Um dos argumentos mais utilizados para a proibição do véu integral (*burqa e niqab*) em países ocidentais é que esse tipo de vestimento, ao esconder o rosto das mulheres, lhes roubaria sua identidade e parte de sua humanidade, reduzindo-as à sombras. Há questões de segurança, também, mas não vou discutir isso nesse texto. A pessoa que escreve concorda integralmente com esse argumento, esconder o rosto das mulheres é negar-lhes parte da humanidade. E, sim, há mulheres que defendem o uso do véu integral, mas o fato de vocalizarem seu apoio publicamente, é preciso lembrar que adesão não significa falta de coerção (*do grupo, de ideologias religiosas, de imperativos identitários etc.*)
Mulheres sem rosto. |
Mas não estou escrevendo esse pequeno texto para falar de vestimentas islâmicas, mas de como a mídia fragmenta os corpos das mulheres, objetificando-os com o intuito de vender produtos, ideias, ou promover o deleite da audiência. Há propagandas e matérias que usam e abusam de partes dos corpos femininos.
A matéria pergunta qual a pate favorita do corpo das mulheres. |
Bundas, coxas, peitos, barrigas saradas, ou fora dos padrões, passam mensagens para o consumidor, uma delas é que mulheres não precisam ter rosto, identidade, não são pessoas, podem ser consumidas aos pedaços. Tempos atrás, na turnê de Sandy e Júnior aconteceu algo engraçado que se remete a isso. A música Maria Chiquinha teve sua letra alterada por ser considerada ofensiva em nossos dias. Muita gente protestou, mas a parte alterada foi a seguinte:
"Então eu vou te cortar a cabeça, Maria Chiquinha
Então eu vou te cortar a cabeça
Que você vai fazer com o resto, Genaro, meu bem?
Que você vai fazer com o resto?
O resto? Pode deixar que eu aproveito"
Sim, é para ser engraçado. Maria Chiquinha, a adúltera, poderia ser morta pelo marido, sua cabeça, cortada. Já "o resto", bem, ele é útil, porque o corpo das mulheres não são nada mais, nada menos, do que orifícios a serem preenchidos ao bel prazer dos homens. Um rosto é desnecessário.
Como a amamentação arruinou meu corpo. Sim, essa foto é dessa matéria e, sim, existe uma matéria com esse título. |
O que me fez escrever esse texto foi uma matéria chamada "Casal gay de Salvador está prestes a dar à luz gêmeos com útero solidário". Nela, há um ensaio fotográfico do casal com o seu "útero solidário". Sim, a mulher, uma amiga, não mostra o rosto, não tem nome, trata-se de um recipiente somente. "Ah, você está delirando! Ela pode não querer mostrar o rosto, porque teme preconceito.". Gente, já vi montes de matérias sobre mães, irmãs, que cedem seu útero para acolher embriões que não são seus. Elas normalmente tem rosto e nome, são parentas, enfim, que merecem respeito e admiração.
Isso não é bonito, nem fofo, nem sei lá... |
Essa mulher da matéria não foi tratada como uma pessoa, ela é somente um útero. E isso, em um momento no qual querem controlar ao máximo o corpo das mulheres enfatizando sua função reprodutiva, é muito, muito triste. E a questão não ser um casal gay, mas essa objetificação e redução das mulheres à pedaços com funções específicas como seduzir, reproduzir, cuidar, entre outros.
A foto abre uma matéria sobre mulheres que praticam corrida. |
E para quem não entendeu, porque eu talvez não tenha sido clara, tentarei resumir: A mulher foi voluntária, OK, não estou discutindo isso, mas que não colocassem somente sua barriga. E independentemente dela não querer aparecer, ter seu nome revelado, usaram seu ventre nesse ensaio que, visto isoladamente, é de mau gosto, mas como o caso não pode ser analisado como isolado, ele faz parte de um modelo de representação das mulheres aos pedaços, corpos compartidos, sem rosto, sem identidade, desumanizados. Seios, pernas, bundas e, claro, barrigas.
Exemplo de avó barriga solidária que tem rosto e nome. |
Não há nada de progressista na forma como a matéria foi construída, negando nome e rosto às mulheres que são somente úteros. Não há nada de fofo em fazer um ensaio fotográfico com uma mulher aos pedaços celebrando a alegria de dois homens pela chegada de seu bebê (*e poderia ser um casal hetero*) sem que ela nada fosse além de um receptáculo. Cabe aqui lembrar de novo do Conto da Aia. Tudo faz parte de um mesmo discurso com múltiplas origens e que aponta para o fato das mulheres serem menos que humanas, descartáveis.
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