domingo, 20 de fevereiro de 2022

Discutindo o caso Flow: A Juventude Estendida tem Cor, Classe e Gênero

 

Por absoluta falta de tempo e cansaço, tenho escrito muito pouco sobre temas relevantes.  Um deles foi o caso Flow, que você deve saber do que se trata, se não estava em outro planeta nas duas últimas semanas, quando em nome da liberdade de expressão irrestrita, o apresentador, e então dono do podcast, Monark e o deputado Federal Kim Kataguiri defenderam o direito à existência dos nazistas, de um partido nazista no Brasil e, no caso do parlamentar, disse que ACHA que a Alemanha ERROU ao criminalizar a ideologia de Extrema-Direita.  Sim, defendeu o direito de existência de uma ideologia que, por princípio, prega o extermínio de segmentos inteiros da humanidade e já teve pelo menos uma oportunidade de tentar executar esse plano em escala industrial.

Desde o dia 7 de fevereiro, muita água já rolou debaixo dessa ponte, gente muito melhor que eu comentou o caso, o Ministério Público se pronunciou, e o MBL, grupo ao qual Kataguiri pertence ameaçou os críticos à postura do deputado com assédio judicial, Monark saiu do Flow, vendeu sua parte na empresa e se viu bloqueado de monetização ao tentar abrir um novo canal no Youtube, o que lhe mostrou que ele não é capitalista, porque ele não é dono dos meios de produção.  

Não é meu objetivo, no entanto, discutir nazismo, ainda que eu lamente que a Tábata, que fez lá o papel dela, porque arrancou o "Acho" do Kataguiri em relação à Alemanha, mas gostaria de marcar algo importante, o Nazismo não é somente antijudaico.  Os judeus são o alvo número um dos nazistas, foram suas maiores vítimas em termos quantitativos, mas esta ideologia condena à destruição todos os que considera ameaça e/ou inferiores.  Aliás, antes de matar os judeus, antes da Solução Final, começaram matando pessoas com necessidades especiais e problemas psiquiátricos, além de adversários políticos, como os socialistas, comunistas e até os pacifistas e liberais que se manifestavam contra o regime de alguma forma.  Foram enviados para campos de concentração e de extermínio, homossexuais, ciganos (*que foram mortos em larga escala*), testemunhas de Jeová, poloneses etc.  Aliás, os nazistas usaram como cobaias, tanto judeus, quanto eslavos e mesmo prisioneiros de guerra.  Provavelmente, você que está lendo este texto não teria o direito de existir em um mundo gerido pelos nazistas, não importa o que aquele coleguinha whitepardo da internet lhe falou.  Não teria MESMO.  Mas vamos ao ponto do texto.

Assistindo gente comentando o caso do Nazismo no Flow, e estou ouvindo a  Márcia Tilburi nesse momento (*vídeo abaixo*), é sempre curioso como gente de mais de 30 anos, ou perto de, é tratado como muito jovem.  Quando eu penso em muito jovens, penso em adolescentes, meus alunos e alunas, se o sujeito está no limite dos 30, é um adulto que teve tempo de aprender alguma coisa, mesmo que possa mudar de posição, afinal, enquanto há vida, há esperança, sobre suas ideias problemáticas.  Sim, eu acredito nisso, e a Tilburi cita o Felipe Neto para reforçar esse ponto.  

Curiosamente, todos os muito jovens aos 30 anos do nosso século XXI, porque houve momento em que não foi assim,, são socialmente brancos e de classe média para cima.  O menino ou menina negro, ainda mais agravado pela pobreza, aos 11 anos já teria idade suficiente para saber o que quer.  Aliás, comentei como essa ideia estava presente na infeliz novela Nos Tempos do Imperador (*e voltarei a falar dela hoje*), uma construção contemporânea sobre o século XIX, que ao retratar a menina negra de 12 anos a colocou como rival da branca de 20 e poucos por um macho e plenamente responsável por seus atos.  Aos 18-20, na segunda parte da novela, ela não era tratada com a mesma complacência das outras personagens femininas brandas de sua idade.  Ela era apresentada como capaz o suficiente para saber perfeitamente o que era certo e errado, além de sexualmente madura.

Outro ponto importante desse caso todo, e volto à adolescência/infância estendida daqui a pouco, é que ao delimitar o nazismo como uma ideologia contra os judeus, limitando a sua dimensão, o que a Tábata possibilitou discursivamente foi a mobilização de todas as entidades judaicas de tendências políticas das mais opostas e grupos que se dizem a favor dos judeus (*e recomendo o canal do Prof. Michel Gherman para a discussão da construção do judeu imaginário*) contra Monark e Kim Kataguiri.  Esse clima deve ter pesado inclusive para que a Record cancelasse a reprise da novela Vitória, que tem neonazistas como vilões, temendo que, assim como ocorreu em 2014, oparte da audiência pudesse torcer pelos malvados, afinal, há quem seja simpatizante e quem acredite que ser nazista é OK.  Enfim, louvo a mobilização, mas veio na esteira dela o discurso de que quando Monark foi racista, a coisa passou batida, era exercício da liberdade de expressão, mesmo sendo crime no Brasil.  

Esta constatação não veio acompanhada, na maioria das vezes, da reflexão sobre o fato do Holocausto dos judeus ser amplamente divulgado, de que ele mexe com algumas das culpas de muitos países que fecharam os olhos ou invejaram os atos de Hitler, assim como a influência econômica de alguns grupos judaicos ou que assim se veem etc.  O que eu li e ouvi muito foi "Pena que os negros não são tão bem organizados!" "O Movimento Negro precisa aprender com as organizações judaicas!".  Resumindo: negros, vocês precisam se esforçar mais, ou suas pautas nunca serão reconhecidas.  Ora, com isso se esquece o racismo estrutural, a falta de simpatia social e das mídias com as demandas dos negros e negras, a acusação de mi-mi-mi.  

O antissemitismo é prevalente e está em todo o lugar, mas o Holocausto é reconhecido simbolicamente como um crime descomunal contra toda a humanidade e dá legitimidade às reclamações JUSTAS da comunidade judaica, já a escravização dos negros e negras e o racismo decorrente de 300 anos dessa instituição é naturalizado como algo que foi fundamental para a construção do Brasil.  Aliás, o deputado Kim Kataguiri, sim, ele mesmo, acabou de protocolar esta semana uma proposta para acabar com as cotas étnico-raciais, porque elas seriam desnecessárias.  Ele disse que "A pobreza não tem cor", isso é parcialmente verdade, mas o racismo existe e atua de forma muito pesada, inclusive cooptando negros e negras a acreditar que sua cor não lhes trará desvantagens em nossa sociedade.

Voltando, o que estou enfatizando no caso da juventude estendida, é que não se trata se complacência neutra, ou de infância/adolescência estendida para todos como alguns veículos de comunicação gostam de vender (*EXEMPLO*).  É como o povo que começou a estudar a construção da infância e, mais tarde, da adolescência, e apontou que é algo ligado à sociedade burguesa e sua constituição, um fenômeno, portanto, do final do século XVIII.  O livro fundamental, caso você queira dar uma olhada é História Social da Criança e da Família, do Philippe Ariès (*Tem no Amazon e nos sebos por aí muito mais barato.*)  Discordo e muito desses estudos generalistas, ainda que sejam um marco na historiografia e há bons estudos mostrando que o conceito de infância não foi crido pelo capitalismo e que há várias possibilidades de infância, mas, enfim, o que volta e meia esses estudos fundadores perdiam de vista é a questão de classe, eram europeus falando, a qual poderíamos acrescentar, no caso do Brasil, a racial, também.

A infância burguesa é delimitada com uma certa rapidez, mas para os pobres, continuou valendo a ideia de que tão logo pudessem andar já estavam aptos ao trabalho.  Da mesma forma, ainda se viam execuções de crianças no início do século XIX, todos não pertenciam à burguesia.  Casamentos de meninas no limite da puberdade ainda ocorriam com certa frequência, mesmo dentro das casas reais.  Crianças brancas trabalhavam em minas e fábricas, garotos pobres ainda eram vistos nos exércitos e marinhas, meninos e  meninas negros trabalhavam nas lavouras de café e em outras tarefas relegadas aos escravizados.  A infância protegida, a adolescência tranquila, às vezes, a juventude dos moços ricos estendida  por viagens e lazeres, era para poucos no século XIX e XX.  


Um Monark (31 anos), um Kim (26 anos), uma Tábata (28 anos) poderão alegar juventude por muito tempo ainda.  Mais eles do que ela, porque o fato de Tábata Amaral ser mulher, ainda que mais jovem que Monark, ou que um Felipe Neto (34 anos), torna seus deslizes e opções questionáveis muito mais criticáveis do que as de seus colegas homens e as críticas, mesmo que justas, a ela vem normalmente carregadas de machismo e até misoginia.  Como mulher, ela tem o DEVER de amadurecer mais rápido e de ser capaz de discernir sobre temas que os meninos, coitados, não tem como compreender ainda.  Fora isso, o fato dela ser mulher parece obrigá-la a ser mais empática do que seus colegas homens.  Existe uma natureza feminina que nos obrigaria a ficar do lado certo, a amar, ou sermos consideradas monstros anormais.  Isso aqui renderia outro texto e, não, não estou defendendo Tábata, não a vejo com os mesmos olhos de um texto que fiz sobre ela meses atrás. Considero Tábata um elemento realmente desagregador, perigoso até, mas que parece atraente diante de tanta irracionalidade. 

De qualquer forma, as elites protegem os seus, ou os propagadores úteis de ideias que lhe são interessantes.   Porque como Monark está descobrindo nesses últimos dias, ele não é um capitalista, ele é uma engrenagem do sistema que pode ser descartada, se for interessante à manutenção da ideia de que somos civilizados e não compactuamos com o mal, mesmo que enunciado por um sujeito imbecilizado por anos e anos de preguiça mental e superproteção.  Não colou dizer que estava bêbado.  Infelizmente, talvez o deputado, alguém que por ocupar função pública precisa ter um cuidado especial com o que fala, saia bem mais tranquilo dessas história.  É um menino, enfim... 

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