quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Algumas palavras sobre o Afeganistão no Dia Internacional da Igualdade Feminina

No dia em 26 de agosto de 1973 o Congresso dos Estados Unidos decidiu que nesta data seria comemorado o Dia Internacional da Igualdade Feminina, em homenagem à aprovação, 53 anos antes, da 19ª emenda, que garantiu o direito de voto a todas as mulheres nos Estados Unidos.  Apesar de criada nos Estados Unidos, ela nasceu com esse nome de internacional e passou a ser usada no mundo inteiro.  Depois das Olimpíadas mais inclusivas da história, com praticamente 50% de homens e mulheres participando, estamos assistindo ao vivo o desespero dos afegãos, e, em especial, das mulheres do país.  Me pediram para falar de Afeganistão aqui, da situação das mulheres, mas, sinceramente, eu me sinto muito triste para escrever e muito desestimulada para ficar repetindo o que foi dito em vários lugares.  A situação do país com a retirada das tropas norte-americanas e da OTAN do jeito que foi feita, era tragédia anunciada.

Olhando por alto no blog, desde o ano de 2005, tenho bem umas vinte menções ao Afeganistão.  Há posts diretos, há citações dentro de resenhas e outros artigos diversos e em traduções de matérias.  Alguns dos mais recentes são o do recente atentado à escola de meninas às vésperas do Dia das Mães, o assassinato de uma jornalista e ativista pelos direitos das mulheres.  Eu acompanho desde sempre o que o Talebã faz com as mulheres afegãs e no vizinho Paquistão, ouvi falar de Malala pela primeira vez quando a filial paquistanesa do grupo tentou matá-la por defender o direito das meninas de frequentarem a escola.  Enfim, o que o Talebã quer é arrastar todo o Afeganistão para um mundo soturno no qual somente a versão do Islã defendida por eles pode existir.  

E, não, não é Idade Média, é um mundo imaginário, algo que nunca existiu.  Se quando alguém escreve ou diz que "o talebã quer arrastar o Afeganistão para a Idade Média" está pensando na Idade Média Ocidental, com seus mil anos e muita diversidade, desculpe, na maioria dos lugares havia lei e justiça, poderia não ser a nossa, não partia do princípio de que todos eram iguais, mas não tão simples matar alguém, estuprar alguém, como seu seriado de fantasia machista (pseudo) medieval lhe informou.  Não havia nenhum obstáculo formal para a educação das mulheres, ainda que saber ler ou escrever não fosse lá tão fundamental para a maioria da população, sejam do sexo feminino, ou masculino.  Havia mulheres que exerciam o governo, seja em seu próprio nome, ou em nome de seus pais, maridos, às vezes até irmãos.  Ainda que nem sempre sua voz fosse respeitada, segundo as regras tanto o noivo, quanto à noiva, tinham que consentir. 

E se você for ao Oriente, havia outra multiplicidades de realidades, e isso vale para o mundo islâmico, também.  O que o Talebã, ou o Estado Islâmico, ou qualquer seita fundamentalista misógina quer é tentar criar a sua versão de passado ideal segundo suas conveniências.  Também, segundo os seus interesses, o grupo pode abrir mão de um ou outro princípio.  Ainda não vi nenhum grupo fundamentalista que não abrisse exceções aqui, ou ali, justificando a partir de seu texto sagrado, ou da intimidação pelas armas de quem apontasse a perversão.  

E não se enganem quanto a qualquer promessa a respeito dos direitos das mulheres, eles não irão respeitar e devem ir atrás daquelas mulheres que ousaram exercer alguma posição de protagonismo nos vinte anos que o Afeganistão esteve ocupado pelas tropas da OTAN.  Em áreas que já haviam sido tomadas pelo Talebã, há testemunhos de sobre de abusos.  Li o depoimento de uma parteira que atende vilas do interior e ela relatou que tão logo o Talebã assumiu o poder na região, ela passou a ser proibida de se reunir com os médicos, coisa que fazia semanalmente, para buscar orientações e trazer notícias sobre as grávidas.  Ela, também, está proibida de sair sozinha para fazer seus atendimentos, precisa de um homem da família com ela.  As coisas podem não estar ainda tão terríveis em Cabul, porque tudo ainda está mais ou menos visível para o mundo, mas a capital, ou alguma cidade mais arejada da fronteira com o Irã, país islâmico fundamentalista no qual as mulheres tem acesso à educação, trabalho, locomoção e voto assegurados, as coisas estão feias.

Na segunda-feira do colapso, e enquanto escrevo, as bombas estão explodindo na vizinhança do aeroporto, eu cheguei a chorar e tive que explicar para a minha filhinha de sete anos que os direitos das mulheres são muito frágeis.  E isso vale para o Afeganistão, onde a coisa beira o insuportável, neste caso o fundamentalismo religioso esteja armado e podem nos tirar tudo, sem que a gente se aperceba.  O caso do Afeganistão é uma das maiores tragédias dos últimos tempos. Pior era ver gente comemorando a "derrota" dos imperialismo, como se o Talebã fosse um grupo a ser apoiado naquele esquema imbecil do inimigo do meu inimigo é meu amigo.  E eu não sou a favor do imperialismo, mas isso não me obriga a aplaudir um grupo que destrói a vida de mulheres e de homens, também.

Só de ontem para hoje, vi pelo menos umas cinco matérias falando em feminicídios e tentativas de feminicídio.  Tantas, tantas, que era de embrulhar o estômago.  E tudo bem normalizadinho.  A violência ganha contornos ainda mais violentos quando a vítima tem cor.  A jovem babá que teve que pular do terceiro andar porque a patroa se recusava a deixá-la ir embora, demitir-se, é um exemplo.  "Ah, mas a criminosa é uma mulher, também!" Sim, é, mas que acredita que pode ser dona de uma outra mulher que, não por acaso, na verdade, exatamente por isso, é negra.  As mulheres negras são as maiores vítimas da desigualdade de gênero em nosso país.  Sofrem violência dos homens e, não raro, das mulheres brancas.  Agora, o curioso em todas as matérias é omitirem o rosto da patroa e se ela tem um marido, ou companheiro, porque, bem, se tiver, ela não está sozinha na violência.

E fecho escrevendo que enquanto coisas como o estupro de mulheres forem usadas como alívio cômico, nunca teremos um sociedade mais igualitária.  De que estou falando?  Ontem, a novela Nos Tempos do Imperador introduziu um novo casal cômico, Batista e Lota, dois ricaços que queriam comprar escravos do policial malvado da trama.  Batista se interessa por comprar Lupita para usá-la sexualmente, a esposa, enciumada, o impede e diz para levar somente a gordinha, Minervina. Era uma cena para ser engraçada, mas vamos lá!  Primeiro, a atriz não é gorda. Segundo, os padrões de beleza e apelo sexual da época eram diferentes. Terceiro, mulheres fora dos padrões de beleza, o que nem era o caso, são estupradas, também. Qualquer mulher pode ser estuprada e uma escrava, ou uma jovem, ou menina afegã requisitada para ser esposa de um combatente, mais ainda.  Depois, a novela é criticada, como no caso do racismo reverso, e a autora vem tentar se desculpar pelas bolas foras.  

E, não, você não precisa saber história para entender que um estupro nunca é engraçado, ou nunca é "prazer" como apareceu no título de uma matéria equivocada da Deutsche Welle sobre a prática entre alguns grupos do Afeganistão, o Talebã entre eles, de sequestrarem meninos, ou usarem os "serviços" de garotos desesperados.  Eles se vestem com roupas femininas, algo que denota uma inferioridade, usam maquiagam e são sexualmente usados pelos homens adultos, alguns são escravos.  O DW tratou essa prática, que envolve os chamados garotos dançarinos, como se fosse uma expressão da homossexualidade.  Não é.  Trata-se de violência pura  e simples e algo que está ligada à misoginia e a situação de grande inferioridade das mulheres.

P.S.: As ilustrações do post são amostras da arte da afegã Shamsia Hassani.  Ela faz grafitis e lecionava na Universidade de Cabul.  Conhecida no mundo inteiro, espero que ela tenha conseguido deixar o país.

0 pessoas comentaram:

Related Posts with Thumbnails