domingo, 31 de julho de 2022

Comentando mais uma vez Além da Ilusão: E é só para reclamar mesmo!

Além da Ilusão está na reta final, a novela termina em 19 de agosto, e eu gostaria de registrar algumas coisas no que deve ser meu penúltimo texto sobre a trama.  Eu queria ter escrito mais sobre a novela de Alessandra Poggi, mas conforme o tempo foi passando, fui ficando meio desgostosa e mesmo assistindo religiosamente, talvez, mais criticasse do que elogiasse.  Comento no Twitter, mas só fiz cinco textos para o blog (*1 - 2 - 3 - 4 - 5*), sendo um deles focado no estupro que nunca foi tratado como tal e outro na proibição da prática de alguns esportes pelas mulheres.  No início, por contraste com a tragédia que foi Nos Tempos do Imperador, Além da Ilusão parecia melhor do que ela era de verdade.  O elenco é muito competente, mas as tramas foram se desgastando, especialmente, a envolvendo os protagonistas (Isadora, Rafael/Davi, Joaquim) e há questões muito complicadas e que são levadas ao ar sem nenhum senso crítico.  

O que me empurrou a escrever foi uma delas, a prisão de Emília (Gaby Amarantos), mulher preta, pobre, que  ousou sonhar demais e que cometeu crimes, como 80% do elenco da novela, mas foi ofendida em uma cena horrorosa ontem que enfatizou que ela estava presa por tentar dar um golpe em "gente de bem".  Se o termo "gente de bem" fosse usado com ironia, seria fácil de digerir, mas não é o caso, uma mulher rica e socialmente branca que no exato momento em que acusa Emília está enganando parte de sua família, tripudia sobre a outra como se fosse, como seu próprio nome diz, Santa (Arlete Salles).  De qualquer forma, o problema de Emília é ter a cor de pele errada.

Desde o início, me incomodou um tanto que a autora montasse um casal formado por uma mulher negra que tem sonhos, ela quer ser uma estrela, e que é lembrada o tempo inteiro que não saber o seu lugar, casada com um homem branco (Cláudio Gabriel), cujas virtudes, começando por se casar com alguém abaixo dele (*isso nunca é dito, mas branquitude é capital simbólico*), eram sempre exaltadas.  Eu entenderia se a autora construísse uma trama que confrontasse um homem conservador e conformado com seu lugar na sociedade e uma mulher que poderia viver com a cabeça nas nuvens, mas tinha um grande talento musical.  No entanto, ao longo de capítulos vimos Emília ser transformada em adúltera,  estelionatária e mãe relapsa para os padrões da época.  E, quando o marido finalmente se entrega a outra mulher, Giovanna (Roberta Gualda), ele acaba sendo visto como uma vítima das circunstâncias, afinal, ele foi traído e humilhado publicamente.  Agora, nas últimas três semanas, a autora vai nos dar uma redenção de Emília, mas que não irá reconstituir sua vida familiar, tampouco, apagar toda essa trajetória desastrada.  

Enquanto Emília, a mulher preta e pobre é punida, o mocinho da trama usa de identidade falsa para cometer uma série de delitos, como registrar filho, casar-se, entre outros, sem que em nenhum momento o próprio faça uma autocrítica.  Ele está fazendo isso "por amor".  Vejam bem, se Davi (Rafael Vitti) fosse apresentado como alguém que luta desesperadamente para provar sua inocência desde o início, palavra que eu comprava os crimes colaterais como uma necessidade estratégica, mas ao longo de mais de cem capítulos ele praticamente não se mexeu para provar que foi vítima de uma grande armação. Além disso, ele deixou de usar as provas que tinha para derrotar definitivamente seu inimigo, Joaquim (Danilo Mesquita), revelando seus crimes por motivos meramente egoístas e burros, logo ele, que é tão astuto.  Aliás, criaram-se outras situações nas quais o inteligente Davi agiu de forma tola, como ao não esconder os negativos no fundo falso do baú, simplesmente para atender aos interesses do roteiro.

É muito complicado, também, acreditar que Dorinha (Larissa Manoela) não ficaria abalada de verdade depois de saber da identidade do rapaz, que as suas dúvidas tenham sido rapidamente anuladas e, mais ainda, nunca tenha se questionado sobre a moralidade de Davi, que se deitou com sua irmã e com ela, que mentiu e cometeu crimes e não aprece ter se mexido para provar sua inocência.  Sim, há casos vários de viúvos ao longo da história que se casam com a irmã da esposa, mas os ingredientes de Além da Ilusão são um tanto indigestos, a começar com Dorinha sendo criança na primeira fase e todos repetirem a todo momento que ela é muito parecida com a falecida.  Estarei me repetindo, porque já escrevi isso em outros textos, mas Davi deveria ter ficado abalado ao conhecer Isadora, lutado contra o sentimento, mesmo sucumbindo depois, e não se apaixonado à primeira vista pelo duplo da morta e se jogando neste romance como um adolescente que, pelo menos na novela, ele está longe de ser.

Dorinha, como agravante, parece ter múltiplas personalidades.  Quando Joaquim falou que ela pode ter a doença do pai, eu até compro isso, porque ela vai de um liberalismo de costumes de fazer corar a maioria das feministas de sua época a um moralismo tacanha de abandonar o noivo no altar por ele ter se deitado com uma vedete, quando ela, que transou alegremente antes do casamento, estava brigada com ele e brincando de ser juventude transviada quase dez anos antes do fenômeno se tornar popular.  E a culpa não é de Larissa Manoela, que defende bem a personagem e recebe alguns dos textos mais cafonas da novela.  E ainda se casa com o vilão, que já tinha gritado com ela, falado contra seu desejo de ter profissão, a agarrado pelo braço, destratado pessoas mais humildes diante dela etc. etc. etc., e depois me vem com a história de que "ele mudou".  COMO ASSIM?  Por essas e outras que eu acredito que a personagem tenha algum transtorno.

Falando em transtorno, nas últimas semanas, a autora investiu pesado na redenção de Matias, personagem interpretado magistralmente por Antonio Calloni.  E este é outro ponto muito incômodo, porque Matias já tinha um caráter muito ruim antes de manifestar os sintomas de esquizofrenia e acabar perdendo a razão.  Eu achei um exagero acrescentar o estupro de Heloísa (Paloma Duarte), porque foi o que ocorreu, algo ao melhor estilo da sedução de Cécile por Valmont em Ligações Perigosas sem, muito provavelmente, o prazer que o libertino deveria saber dividir com suas vítimas, porque não deixavam de ser coagidas por chantagens e ceder.  Mas vai, ele foi o responsável pela desgraça de Heloísa com a perda de sua filha.  De uma hora para outra, Matias passou a admirar e mesmo amar a "criança que ninguém queria" e que o levou quase a matar a irmã de Inácio (Ricky Tavares), a bebê Clara (*que sumiu da novela*), em um surto em que acreditou que a menina era a filha de Heloísa.

A revelação da paternidade de Olívia, a excelente Débora Ozório, algo que iria ser feito de qualquer maneira, ainda teve a terrível forçação de barra de afirmar que uma pessoa deve receber doação de sangue de um parente direto.  Olha, poderia ser naquele momento mesmo, mas sem esse tipo de informação equivocada, bastava Matias berrar que queria salvar sua filha e que iria doar seu sangue.  E mais, da mesma forma que somos forçados a receber doses diárias sobre como a legislação ligada ao casamento era machista no caso Isadora-Joaquim, quando este casamento sequer deveria ter ocorrido, ainda temos a necessidade de tentar fazer analogias e links entre o momento político atual e o governo Vargas.  Em 1945, em plena abertura política, toda uma ênfase em luta contra a ditadura e gente, que deveria amar Vargas por conta das leis trabalhistas, indo para a rua protestar.  Nem irei falar de Tenório (Jayme Matarazzo), porque eu gosto desses rolos de padre angustiado porque se apaixonou, mas o cara demorar uma semana, pouco mais que isso, para tomar a decisão de largar a batina, e, depois, ir trabalhar de peão quando deveria ser o sujeito com a maior escolaridade da trama, me desgastam muito.  

Eu não me importo com redenção de personagens, mas Matias era tão perverso que a complacência com que ele é tratado nos últimos tempos e mesmo a relutância de Violeta (Malu Galli) em tomar providências contra ele são angustiantes.  Violeta não o crê capaz de ter feito o que faz com Heloísa, quando ela mesma desconfiou que ele havia matado Elisa, calando-se depois de uma ameaça, e quase sofreu um feminicídio.  E que ninguém me venha falar em "moral da época", porque a novela a dobra o tempo inteiro, fora que Violeta era chamada de feminista em 1934 e continua muito moderna para quase tudo, menos quando interessa ao roteiro.  Compreendo que as pessoas são complexas e contraditórias, mas há personagens nessa novela que oscilam ao sabor do vento.

Ninguém entende os motivos de Margôt (Marisa Orth) se associar à Úrsula (Bárbara Paz), ou a necessidade de transformar Iolanda (Duda Brack) em uma vilã.  Ainda temos excelentes personagens vivendo de esquetes cômicas, porque a autora não sabe bem o que fazer com elas.  Mariana (Carol Romano), por exemplo, que depois de ajudar Plínio (Nikolas Antunes) e Leopoldo (Michel Blois) continuou sendo tratada como pária, ou o núcleo de Arminda (Caroline Dallarosa), uma das melhores personagens da novela, mas que parece viver em uma novela em separado.  A trama do sheik, por exemplo, é algo muito indigente, fora o uso de estereótipos saídos direto da Arabland e que a gente não precisava ver em uma novela em 2022.  E isso nada tem a ver com o talento de gente como Paulo Betti, mas as escolhas feitas pela autora.  Fora isso, é incompreensível que não tenhamos mais radionovela, mas ela só tinha sido criada para construir um casal de homens que tinha a única função de mostrar que a novela era inclusiva, sem ser.

A novela continua gerando grandes momentos, há cenas que conseguem mobilizar a gente, como a volta de Bento (Matheus Dias), ou Heloísa finalmente revelando a verdade para Violeta e se culpando do que não é sua culpa, mas Além da Ilusão, pelo menos sua trama principal, andou em círculos.  A aparição de Nise da Silveira foi bonita, porque ver Glória Pires em cena é sempre bom, e pode ser importante para a trama de Leônidas (Eriberto Leão), mas, ao mesmo tempo, serve para tentar humanizar Matias.  Ele pode ser vítima de uma doença e do tratamento cruel que era a regra na época, mas ele é mau e cruel.  De resto, teremos mais três semanas de armações sem fim de Joaquim, Úrsula e Iolanda, com direito a roubo de criança, além da pobre Silvana (Thayla Luz) voltando para catar os cacos de Bento. 

 

Aliás, me pergunto se o fato de Lorenzo (Guilherme Prates) ter mentido que foi convocado para a guerra quando, na verdade, se alistou, vai ficar esquecido como o estupro sofrido por Davi.  E foi muito engraçado ver a pobre Manoela (Mariah da Penha), que é o membro número 1 do fã-clube de Joaquim, ser a criatura de bom senso a se espantar com a aceitação de qualquer coisa que Davi-Rafael fale ou faça por parte de boa parte do elenco.  Realmente, é preciso voar e voar muito para não se enervar com os rumos dessa novela, mas confesso que Paloma Duarte com o bacamarte ontem salvaria o capítulo inteiro.

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