUnida"

Não sei se essa moça escreveu isso por ser bobinha, ou por convicção política.  Olhando por alto a página dela, acho que mais a primeira opção.  O que aconteceu na Bolívia foi um golpe militar, não do tipo clássico, porque há o forte componente religioso que vem dando o tom da coisa toda.  A autodeclarada presidenta, porque agora isso está na moda, Jeanine Áñez, entrou no palácio de governo carregando uma imensa Bíblia e dizendo que estava levando Deus de volta ao palácio.  Ela é autora de Tweets como o abaixo:

"Sonho com uma Bolívia livre de ritos
satânicos indígenas, a cidade não é dos índios,
que voltem para o Altiplano ou para o Chaco."
Enfim, ser a face feminina de um golpe não torna Jeanine Áñez uma mulher a ser admirada, agregue-se a isso o fato de ser racista e demonizar as religiões que não são a sua.  Aliás, a bronca toda desse povo com o Evo Morales, para além do fato dele ser quem é (*indígena, de esquerda, de origens humildes*), foi ter tirado da Igreja Católica o seu lugar como religião de Estado e o link para a notícia é de um site evangélico importante que, à época, comemorou essa medida por parte do presidente.  Até para quem está falando que os evangélicos deram o golpe na Bolívia, enfim, alguns podem até ter ajudado, mas são católicos extremistas que estão à frente dessa desgraça.

Sim, vários dos nossos vizinhos latino americanos tiveram até pouco tempo religião oficial, sobram, hoje, Argentina (*já com restrições*) e Costa Rica, que ainda mantém essa questão em suas constituições.  Amanhã, quando for feriado de 15 de novembro, convém lembrar que, graças aos militares e outros positivistas, a nossa república foi criada laica e, sim, nos seus primórdios, o povo levava essas coisas muito à sério. De qualquer forma, foi essa medida de Evo Morales que deve ter alimentado ainda mais o ódio de alguns setores da sociedade boliviana.

Sim! tudo em nome de Deus.
Voltando, realmente duas mulheres governaram a Bolívia, no entanto, nenhuma delas foi eleita.  Lidia Gueiler Tejada tornou-se, era a presidenta do Congresso, e foi empossada depois de um fracassado golpe militar.  Governou de 16 de novembro de 1979 até 17 de julho de 1980, sendo a segunda mulher a exercer este cargo executivo nas Américas.  Mas não houve tempo para eleições, os militares tentaram novo golpe e derrubaram Tejada, que era uma liderança importante de esquerda de seu país desde 1952.  Tejada partiu para o exílio e, mais tarde, foi embaixadora da Bolívia em alguns países.

Jeanine Áñez diz ser a legítima governante do país, mas assumiu sem quórum suficiente, tendo os congressistas contrários sido barrados na porta do parlamento pela polícia, e a faixa foi lhe dada por um militar.  Foram as Forças Armadas e a polícia que, de forma geral, legitimaram e deram a essa mulher a possibilidade de entrar no palácio dizendo-se presidenta escolhida pelo deus cristão.  Na verdade, como houve renúncia de todos os que estavam na linha sucessória, inclusive a presidenta do senado, a jovem Adriana Salvatierra, não havia previsão clara de quem deveria governar, ainda que interinamente.  Outro golpe, portanto, essa senhora assumir.  A Bolívia, na verdade, nunca elegeu uma mulher presidente do país, como a moça do tweet apontou.

Bíblia rosa versão menina.
Ao invés de ficarmos, se é que alguém está realmente vendo representatividade nessa palhaçada toda, louvando essa mulher, que tal usar seu exemplo para algo útil?  Mulheres podem ser golpistas, racistas, cruéis, fanáticas religiosas, basta que tenham a oportunidade para isso.  Mulheres nem sempre são vítimas, ou não são vítimas o tempo inteiro e em todas as situações.  Mulheres podem levar adiante políticas públicas que prejudiquem outras mulheres e serem admitidas no seleto grupo dos governantes como "homens honorários".  

Talvez o modelo da maioria dessas criaturas políticas aos moldes de Jeanine Áñez seja Margaret Thatcher com um rosário e/ou uma Bíblia nas mãos.  Thatcher não precisava recorrer a esses recursos, era uma personagem política completa, goste-se dela, ou não.  Então, não se deixem enganar, não há nenhuma vitória pra as mulheres em ver uma Janaína Paschoal com votação recorde, ou uma Jeanine Áñez se afirmando presidenta.  Elas estão lá por concessão dos homens e, de certa forma, para fazer sua vontade e, não raro, prejudicar os mais fracos, e, dentre eles, os mais fracos sempre são as mulheres e as crianças.

Quem me representa é essa índia anônima com a
bandeira da Bolívia e a dos povos indígenas,
a Wiphala, que os golpistas vem queimando.
P.S.: Para quem ficou se coçando para comentar esse aspecto, digo que não estou falando de Evo Morales nesse texto.  Gosto de Evo, tanto quanto gosto de Obama, mas o líder boliviano ERROU.  Não deveria ter concorrido a uma terceira eleição (*assim como Fernando Henrique Cardoso a sua segunda, aqui, no Brasil, apesar de ninguém costumar chamá-lo de golpista*), mesmo que com apoio popular e, mais que isso, não deveria ter ignorado o plebiscito de 2016 e tentado um novo mandato.  Ele deu asa para que gente da pior qualidade agisse e tomasse o poder.  E não cabe misturar sistemas legais.  A Merkel pode ficar sei lá quantos anos no poder, porque a lei alemã permite.  E deu tempo de sobra para formar um sucessor, apesar do que algumas vozes importantes da esquerda estão pontuando.  Essa tentação caudilhistica latino-americana, esse narcisismo de alguns grandes líderes políticos, acaba prejudicando a eles mesmos e a todo o povo.  E, sim, foi golpe e a culpa do golpe é dos golpistas.

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