quarta-feira, 1 de abril de 2020

Comentando Unorthodox (Netflix/2020): Quatro Episódios é muito pouco


Hoje, decidi passar a tarde assistindo Unorthodox, nova série da Netflix.  Se não fizesse isso, provavelmente, não iria assistir nada mesmo.  É o que normalmente acontece.  Em linhas gerais, é uma história já vista, a de uma pessoa que decide abandonar um grupo religioso radical no qual nasceu e cresceu e tem que enfrentar uma série de desafios.  Como sempre gosto de pontuar, o importante é como a coisa é executada, porque história realmente nova é coisa rara.

Unorthodox, que só teve quatro episódios em sua primeira temporada, é baseada na autobiografia de Deborah Feldman, uma norte-americana que abandonou a fechadíssima comunidade Satmar de Williamsburg, Brooklyn, Nova York.   Em linhas gerais, a história da série segue o relato de Feldman, inclusive, ela também tinha uma mãe que também fugira da comunidade hassídica (ultra religiosa).  Duas gerações de mulheres “off the derech” (*distantes do caminho*), aliás, o termo não aparece em nenhum momento de Unorthodox, não que eu tenha ouvido.  Vou resumir a série, que estreou semana passada, tentando evitar grandes spoilers.

Todos os motivos para ser feliz.
Esther "Esty" Schwartz (Shira Haas) é uma adolescente que viveu toda a sua vida em uma comunidade judaica ultraortodoxa (*haredi*).  Ela foi criada pelos avós paternos (Gera Sandler e Dina Doron), húngaros  sobreviventes do Holocausto, cm a ajuda de Malka (Ronit Asheri), irmã de seu pai, que é alcoólatra e uma vergonha para a família.  A mãe (Alex Reid) da protagonista, que tinha sido trazida da Europa para casar com ele, não suportou o casamento e foi embora.  Esty é tratada como se fosse órfã de mãe, afinal, deixar a comunidade é se tornar um pária.  

Quando a moça chega aos 17 anos, seu casamento é arranjado com um rapaz chamado Yanky Shapiro (Amit Rahav).  Ele é jovem, rico e muito religioso, tudo o que uma moça poderia desejar.  Esty, no entanto, se sente diferente das demais e chega a avisar o noivo no único encontro que eles têm antes do casamento.  Estsy gosta de música e em sua comunidade é indecente que uma mulher cante em público, por isso, ela não deve nem cantar quando está sozinha.  Esty deseja aprender a tocar piado, mas isso também é inadequado, mas ela vem tendo aulas em segredo. 

Essa parte da cerimônia de casamento me
pareceu coisa meio que de filme de terror.
O casamento de Esty e Yanky se torna um fracasso e a moça sofre pressão da sogra (Delia Mayer) e de outras mulheres, como sua tia, para que seja uma "boa esposa".  Afinal, se o casamento não consegue ser consumado é por culpa dela e o dever de uma esposa é fazer com que seu marido se sinta um rei em sua cama e gerar filhos.  Insatisfeita, ela decide ir embora.  Sua mãe, em uma das poucas visitas, lhe deu alguns documentos com os quais ela poderá requerer nacionalidade alemã.  Esty se sente ofendida ao recebê-los, mas, agora, vê neles sua chance de escapar.  Ela foge com a ajuda de sua professora de piano, mas como está grávida, trazê-la de volta torna-se uma questão de interesse de toda a comunidade.

Primeira coisa, assim como no filme Desobediência (*resenha*), a pessoa que abandona a comunidade não se sente culpada por sair, Estsy está ávida por se reinventar.  Segunda coisa, o olhar sobre a comunidade Satmar, que é de origem húngara, não é complacente, ou amorosa.  Não espere nada parecido com os filmes da diretora Rama Burshtein, está mais para a acidez de Amos Gitai mesmo.  O drama de Esty é muito parecido com o das irmãs do filme Kadosh de Gitai, só que como a protagonista está disposta e deixar para trás o seu passado e abraçar o mundo novo e pleno de oportunidades, logo, ninguém que assistir a série vai ficar deprimido no final, muito pelo contrário.

Liberdade.  Tirar a peruca, mostrar os cabelos, é colocar-se nua.
Há cenas belíssimas em Unorthodox, como a do mergulho no lago, que está parcialmente no trailer.  A protagonista não se faz de rogada e tira parte da roupa e cai na água pela primeira vez.  A mensagem é de libertação.  Ela aproveita inclusive para se livrar da peruca.  Sim, muitas judias ortodoxas e ultraortodoxas casadas usam peruca (sheitel), ou um turbante.  Isso porque é considerado indecente para uma mulher casada mostrar seu cabelo visto como potencialmente sedutor.  Em alguns grupos ultraortodoxos, e o Satmar parece ser dos mais radicais nesse aspecto, as mulheres, ao se casarem, raspam completamente a cabeça, porque até um fio de cabelo que escape e se mostre, é como se a mulher estivesse nua.

Uma das cenas mais fortes da série, que se vale do flashback para mostrar os motivos da fuga da protagonista, é quando Esty tem seu cabelo raspado depois da festa de casamento sob os olhares curiosos e angustiados de um grupo de adolescentes e meninas.  É um rito de passagem.  Esty chora, mas, naquele momento, ela ainda crê que está caminhando para a sua felicidade.  Toda a cerimônia de casamento ultraortodoxa, neste caso longuíssima, com noivo e noiva recitando orações e em jejum de sabe-se lá quantas horas, me pareceu muito angustiante.

Pronta para a noite de núpcias.
Outra cena bem impactante, já no final do último capítulo, é o teste de Estsy para o conservatório em Berlim, para onde a moça foge em busca de liberdade, e ainda que ela resista, atrás da mãe que ela acredita que a abandonou.  Não vou dizer como é o teste, só que a gente fica em uma grande ansiedade, porque ela iria tentar uma bolsa tocando piano e, bem, como uma das alunas do conservatório lhe diz, ela não tem chance alguma.  Fiquei imaginando se deslizariam no final e fariam alguma mágica.  Não fizeram, assistam.  Eu chorei, porque, enfim, eu sei o quanto esse povo tem problemas com mulheres tocando instrumentos e/ou cantando.  

Não é somente a personagem, é algo real.  Os homens podem cantar e o fazem lindamente, mas em muitos desses grupos ultraortodoxos, mulheres cantando é algo inadmissível, imoral mesmo.  Estsy aprende a cantar com a avó, húngara, que ouve escondido discos de música erudita.  Há uma cena em que a tia, Malka, chega e repreende as duas, porque a velha, uma senhora perto dos noventa anos, estava ouvindo um disco com uma mulher cantando.  E se os homens chegassem?  Ou visitas?  O que iriam pensar da família?  Poderia prejudicar o  futuro casamento de Estsy.

Tradições, regras, limitações.
Aliás, assistindo à série, não consegui me convencer que alguém como Estsy conseguiria se casar em uma família como as do Shapiro.  Eles eram ricos e muito conservadores e os pais da moça eram duas ovelhas negras.  A mãe, que mora em Berlim, estava casada com uma mulher e o pai, todo mundo sabia que tinha problemas com a bebida e talvez psiquiátricos.  Acredito realmente que deveriam ter arrumado um marido de origem mais modesta para a protagonista, ou explicado que os avós dela eram tão respeitados que isso poderia ser relevado.  Só que a própria série não indica isso, porque a mãe de Yanky, o marido de Estsy, vive jogando na cara da moça que ela é inferior e, quando ela some, reclama em toda cena, dizendo que sempre fora contra o casamento, que sabia que a nora não prestava, porque "uma fruta não cai muito longe da árvore".

Falando de Yanky, o ator que faz o rapaz, Amit Rahav, é muito expressivo, ele passa tanta emoção com os olhos, parece que está sentindo cada cena.  E, bem, é uma personagem bem humana.  Dá para ter pena dele, sem nunca culpar Estsy, que fique claro, porque nessa história toda, eu tenho lado desde a primeira cena, e, ao mesmo tempo, há momentos em que ele é detestável.  O fato é que ele é tão jovem quanto Esty, devem ter a mesma idade, são dois adolescentes.  Ele é absolutamente inexperiente e filhinho da mamãe.  Eis aí o grande problema dele.

O marido.
Essa ignorância absoluta em relação ao sexo oposto e ao que acontece entre um homem e uma mulher parece um tanto exageradas na série, também.  Estsy nada sabe sobre sexo, ou mesmo seu corpo, e há cenas bem constrangedoras entre a jovem e uma mulher, que não sei se é a casamenteira, mas ela tem algumas cenas e age como uma espécie de "sexóloga" da comunidade.  Ela é quem vem orientar Estsy sobre sua noite de núpcias e o que vai acontecer para que ela pudesse ter filhos.  Pareceu-me um exagero que Estsy não soubesse das leis de pureza à respeito do sangue menstrual, eu imagino que isso esteja tão entranhado no dia-a-dia desse tipo de comunidade que mesmo meninas pequenas tenham alguma ideia do que acontece.  Parece que foi um momento "for dummies" para a audiência entender, ou, de repente, os Satmar são bem mais hardcore que a média. Enfim, acredito que foi exagero mesmo.

De qualquer forma, os Satmar, em especial, acreditam que é seu dever repor os 6 milhões de judeus mortos no Holocausto.  É uma crença do grupo.  Eles também fazem parte daquela parcela de judeus ultraortodoxos que rejeita o Estado de Israel e o Sionismo.  Mas há comunidade Satmar em Israel, também.  Contradições, vocês sabem.  Agora, a não ser que eles tenham comportamentos muito puritanos, parece estranho essa anulação do prazer feminino em prol do masculino.  Até onde sei de Judaísmo, o prazer da esposa é importante e é responsabilidade do marido proporcioná-lo.  

Casal feliz.
De qualquer forma, temos de um lado cenas de Estsy sendo massacrada por sogra e tia, porque ela e o marido não conseguem concluir o ato sexual.  E, por outro lado, temos a jovem mulher, que tenta ser submissa, mas não consegue, cobrando do marido (*porque ele a culpa, afinal, a mãe dele disse que a responsabilidade era de sua esposa e suas cunhadas estavam tendo filhos nove meses depois do casamento*) por não se preocupar com o prazer dela.  Ela cita o Talmud e ele diz que uma mulher não deve ler esse livro que é fundamental para o judaísmo.  Isso sinaliza que a família dele é muito mais conservadora e tacanha do que a dela, dentro de uma comunidade que é extremamente restritiva.

Aliás, durante o tal encontro antes do noivado, o moço comenta com Estsy que ele já foi á Europa.  Ela quer detalhes, mas ele diz que somente visitaram os túmulos de rabinos famosos, que o pai não lhes deixou ver mais nada.  Só que ele sinaliza que gostaria de conhecer Paris e Londres.  Há uma centelha de esperança para esse rapaz.  Isso pode ser desenvolvido na segunda temporada, talvez.  Só que ele precisaria cortar dois laços, os com a comunidade e esse mais doentio com a mãe.  Sim, eu conheço todas essas histórias sobre mães judias, mas Yanky, em especial, é o menininho da mamãe.  



Um ritual bem sinistro.
O fato é que a sexóloga dá um "diagnóstico" de vaginismo para a protagonista.  A dor que a moça sentia durante o ato sexual e que impedia que ele se completasse e ela pudesse engravidar é fruto desse defeito.  Tudo bobagem, obviamente.  No fim das contas, eles fazem sexo, mas é quase um estupro consentido.  Estsy em dor extrema e suplicando que o marido continue, porque não aguenta mais ser recriminada por todos.  O fato é que o rapaz também não sabe nada de sexo, sobre o que fazer.  Ele conhece os rituais e a sociedade onde cresceu é absolutamente marcada por regras e mais regras.  Veja, Estsy e Yanky não estão em pé de igualdade nessa relação, mas os dois sofrem e eu consigo ter pena dele, mesmo tomando partido da protagonista.

Outra personagem importante da série, detestável e curiosa, e que ilustra bem essa diferença de tratamento recebido por homens e mulheres, é Moishe (Jeff Wilbusch), o primo barra pesada de Yanky, e que é convocado pelo rabino chefe da comunidade para ajudar a achar Estsy.  Moishe já abandonou a comunidade e voltou, conhece gente da máfia russa, tem permissão especial do rabino para usar a internet, e parece ter se casado com uma mulher de fora da comunidade.  O casamento não deu certo.  Ele é aquele religioso fanático, mas canalha, super conservador, mas capaz de quebrar todas as regras e ainda fazer discurso moralista.  Fora isso, ele é violento, com mulheres, inclusive.  Enfim, ninguém gosta dele, mas parece que é um tipo comum nesse tipo de comunidade.  Em Berlim, ele carrega Yanky para um bordel e faz com que ele seja trancado com uma prostituta.  O desdobramento da cena é interessante.

A professora ajuda Esty, mas conta onde 
ela está ao ser ameaçada por Moishe.
A mãe de Estsy diz que gente como ele foi usada para persegui-la, intimidá-la e tomar-lhe a filha.  Sim, spoiler, a mãe de Estsy não abandonou a menina, ela perdeu a guarda da protagonista.  E é importante falar da mãe de Estsy, porque ela coloca em evidência (*Moishe também faz isso em uma cena específica*) o quanto é difícil abandonar uma comunidade ultraortodoxa.  Eles não aprendem nada que tenha grande uso no mundo exterior, não tem uma educação de qualidade.  Isso vale para as meninas e os meninos.  Trata-se de uma forma de manter o controle sobre eles e elas.  Fora da comunidade, que emprego você vai arrumar?  Moishe virou bandido.  A mãe de Estsy conseguiu uma vaga de cuidadora em um lar para idosos judeus.  Falar ídiche a ajudou.

Falando nisso, Unorthodox é a primeira série da Netflix em ídiche, língua usada pelos judeus asquenazim no Leste Europeu.  Na verdade, a série se alterna entre inglês, alemão e ídiche.  Como em Berlim, Estsy acaba se envolvendo com um grupo de estudantes de um conservatório vindos de várias partes do mundo, eles conversam principalmente em inglês.  É uma boa sacada da série, aliás.

Não, ela não tem vaginismo.
Nesse grupo de estudantes, há Dasia (Safinaz Sattar), que é iemenita; Axmed (Langston Uibel), um jovem nigeriano homossexual, que diz para a protagonista que entende o que é se sentir diferente; Yael (Tamar Amit-Joseph) que é israelense e secular e discrimina Estsy por ela ser ultraortodoxa (*e a protagonista não se intimida*); e Robert (Aaron Altaras) com quem Estsy descobre que não tem nenhum problema de vaginismo.  Esse grupo de estudantes, e há outros que não consegui nome para listar, como o namorado de Axmed, acolhem Estsy, assim como um dos professores (Yousef 'Joe' Sweid) que fala da bolsa de estudos para jovens refugiados, ou em situação precária.  

Unorthodox pontuou bem alto comigo.  A protagonista é interessante, corajosa em abraçar esse mundo para além de sua comunidade, mas cheia de nuances e fragilidades.  Shira Haas está muito bem, mas acho que ela não convence como adolescente.  Deveriam ter buscado uma atriz que efetivamente pudesse parecer ter 17-19 anos.  Curiosamente, Amit Rahav tem a mesma idade de Haas, mas ele passa como adolescente.  Nas últimas cenas, no entanto, talvez por conta do sofrimento, ou do amadurecimento que a personagem tem nos poucos dias em Berlim, ele parece mais velho e compreensivo... Ou seria uma tentativa de enredar a esposa e levá-la de volta?

Esty não se intimida diante do mundo que quer conhecer.
Repetindo, o olhar sobre a comunidade ultraortodoxa é negativo.  Eu não sou simpática ao grupo como um todo, ou qualquer grupo religioso radical, mas acredito que carregaram as tintas para reforçar que a situação de Estsy é insuportável e é MESMO.  Só que é fácil encontrar relatos dessas mulheres que reforçam que a série não está exagerando.  A depender do grupo e do grau de dependência pode ser muito pior até.  De qualquer forma, diferente da protagonista do filme Através do Muro, de Rama Burshtein, que escolhe ser ultraortodoxa, a protagonista de Unorthodox está mais para a chará Estsy de Desobediência.  Estsy só conheceu aquela vida, não a escolheu, e se sente sufocada.  Uma vida sem música deve ser muito triste.  

Desculpem dialogar com outras produções, mas são resenhas que falam do mesmo universo de Unorthodox e que estão no Shoujo Café.  Kadosh não está, mas eu linkei para informações sobre o filme.  Deveria revê-lo e resenhar.  O que eu quero dizer é que é interessante visitar outras produções e queria reforçar que há vários grupos ultraortodoxos.  O desta série em particular é o Satmar.  Não devemos generalizar.  E há vários graus de aderência às regras religiosas, ou estratégias de burlá-las.  Unorthodox apresenta um caso que é extremo.

Há esperança para Yanky. 
Quem sabe na segunda temporada?
É isso.  A série estreou no dia 26 de março.  É interessante e oferece várias possibilidades para discussões sobre opressão religiosa, papéis de gênero, repressão sexual, hipocrisia etc.  Quatro episódios foi muito pouco, porque quando termina, a gente está feliz pela protagonista, mas, ao mesmo tempo, nada está resolvido.  Estsy está grávida e a família de seu marido vai mover céus e terra para se apropriar do neto, ou neta que está por nascer.

3 pessoas comentaram:

Já tinha chamado minha atenção antes, agora então, fiquei com mais vontade de ver.

Que resenha interessante! Me interessou na série.

Só quero continuação dessa série!

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