As ucranianas "são fáceis, porque são pobres": nojo de pobre, racismo e misoginia no mesmo pote putrefato.

Dois membros do MBL, Renan Santos e o deputado estadual paulista (PODEMOS) Arthur do Val, o Mamãe Falei, alardearam que foram para a Ucrânia ajudar o povo do país que está sofrendo com a invasão promovida pela Rússia.  Aqui, o deputado, e outros de membros do MBL, é conhecido por invadir hospitais para provar que a COVID não era um problema tão grande assim e atacar o Padre Júlio Lancelotti, conhecido por seu trabalho com a população de rua em São Paulo.  Ainda antes de entrar na Ucrânia, o deputado postou vídeos informando, inclusive, que estava ajudando a resistência ucraniana a fazer coquetéis Molotov.  Super normal, super, super.  Agora, a coisa ficou esquisita, e ele já admitiu que o áudio é REAL, e voltou correndo para São Paulo, mas disse que é homem e jovem (*com 35 anos, ele é um dos abençoados com a extensão dessa fase da vida*), então, ele errou, porque agiu como um homem cis hetero comum.  Será mesmo?  Enfim, se tiver estômago, ele está aí embaixo, completo.  Se não quiser ouvir, siga para os meus comentários.

No áudio, o deputado diz com todas as letras que seu amigo, Renan Santos, faz turismo sexual, que é crime, assim como sua apologia, na Europa todos os anos para "pegar loiras", é o "tour de blonde", termo usado por Do Val.  Ele explica, também, que o amigo fala sueco, por isso, está em outro nível, ele entende muito do assunto.  Segundo o próprio áudio, Santos não iria à Europa faz três anos.  Do Val diz que tão logo as coisas se acalmem, ele irá viajar para a região e assegura que não tinha "pegado" ninguém ainda, porque mulheres são coisas e podem ser pegas.  Algo importante, até o vazamento do áudio, ele tinha namorada.  A moça rompeu com ele.

Do Val fala das filas de refugiadas, veja, são mulheres e meninas desesperadas, fugindo da guerra, e as compara com as das melhores baladas de São Paulo, porque são grandes e por terem mulheres bonitas.  Fala também das policiais-deusas, doze, no mínimo, que ele viu ao atravessar da Eslovênia para a Ucrânia.  Antes de falar que as ucranianas são fáceis, porque são pobres, as acusa de serem, logo no início do áudio, "gold diggers", mercenárias, interesseiras, pessoas em busca da fama, há vários significados, todos eles pejorativos.  Para ele, todas as ucranianas estariam dispostas a transar com ele por dinheiro, porque elas são pobres, ele explicará mais tarde.

Retomando as dicas do coleguinha, ele dá o percurso para os que desejarem "pegar" mulheres da região dizendo que não se deve ir para cidades praianas no Leste Europeu, que pretende visitar todos os anos depois que essa guerra passar, mas do interior, onde as pessoas são pobres, ou muito pobres para os padrões dele, claro, e que as mulheres mais fáceis estão nos mercados, nas praças, na rua, trabalhando nas lojinhas e hotéis  Do Val fala, também, umas escatologias que seria capaz de fazer, porque as ucranianas são deusas e mulheres assim, em São Paulo, cuspiriam na cara dele (*lembrem que ele tinha namorada, ela não deveria ser uma dessas mulheres espetaculares*) de ele lhes desse "bom dia", enquanto no país europeu elas se atiram em cima de homens como ele.  

Observem como esse sujeito se sente pequeno, ele realmente acredita que só teria acesso (*e isso pode ser lido de várias formas, inclusive pelo estupro*) à atenção e ao corpo de um tipo de mulher que ele cobiça, a "deusa loira", se ela está em situação de fragilidade e a sua mercê, porque é POBRE, na leitura dele.  A mulher é "fácil", porque homens assim, vazios, não se acreditam capazes de chegar perto daquelas que consideram realmente valiosas por seu corpo, vejam bem, porque é isso que está em questão.  E, aqui, entra o fator racismo descaradamente, assim como no caso do "tour de blonde".  E vejam que há muitos que saíram da toca para defendê-lo (*o comentário abaixo veio do texto do blog da Lola, mas o cara escreveu a mesma coisa no Instagram*).  O que ele fez, foi elogiar as ucranianas, mas se elas recusarem os "elogios", ser chamada de "gold digger" e fáceis, elas automaticamente seriam chamadas de vagabundas, de putas.

Só para dar um contexto, não da fala abjeta, mas do Leste Europeu, mesmo antes da crise que estamos assistindo, vamos lá.  O Leste Europeu após o colapso da URSS e da desestruturação dos países socialistas da região passou a ser um lugar conhecido pelo tráfico sexual de mulheres. Já em 2001 uma matéria do Le Monde alertava que "No continente europeu, o espaço do tráfico de mulheres abrange países “fornecedores” (Rússia, Ucrânia e Romênia), países de trânsito (essencialmente os países da ex-Iugoslávia e a Albânia) e os países destinatários (Itália, Alemanha, França…)".  Passou muito tempo?  As coisas mudaram?  

Assisti um documentário DESTE ANO da BBC sobre o tráfico de meninas na Romênia, sim, meninas, 12, 13 anos, aliciadas, ou raptadas nos arredores de suas escolas.  Encontrei um texto de uma brasileira que tem um site de viagens, além de um canal do Youtube, e destaco o seguinte trecho "A UN.GIFT (Iniciativa Global da ONU contra o Tráfico de Pessoas) estima que 79% dos casos de tráfico humano na Europa são de exploração sexual, 18% trabalhos forçados e o resto é dividido entre venda de órgãos e mendicância. Os países mais comuns são Ucrânia, Russa, Romênia, países asiáticos, Brasil, Argentina…"  E a autora do texto tem um vídeo contando quando presenciou uma moça sendo traficada na Dinamarca e outros casos, inclusive envolvendo uma moça ucraniana, e o canal Sobrevivendo na Turquia está cheio de relatos de tráfico humano.

De resto, o áudio expõe o que alguns homens, alguns, que fique claro, veem quando se deparam com uma mulher em necessidade: um alvo fácil. Ouvindo Arthur do Val é patente o quanto ele se sentia frustrado pro não ter podido "pegar" uma "deusa" ucraniana.  Quanto ele pagaria?  Qual seria o preço do desespero? Jamil Chade, um dos maiores jornalistas brasileiros vivos, escreveu um excelente texto, uma carta aberta ao deputado estadual, apontando o preço pago pelas mulheres e meninas em países em guerra, e cito "Ao longo da história, a violência sexual é uma das armas de guerra mais recorrentes para desmoralizar uma sociedade. Ela não tem religião, nem raça. Ela destrói. Demonstra o poder sobre o destino não apenas das vidas, mas também dos corpos e almas." Desafio qualquer pessoa de boa vontade e com a mente mais ou menos sadia a ler o testemunho de Chade de meninas e mulheres em zonas de guerra e não sentir o impulso de chorar.  

Mas, enfim, pode ser que, no fim das contas, Do Val só esteja delirando mesmo, porque há caras, e não são menos perigosos, que recebem "bom dia" de uma mulher e já pensam que ela está doidinha para transar com ele. De qualquer forma, é preciso saber guardar seus delírios e desejos perversos, porque cobiçar sexualmente mulheres em situação de desespero e vulnerabilidade é um ato perverso, para si, ainda mais quando se tem como bandeira a moral e os bons costumes.  E retomo que o mesmo Arthur do Val faz parte do MBL, que perseguiu a exposição Queer Museu, e ele atacou mulheres que estavam em um curso sobre masturbação feminina vestido de vagina.  Terror moral é uma arma do MBL, mas assediar mulheres ucranianas fragilizadas pela guerra é OK.

Ainda assim, e isso é perigoso, ele foi o deputado estadual mais votado por São Paulo, fez uma bela campanha para a prefeitura e sua carreira não terminará com este escândalo.  Eu apostaria dinheiro nisso.  E mesmo com o clamor da comunidade ucraniana pela sua cassação, duvido que aconteça.  De resto, turismo sexual já foi defendido pelo nosso presidente, escrevi texto sobre isso, e a única novidade é fazer esse tipo de coisa em uma zona de guerra.  O pioneirismo do MBL.

Fora isso, é um bom áudio para quem acha que prostituição deve ser encarada como "escolha" em qualquer caso, quando a própria descrição do canalha dá ênfase no desespero das mulheres e que elas se ofereceriam por estarem em situação de miséria.  A violência as quais as mulheres são submetidas não raro as conduzem a caminhos que não escolheriam se tivessem outras possibilidades, depois, endividadas, traficadas, ou mesmo sem perspectiva de algo menos pior, é preciso justificar a sua condição para não enlouquecer.  Daí, prostituição tem que ser escolha, porque, se não for, como ela poderá escapar desse inferno de ter que transar com caras como esse Mamãe Falei para sobreviver, ou ter algo melhor?  Sim, a feminista que vos escreve não faz parte do grupo que vê a prostituição como uma profissão como outra qualquer, não em um mundo patriarcal e capitalista.  

Enfim, esse sujeito é um exemplar típico da baixeza que os últimos anos da política brasileira produziu.  Do Val, como defende a comunidade ucraniana no Brasil, não poderia estar na vida pública, mas tem muitos admiradores capazes de lhe darem seu voto e o defenderem na internet.  Ele sequer deve compreender o buraco em que está, porque, bem, aqui no Brasil, ele persegue o Padre Júlio Lancelotti, que é um homem que exercita a caridade cristã como deve ser, e o acusa de cafetinar a miséria.  Sim, termo dele, que adoraria, como vimos no áudio, se aproveitar das deusas ucranianas em situação de desespero por causa da guerra.  As mulheres pobres daqui, as que estão na rua, desesperadas, normalmente não se enquadrariam no padrão de deusa loira que ele cobiça.  Junta nojo de pobre, racismo e misoginia no mesmo pote putrefato.  E, não, não acredito que Mamãe Falei encerrou sua carreira, muito pelo contrário.