terça-feira, 16 de novembro de 2021

Comentando J'Accuse (França/Itália/2019): Revisitando uma das fraudes judiciais mais escandalosas da História e ainda muito atual

Finalmente terminei de assistir J'Accuse, o último filme de Polanski.  Normalmente evito o diretor por causa de coisas muito complicadas que ele fez, mas era o caso Dreyfus e  não consegui resistir.  Para quem não sabe do que estou falando, trata-se de um caso emblemático de antissemitismo e manipulação da Justiça, iniciado em 1894, no qual um oficial de artilharia judeu (Louis Garrel) de currículo e moral ilibadas é acusado de espionar seu país, a França, para os alemães.  Ele era o único judeu servindo no Alto Comando francês e com acesso à segredos militares muito restritos.  Dreyfus é condenado à prisão perpétua de forma rápida e sumária, degradado publicamente e enviado para a Ilha do Diabo.  Entretanto, Dreyfus não é o protagonista do filme, mas o Tenente-Coronel Picquard (Jean Dujardin), ex-professor de Dreyfus na Escola Superior de Guerra, conhecido por seu antissemitismo, mas que ao assumir o comando da seção de estatística (*nome fantasia da seção de contra-espionagem*) descobre a fraude e decide fazer Justiça, enfrentando o alto comando e se expondo, ele, também, a uma série de humilhações e perseguições. 

Depois de retaliações, períodos na prisão e muito mais, Picquard é expulso do Exército, apesar de uma ficha de serviço impecável de mais de 25 anos.  O caso Dreyfus só chegou a um final provisório em 1906, quando Dreyfus é julgado novamente, não é absolvido, mas tem sua pena reduzida e lhe é oferecido o perdão do Estado.  Picquard  quer que ele rejeite e que a luta pela absolvição completa persista até o fim, custe o que custar, mas Dreyfus não vê os filhos pequenos faz cinco anos, está doente e mentalmente abalado e termina aceitando.  A acomodação incluiu o retorno de ambos ao Exército com patentes superiores, mas, não, a admissão da fraude que envolveu todo o alto escalão do Exército francês, o que ainda demoraria CEM ANOS para ocorrer.  Isso não é spoiler, é História, então, não aceito reclamações.

Outra coisa, antes de seguir, o "J'Accuse" , que dá nome ao filme, vem do manifesto escrito por Émile Zola (André Marcon) e publicado no jornal L'Aurore, de Georges Clemenceau (Gérard Chaillou), acusando o presidente, vários figurões do Exército, além de outros envolvidos na conspiração, de conspirarem contra um homem inocente.  Quem passa as informações para o jornal é Picquard, que de mãos e pés atados por ser oficial da ativa não pode se pronunciar publicamente sobre o caso, mas decide tentar fazer Justiça enquanto ainda está em liberdade.  A prisão viria logo.

Havia um espião, alguns dos envolvidos na fraude sabiam quem ele era, mas preferiram culpar Dreyfus e destruir sua vida, porque ele era judeu e, portanto, passível de cometer qualquer vilania.  Aliás, uma das cenas interessantes do filme é o diálogo entre o Coronel Jean Sandherr (Éric Ruf), chefe anterior da seção de estatística e responsável pelo Caso Dreyfus, e Picquard, quando este doente entrega para o protagonista uma lista com milhares de suspeitos de espionagem, gente que deveria se presa imediatamente em caso de guerra.  

O sujeito, que no filme está morrendo de sífilis, começa a falar em valores morais e salvar o país de ameaças, como os judeus.  Sífilis é uma doença que homens de bem pegavam normalmente por não levarem uma vida muito correta.  Enfim, J'Accuse tenta livrar a cara de Sandherr, meio que insinuando que ele foi conduzido ao erro pelo seu imediato, o Major Henry (Grégory Gadebois) e seu superior, o General Gonse (Hervé Pierre).  Eles sabiam que espião era Ferdinand Walsin Esterhazy (Laurent Natrella) e se aproveitaram da doença do Coronel, da sua mania de perseguição, dos delírios causados pela sífilis aliados ao seu antissemitismo, para atirá-lo contra Dreyfus.

Achei um tanto clichê (*mas vai que é verdade?*) a situação de Picquard chegando na seção de estatística e decidindo mexer em tudo por achar o ambiente desorganizado, sujo e incompatível com as rotinas militares.  O Major Henry, aliás, parecia uma versão meio sinistra do Sargento Garcia de Zorro, e tinha escrito na testa que era pouco confiável, fora que ele acreditava que iria assumir a seção.  As cenas poderiam se prestar, também, para reforçar a ideia é que por causa da doença, Sandher tivesse perdido o controle da seção de estatística.  Só que lembrei que todos os meus chefes no colégio militar que era artilheiros, como Picquard e Dreyfus, eram sujeitos meticuloso e super organizados.  Pensei, também, que Picquard  se comportou naquela sequência como a caricatura do virginiano obcecado por ordem.  E, bem, fui olhar e a personagem histórica era virginiana mesmo.  Coincidência.  😄

Enfim, J'Accuse é um bom filme e expõe as entranhas de um caso que mostra não somente o antissemitismo institucionalizado da França da virada do século XIX para o XX, mas, também, o corporativismo militar e a manipulação do patriotismo por parte dos generais para se salvaguardarem de qualquer punição. A Guerra Franco Prussiana (1870-71), um dos antecedentes da 1ª Guerra Mundial (1914-18), era recente e falar em Alemanha tinha efeito incendiário.  De qualquer forma, esse espírito de grupo não seria diferente se fosse a igreja católica, que é igualmente hierarquizada, ou a academia (universidade).  Aliás, chegou-se ao ponto em  que admitir um erro (*fraude, na verdade*) seria humilhante para toda a instituição.  Sendo assim, vários indivíduos mentiram e/ou foram coniventes.  Picquard, no entanto, a partir do momento em que seus olhos se abrem, se recusa a colocar os interesses do grupo, ou de sujeitos que o manipulam, acima da honra e da verdade.

O filme também ilustra bem como uma fraude pode ser mantida mediante o segredo e a conivência de uma série de pessoas desde que fosse conveniente para cada uma delas.  Mostra, também, como os elos fracos da corrente, caso do Major (*depois Coronel*) Henry, responsável por adulterar os documentos que levaram à condenação de Dreyfus, podem ser descartados.  E, sim, casos como o Dreyfus não são únicos, eles apontam somente para um tipo de arranjo que serve em primeiro lugar para confirmar as crenças.  O culpado tinha que ser o judeu, então, será o judeu.

Não consegui não lembrar tanto de filmes que gosto muito e que tem protagonistas parecidos, como O Homem que não vendeu a sua Alma e As Bruxas de Salém, filmes que mostram indivíduos que sacrificam sua vida para manterem limpas as suas consciências e seu nome, quanto os escândalos judiciais pelos quais nossa nação passou e ainda passa.  Lembrei do reitor da UFSC, Luiz Carlos Cancellier, que exposto publicamente como criminoso e acusado sem provas pela Lava à Jato, cometeu suicídio. No filme, é mostrada a tentativa de conduzir Dreyfus ao suicídio como forma de encerrar o caso. Penso também no ex-presidente Lula, e não estou discutindo se ele é inocente, ou culpado, falo de todas as irregularidades processuais cometidas, porque ele deveria ser o culpado, assim como seu partido.  Ou ainda, e recomendo o documentário, todos os mistérios que rondam o atentado contra o atual presidente no tempo em que era candidato.

O filme não tem como objetivo se ocupar de todo o caso, tampouco sinaliza em letreiramentos no final que Dreyfus só teve seu nome limpo totalmente 100 anos depois do caso.  J'Accuse acompanha a luta de Picquard, mostra seus aliados, como Émile Zola, o segundo julgamento de Dreyfus, mas não acompanha, por exemplo, a condenação do real espião, um oficial de artilharia que era filho e neto de generais. Enfim, o culpado não poderia ser ele mesmo, certo?

Concluindo, o Caso Dreyfus é horrível e este não foi o primeiro filme feito sobre ele.  Lembro que no Mestrado tive uma disciplina sobre historiografia no qual a professora parou para discutir a posição dos historiadores renomados da época sobre o caso.  Felizmente, pelo que me lembro, a maioria ficou do lado certo da história, mas o fato é que o caso mobilizou toda a França, intelectuais se dividiram, houve levantes antissemitas.  Aliás, a autora de Scarlet PimpernelBaronesa Emmuska Orczy, que é de 1905, faz uma crítica ao antissemitismo dos franceses em seu livro que, normalmente, fica fora das adaptações.  E basta pegar o que foi feito na 2ª Guerra, quando os alemães não tiveram que mover uma palha para capturar os judeus franceses, mais de 13 mil de uma vez só e colocá-los no velódromo de Paris, para ver que as coisas não melhoraram muito desde o Caso Dreyfus e mesmo hoje.  

Para quem quiser um filme sobre esse episódio, recomendo La Rafle, que é de 2010.  Só para marcar, desses 13 mil, pouco mais de 100 sobreviveram ao Holocausto.  A neta de Dreyfus foi mandada para um campo de extermínio, entregue aos nazistas pelo governo Vichy, a parte autônoma e nazista da França.  Já comentei aqui, inclusive na resenha de um filme israelense que assisti, Não Mexa com Ela, sobre a fluxo migratório de judeus franceses para Israel, porque são hostilizados tanto pela extrema direita católica, quanto pelos muçulmanos radicalizados.  Enfim, o Caso Dreyfus continua muito atual mais de cem anos depois.

Já caminhando para o final, Dujardin está muito bem como o protagonista que coloca sua honra e a da instituição que serve acima de qualquer coisa, mesmo os seus preconceitos.  Ele está bem charmoso também, assim como Louis Garrel que se entregou a mais uma metamorfose, como quando assumiu a pele de Robespierre em A Revolução em Paris.   Garrel constrói um Dreyfus como que saído das fotografias de época, orgulhoso e sofrido, que vai se degradando fisicamente até o desfecho do filme, mas não se dobra.  O resto do elenco também oferece boas interpretações.  Embora o filme siga uma narrativa linear, ele recorre vez por outra ao recurso do flashback, que acaba contribuindo para a construção da tomada de consciência de Picquard em relação ao seu antissemitismo e como desempenhou um papel vergonhoso em todo o caso.

Como me proponho a observar a forma como as mulheres aparecem no filme, devo pontuar que J'Accuse não cumpre a Bechdel Rule, mas, enfim, é um filme sobre homens e em um ambiente masculino mesmo e isso precisa ser levado em consideração.  A única mulher de destaque no filme é Pauline Monnier (Emmanuelle Seigner), uma mulher casada com um homem importante e que, por ser amante de Picquard, também sofre as consequências da perseguição imposta pelo Exército.  Poderiam ter dado algum destaque para a esposa de Dreyfus, Lucie (Swan Starosta) é minha única crítica neste aspecto. Ela sempre lutou pela inocência do marido, não desistiu dele, o visitou na prisão diariamente antes dele ser mandado para a Ilha do Diabo, então, merecia ter uma, ou duas cenas para si.

Recomendo o filme, ele é denso, mas não é arrastado ou chato em nenhum momento.  Constrói bem tanto as personagens, quanto o contexto histórico explosivo da época com um antissemitismo crescente e um patriotismo manipulado pelos poderosos que não tinham pudor algum em associar Dreyfus e os que o defendiam a uma conspiração judaica internacional.  Mesmo sabendo o desfecho do caso e  tendo que parar várias vezes o filme, eu consegui me empolgar com a película.  É isso, para quem quiser procurar o filme pelo título em português, ele se chama O Oficial e o Espião.

1 pessoas comentaram:

Olá! Assisti este filme e também gostei muito. Otima a sua resenha. Tem um outro filme sobre ele , ingles e de 1958, I Accuse ou O Julgamento do Capitão Dreyfus . Este mostra toda a história dele.

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