terça-feira, 10 de agosto de 2021

Comentando o primeiro capítulo de Nos Tempos do Imperador: Começando com mais elogios que críticas

Em fevereiro de 2020, fiz um texto sobre a novela Nos Tempos do Imperador, nova trama da Globo no horário das 18h que estreou ontem.  Era para estrear mais de um ano atrás, mas a pandemia se instalou e a produção acabou sendo a primeira novela da Globo gravada na pandemia.  Um marco, portanto.  Lá coloquei as minhas expectativas e comentei alguma coisa sobre História Alternativa e como não há nada de mal em imaginar uma História do Brasil, ou de qualquer outro país, diferente daquilo que as fontes e o factual apontam.  É ficção como outra qualquer.  Obviamente, e talvez nem seja tão óbvio assim, as escolhas feitas nessa construção ficcional, seu grau de visibilidade (*e uma novela tem muita, especialmente, na Globo*) e o timing escolhido para colocá-la no ar, pesam.   

 Escrito isso, farei uma afirmativa aqui que devo retomar a cada novo texto sobre a novela, Nos Tempos do Imperador será uma novela política com tantos significados explícitos, e nem tanto, quanto O Bem Amado, Roque Santeiro, O Salvados da Pátria e Roda de Fogo.  Resta somente saber se com alcance pelo menos um pouco semelhante.  Vamos esperar para ver.  Evitei assistir ao vídeo do Paulo Rezzutti (*o primeiro de muitos que ele deve fazer*) antes de escrever o texto, porque, muito provavelmente, ele influenciaria o que eu viesse a escrever aqui.  E fiz o mesmo com o do Coisas de TV, que é uma visão geral do primeiro capítulo da novela.

O que dizer do primeiro capítulo?  Foi bonito de se assistir e teve momentos de muito impacto.  E esses momentos mais interessantes ficaram exatamente nas mãos das personagens criadas para a trama.  Quem lembra de Novo Mundo, a prequel de Nos Tempos do Imperador, as personagens ficcionais foram perdendo espaço na trama para as personagens reais que tinham histórias mais interessantes, cenas melhores e foram defendidas com muito mais competência pelos seus intérpretes, vide a Imperatriz Leopoldina (Letícia Colin).  Aliás, para fazer a ponte com a trama anterior, o nascimento de D. Pedro II é mostrado.  

Achei curioso que colocassem duas parteiras, porque nas cartas da própria Leopoldina ela falava da presença de um "parteiro", isto é, um médico especializado em partos.  Sim, apesar de algumas resistências (*vide a mãe da futura Rainha Vitória*), a presença masculina nos partos reais já era algo mais ou menos assentados no início do século XIX.  E, no caso de Leopoldina, ela reclamou em carta para a irmã, Maria Luísa, esposa de Napoleão,  que D. Pedro tinha dispensado seu médico, o que viera com ela da Áustria, e lhe imposto um que foi grosseiro com ela no parto da Maria da Glória.  Retornando para o primeiro capítulo.

Tivemos logo na abertura uma revolta de escravizados (*e vou tentar usar esse termo, porque a escravidão é uma situação imposta, não uma condição natural*), na verdade, o que parecia ser um grupo de malês, escravizados muçulmanos, que estava no Recôncavo Baiano (*onde efetivamente a revolta dos Malês fracassou*) promovendo levantes em fazendas.  Como a trama começa em 1856, já temos uma pequena liberdade aqui, porque os malês foram massacrados em 1835 (*Resenha da Minissérie A Revolta dos Malês*), mas não deixa de ser interessante que tenham apresentado que parte dos escravizados no Brasil eram islâmicos.  Só que isso me fez estranhar que a música de fundo escolhida falasse de "Menininha do Gantois", famosíssima ialorixá (mãe-de-santo) brasileira.  Eu escolheria outra música.  Aliás, gostei da trilha sonora, mas a abertura em si não me agradou.

Nosso mocinho, Jorge de Sá Rocha / Samuel (Michel Gomes) era filho do coronel malvadão.  Ele joga na cara do sujeito que nasceu do abuso que o senhor cometeu contra sua mãe.  É importante que se dê nome às coisas, porque há no nosso imaginário, graças a uma certa historiografia e antropologia hegemônicas nas primeiras décadas do século XX, a ideia de que as relações eram cordiais, como se a escravizada negra ou índia pudesse dizer "não", isso quando não se resvala em algo ainda mais asqueroso que é o de dividir as mulheres, as brancas eram frias, pouco atraentes sexualmente, "gordas" (*já li e ouvi isso*), enquanto as mulheres negras eram sexualmente atraentes, um mero objeto sexual.  OK, nosso mocinho, que é visivelmente inspirado em Luiz Gama, me causou forte impressão.  Espero que seu protagonismo não seja anulado ao longo da trama.

A revolta mostrou tanto que negros e negras (*porque elas também estavam lutando, mesmo que em minoria*) não eram submissos, quanto que o grau de violência empregado para mantê-los escravizados era grande.  Obviamente, como não poderia deixar de ser, vai se criar a comparação entre os bons e os maus senhores de escravos.  A Condessa de Barral, a esfuziante Mariana Ximenes, e seu pai eram bons senhores de escravos, os coronéis interpretados por Roberto Bonfim e José Dumont são os maus.  O fato é que em 1856 a escravidão estava muito longe de terminar no Brasil e, sim, aos olhos da opinião pública havia essa possibilidade de separar o mau senhor de escravos daquele que, apesar de se utilizar do trabalho de negros e negras escravizados o fazia de forma humanitária, não abusando de castigos corporais, mantendo as famílias de escravos juntas e morando em casas com direito a cultivar pequenos pedaços de terra e vender parte da produção etc..  

Alguém poderia me lembrar que são meras estratégias ideológicas de dominação.  E são mesmo e funcionaram e garantiram que o sistema não seja erodido mais rapidamente.  Agora, o fato é que logo, logo, a Condessa de Barral irá alforriar seus escravos.  Isso é dado histórico mesmo.  E há dois belos vídeos no canal do Paulo Rezzutti com uma especialista na Condessa de Barral para saber mais detalhes da biografia dela. Era uma mulher impressionante para a sua época, mesmo na Europa. Falando da mocinha, Pilar (Gabriela Medvedovski), ela tem potencial para ser interessante, ela quer ser médica (*mas o ensino superior no Brasil só será aberto para as mulheres em 1879*), ela quer escolher seu marido, porém, ela tem igual chance de se tornar uma chata.  Torço para que não aconteça, mas não li spoilers da semana e não sei como ela vai conseguir se desenrascar do gancho do final do capítulo, quando ela salva a vida de Samuel, ou como chegará até Salvador.  Coisa tola que queria pontuar, eu entendo a Pilar montando como homem, mas é inaceitável que a Barral não monte usando uma cela de dama.  

Obviamente, eu já sabia que não iriam ser fiéis aqui.  Enfim, o fato é que ao se recusar ao casamento, ela deve colocar a irmã mais nova, Dolores (Daphne Bozaski), nas mãos do vilão.  Se a trama quiser ser ainda mais contundente, poderia investir no horror que será esse casamento para uma menina que muito provavelmente deve ter entre 12 e 14 anos nesse momento.  E, sim, era muito comum que meninas fossem casadas nessa idade e com homens décadas mais velhos que elas.

E o vilão?  Olha, Alexandre Nero brilhou em cada uma de suas cenas e parecia estar se divertindo no papel.  Eu acho ótimo quando um ator, ou atriz, me passa essa impressão, aliás, é a sensação oposta de ver o Selton Mello em cena, carregando o peso de D. Pedro II nos ombros.  Se concentrassem o humor da trama nele, não que ele seja uma personagem exclusivamente humorística, já estaria ótimo.  Ele é o filho do coronel morto, o noivo da mocinha destemida que quer mudar o mundo, e irmão de Samuel, nascido de um estupro.  E ele é mau, é vil, e tem pretensões políticas.  Muito provavelmente, ele vai lembrar alguma personagem do nosso cenário político atual.  Eu tenho certeza disso.   E ele tem alguma rixa do passado com o imperador e vamos ver o que é e como a coisa se desenrola.  Gostei dele.  É bom ter um vilão para amar e odiar.

Agora, vamos ao núcleo histórico da trama.  Gosto do Selton Mello, acho que ele vai entregar o seu melhor como D. Pedro II, o problema é que a personagem é meio que o santo da História do Brasil e, pelo menos a julgar pelas chamadas e primeiro capítulo, será desse jeitinho mesmo.  Vai falar discursando, vão limpar os seus muitos casos amorosos/sexuais (*que, não raro, resultavam em trocas de favores políticos*) e colocá-lo no dilema entre a esposa por dever, Maria Cristina (Letícia Sabatella), e a amante sua alma gêmea, a Condessa de Barral.  Para novela, funciona bem, o problema é que servirá para reforçar essa aura de bom homem, muito diferente de seu pai (*porque não humilhou publicamente a esposa*), o melhor governante que o Brasil já teve, blá-blá-blá.  E, não, o maior problema para mim não é colocarem D. Pedro II como um homem contra a escravidão, algo que ele provavelmente era, mas, como político, lembrem bem disso, ele sabia que não podia decidir a abolição.  

Para quem não sabe, o Brasil, mesmo com um imperador com alguns poderes, era uma monarquia parlamentar.  A Lei Áurea foi votada no Parlamento e isso depois de muitas discussões e propostas melhores e diferentes recusadas.  O problema é encaminharem a coisa para inventarem um D. Pedro II partidário dos direitos iguais para homens e mulheres, coisa que ele nao era até por ser algo muito raro para a época, ou que não fosse partidário das teses do racismo científico, ainda que discordasse de alguns radicalismos do seu coleguinha Gobineau, que acreditava que a "raça" brasileira estava condenada a extinção.  Vejam lá meu primeiro parágrafo, a História Alternativa não é um problema em si, muito pelo contrário, a questão, pelo menos para mim, repousa nas escolhas feitas e como personagens históricas, ainda mais com o peso simbólico de um Pedro II, podem ser reinventadas.  Da imperatriz ainda não tenho nada demais a falar, o interesse pela arqueologia foi muito bem colocado, mas a forma como irão apresentá-la é algo importante, também, porque em nome da romantização do papel da Barral, não raro a rebaixam e estou falando de historiografia mesmo.

Enfim, pontos que me desagradaram.  Achei que investirem em uma rivalidade entre as princesas Leopoldina (Melissa Nóbrega) e Isabel (Any Maia), apresentada como uma velha em formato de criança ecoando a própria idealização que fazem de seu pai, não caiu bem, foi recorrer ao clichê de gênero de que as mulheres são invejosas e competem entre si.  Eu iria pelo inverso, pela parceria, afinal, eram duas meninas que viviam em uma situação de semi-isolamento e tudo atesta que elas eram muito próximas.  Fora isso, ter o peso do trono nos seus ombros, não é algo que se inveje.  Basta rever os relatos sobre quando a Rainha Vitória e, mais tarde, seu filho mais velho descobriram que iriam herdar o trono.  Foi choro, tremor nas pernas e, no caso dele, o sujeito amaldiçoou o fato de sua irmã mais velha ser mulher, ou não poder reinar.  E a cena com as meninas conduziu ao encontro de  Vivianne Pasmanter e Guilherme Piva, que vieram da outra novela para fazer humor.  Achei a cena grotesca, acho mesmo que eles não vão colaborar em nada com a trama e isso nada tem a ver com o talento de ambos, porque eles são muito bons.

Finalizando, porque estiquei demais o destaque muito negativo: Solano Lopez (Roberto Birindelli).  O filho do então ditador paraguaio se materializou diante de Pedro II com soldados usando capote de peles (*os paraguaios usavam aquilo mesmo?*) para fazer propostas políticas indecentes e ameaçar o Brasil.  Isso me cheira mal, porque imagino o quão enviesada vai ser a apresentação da Guerra do Paraguai nessa novela.  E, não, a professora de História aqui não quer em tela a versão do Paraguai país dos sonhos e potência abortada pela Inglaterra utilizando o Brasil e a Argentina como seus fantoches.  Essa versão é historicamente furada, mas não quero uma caricatura de Solano Lopez e espero que tenham a coragem de mostrar que a guerra poderia ter sido encurtada se D. Pedro II não fosse obcecado por destruir o ditador paraguaio, que foi quem começou a guerra.  Outra coisa, não acho que precisassem introduzir Lopez tão cedo na trama e de forma tão ridícula, a não ser que o objetivo fosse permitir que D. Pedro II fizesse um discurso todo arrumadinho e chato e que ressoa muito bem nos nossos tempos atuais.  

É isso.  Vou continuar assistindo a novela no Globoplay, porque gostei do que vi com poucas ressalvas.  Estou dando aula de Brasil século XIX para minhas turmas nesse momentos.  Fora que minha filha de sete anos veio ver a novela comigo.  Acho que vale a pena investir nesse tipo de momento mãe e filha.  E recomendo a biografia do Paulo Rezutti sobre Pedro II, ela é bem acessível para quem não quer um livro denso de história como As Barbas do Imperador da Lilia Moritz Schwarcz.  Já para quem quiser saber mais sobre Guerra do Paraguai, ou da Tríplice Aliança, tem um podcast excelente com o maior especialista no assunto, Francisco Doratioto, feito pelo Leitura ObrigaHistória.  

De resto, é bom ver personagens históricas na tela, é coisa que a BBC, por exemplo, faz o tempo inteiro e com bons resultados e que o povo possa se interessar por ler mais sobre História do Brasil.  Agora, que sejam bons livros, porque uma coisa que vai acontecer é a produção de montes de porcarias para surfar na onda da novela.  E, bem, tomara que o tom de discurso não seja predominante na novela, ainda que eu acredite que será praticamente impossível fugir disso no caso de D. Pedro II e, infelizmente, da Pricnesa Isabel.

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