terça-feira, 14 de julho de 2020

Havia negros na Inglaterra de Jane Austen, mas eles parecem invisíveis


Ontem, me deparei com dois textos sobre a presença de negros na Inglaterra de Jane Austen.  Eles foram postados em um grupo do Facebook que eu sigo chamado The Jane Austen Fan Club.  O primeiro se chama Black Communities in Jane Austen’s England e faz um histórico da presença de africanos, ou pessoas de ascendência africana, na Inglaterra desde a época romana (43-410 AD) até o período de vida de Jane Austen (1775-1817).  Aliás, uma das personagens principais de Sanditon, romance inacabado da autora, é uma jovem negra e rica.

No caso dos romanos, o estudo de túmulos do período (Beachy Head Lady e Ivory Bangle Lady)  e mesmo posteriores, apontam para a presença de pessoas com DNA do Norte da África na região.  Aliás, há estudos sobre as ligações entre a Inglaterra-Irlanda com o Norte da África durante o final do período Romano e a Alta Idade Média (Séc. V-XI).  As pessoas e os livros viajavam mais do que muita gente acredita, especialmente, em peregrinações religiosas.


Phillis Wheatley (1753-1784), primeira poetisa a ser publicada 
no que viria a ser os Estados Unidos, e primeira 
poetisa negra em língua inglesa.
O texto segue até a época de Jane Austen, apontando que havia uma comunidade negra na Inglaterra, mesmo antes da abolição da escravidão em solo inglês (1772), eles e elas eram em sua maioria pobres e do sexo masculino.  Ao que parece, somente 20% da população negra na Inglaterra de finais do século XVIII e início do século XIX era formada por mulheres.  O texto pontua que era comum que homens e mulheres livres fossem sequestrados em cidades como Londres, Liverpool, Manchester e vendidos fora da Inglaterra.  É o mesmo tipo de situação mostrada no filme 12 Anos de Escravidão.

O outro texto, me pareceu mais interessante e se chama Racism of Erasure in Regency Romance Novels.  O texto fala do apagamento de pessoas de cor, já que vai além da população negra, nos romances da época da Regência e nas histórias escritas em nossos dias se passando no período. Oficialmente, a regência do Príncipe George em nome de seu pai, George III, durou de 1811 até 1820. Há quem defenda, no entanto, que em termos de arte, literatura, costumes, o período poderia se estender de 1795 até 1837.   A autora do texto ponta, também, como a representação dos negros e negras é sempre como subalternos quando, ainda que a maioria fosse pobre, havia pessoas de cor ocupando várias posições na sociedade.  Parece descrição de novela brasileira... Traduzi um trecho do artigo:


Retrato de uma Jovem Mulher,
sec. XVIII, de Jean-Etienne Liotard.
"Dez por cento dos ingleses estacionados na Jamaica tiveram filhos com mulheres jamaicanas, e muitas vezes eram feitas provisões para que essas crianças fossem enviadas de volta à Grã-Bretanha com seus pais. Há muitas histórias de crianças birraciais famosas criadas na nobreza e ganhando destaque através das áreas militares e outras da sociedade britânica. Exemplos incluem: Dido Belle, uma herdeira britânica nascida escrava, o coronel James Skinner, mercenário anglo-indiano mais conhecido por dois regimentos de cavalaria que criou para os britânicos, e o capitão John Perkins, o oficial negro de mais alta patente na Marinha Real durante a guerra americana.

Muitos estudiosos afirmam que a rainha Charlotte também era biracial!

Outros dignos de nota incluem Bill Richmond, um boxeador americano que se mudou para a Inglaterra e foi bem recebido pelas classes altas. Ele foi até um assistente [*"uma pessoa que mostra as pessoas em seus lugares, especialmente em um teatro ou em um casamento."*]  na coroação de Jorge IV. Mais tarde, ele se casou com uma mulher branca e teve vários filhos. Joseph Emidy, da Guiné, foi um violinista e compositor que lutou nas guerras napoleônicas. John Edmonstone, um ex-escravo das Índias Ocidentais, ensinou na Universidade de Edimburgo - incluindo um homem que você deve ter ouvido falar - Charles Darwin.


Jovem Homem Negro de Sir
Joshua Reynolds.  Década de 1770.
(...) As pessoas de cor não eram apenas servos (embora uma edição de 1764 da Gentleman's Magazine apontasse que pelo menos 20.000 criados negros em lares britânicos), mas também professores, capitães de navios, artistas e nobres. Muitos ex-escravos até lutaram pelos britânicos na guerra da Revolução Americana e nas guerras napoleônicas e retornaram à Inglaterra depois para viver uma vida plena. O coronel Fitzwilliam [*Primo de Mr. Darcy.*] serviu com homens de cor? Provavelmente! Vamos escrever!"

Acho o convite da autora bem interessante.  E eu fui checar cada um dos nomes que ela citou.  Conhecia Belle  (1761-1804), é ela quem está junto com a prima no quadro que usei para ilustrar a abertura do post.  Há um filme sobre Belle, pretendo resenhá-lo.  Agora, os outros, eu não conhecia.  Há verbetes na Wikipedia sobre todos eles e eu recomendo muito que vocês procurem informações sobre o capitão John Perkins, porque esse homem merecia uma minissérie, ou uma série de livros, só sobre a vida dele.  Espetacular.  Obviamente, a autora do texto não está pedindo que as pessoas deixem de perceber o racismo, a violência e a exclusão social, ela fala sobre isso no seu texto, mas que a história dos não brancos na Inglaterra até o século XIX é mais do que isso, bem mais.  Assim como no Brasil, aliás.
Ilustração de Oroonoko.
Acabei me lembrando, por exemplo, que o primeiro romance abolicionista inglês foi escrito por uma mulher, Aphra Behn (1640-1689), ela mesma uma figura fascinante.  Ela escreveu peças, poemas, romances, foi espiã, teve uma vida animada.  Seu romance, Oroonoko (1688), narrado alternando a primeira e a terceira pessoa, tem como protagonista um homem escravizado (Oroonoko), arrancado de sua terra Natal, que é levado para a Jamaica, onde conhece uma moça branca e rica e inicia com ela um romance.  Oroonoko termina liderando uma revolta e termina sua vida de forma trágica e heroica.  O livro de Behn foi um sucesso instantâneo e foi transformado em peça de teatro.

Ainda no tópico, esses dois textos me fizeram lembrar de um livro chamado Black Tudors: The Untold Story (Tudors Negros: A História Não Contada) de Miranda Kaufmann.  Não, não, a historiadora não está dizendo que algum dos reis Tudor tivesse sangue negro, ou amantes negros, mas que havia negros e negras entre os governos de Henrique VIII e Jaime I (*este já um Stuart*) e m condição confortável, com profissões e integrados, na medida do possível, na sociedade de sua época, que era tudo, menos igualitária, ou mesmo inclusiva.


Retrato de um jovem em um colete bordado (1885)
 de Marie-Victoire Lemoine.  Acredita-se ser Zamor.
  
Fechando este texto, descobri hoje outra personagem negra relevante do período, só que na França.  Louis-Benoit Zamor (1762-1820) foi escravo de Madame Du Barry (1743-1793), a última amante do Rei Luís XV e que disputou o centro da corte francesa com a jovem Maria Antonieta, logo após o seu casamento.  Zamor era indiano, mas Du Barry se referia a ele como africano.  Ele sabia ler e escrever. Tornou-se jacobino e denunciou a antiga senhora ao tribunal da revolucionário durante o período jacobino.  Ele foi diretamente responsável pela condenação de Du Barry.  Mais tarde, abandonou a França durante o período girondino e retornou depois da queda de Napoleão.  Terminou sua vida como professor primário.

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