sábado, 30 de julho de 2022

Pacto Brutal (HBO MAX/2022) precisa ser assistido e, sim, você vai se sentir muito mal quando terminar

Este post é uma resenha bem geral da série documental da HBO MAX chamada Pacto Brutal: O Assassinato de Daniella Perez (A Brutal Pact: The Murder of Daniella Perez).  Em cinco episódios, os dois primeiros lançados no dia 21 de julho e os demais no dia 28, temos uma visão geral do crime, das investigações, do julgamento e do que aconteceu a seguir ao assassinato da jovem atriz Daniella Perez (1970-1992), filha da novelista Glória Perez, que é a voz mais ouvida durante os documentários e guia a narrativa externando sua dor, suas reflexões sobre os criminosos e a justiça e apresentando fotos tanto da moça viva e feliz, quanto do seu corpo destroçado, o que chocou muita gente que assistiu, mas um recurso que foi fundamental para dimensionar a covardia e crueldade do crime.

O assassinato de Daniella Perez foi um dos crimes de maior repercussão midiática da história do nosso país.  Eu era adolescente quando ocorreu, eu acompanhava a novela (De Corpo e Alma) e segui mal e mal os acontecimentos.  1992 foi um ano agitado, Caras Pintadas, Impeachment de Collor, eu me preparando para o vestibular.  O que me vem na cabeça sobre o crime era o fato dos assassinos serem muito jovens, assim como a vítima, que poderia ser minha amiga pela proximidade de idade, e da imprensa sensacionalista explorar ao máximo a suposta ligação com ritual religioso demonizando as religiões de matriz africana e as ilações sobre a sexualidade de Guilherme e, também, de Daniella.  

Acompanhei de longe o desenrolar dos acontecimentos até que Pádua passou a reaparecer na mídia como pastor e explorando ao máximo discursos que me são familiares, pois sou batista desde o ventre materno e cresci e vivi boa parte da minha vida dentro da igreja e circulando em círculos afins, para se promover.  Aliás, os documentários o ajudarão a continuar fazendo isso e, não, não estou dizendo que Pacto Brutal não seja necessário.  Pádua já fazia isso antes e continuará fazendo, enquanto for lucrativo para ele. Inclusive, saiu um texto de opinião na Folha de São Paulo, que eu não irei linkar, porque não quero colocar mais azeitonas na empadinha do autor, que está para lançar livro sobre o crime, acusando Pacto Brutal de não ser justo por não ter dado espaço para os assassinos e seus defensores.  

Quem assistiu todos os episódios, este texto foi feito em cima dos dois primeiros, sabe que os assassinos foram ouvidos, suas palavras estavam lá, PORÉM, Pacto Brutal tinha como objetivo dar voz à mãe, Glória Perez.  Hoje, com 46 anos, eu consigo imaginar a dor dela como mãe, que abraçava integralmente o seu papel, e teve sua filha roubada, uma vida interrompida com todas as possibilidades.  Ela iria se tornar uma grande atriz? Optaria pela dança? Teria filhos?  Quantos?  Em 28 de dezembro de 1992 mataram Daniella Perez, ela não volta mais.  Os assassinos terminaram sendo favorecidos pelo sistema judicial brasileiro e conseguiram seguir com suas vidas.  A única vida que acabou foi a de Daniella e seus familiares, viúvo, amigos e amigas seguem sofrendo.  E não esperem de mim qualquer simpatia por Pádua, que é quem mais aparece na mídia, porque nunca consegui detectar em suas falas ao longo de muitos anos nenhum vestígio sequer de arrependimento, nenhuma empatia pela vítima.  Quanto à Paula Thomaz, pouco sabemos do que ela pensa ou sente, é tudo muito mais fragmentado e fica um grande espaço para preenchimento de lacunas, algo que eu não pretendo fazer neste texto.

Estabelecidos esses pontos, vou comentar rapidamente os cinco episódios a partir daqui.  O primeiro episódio mostra a noite do crime e a descoberta de que Guilherme de Pádua era o assassino.  Temos as falas de vários familiares de Daniella, em especial, sua mãe, seu marido, Raul Gazolla, e seu tio médico, o primeiro a chegar ao lugar onde estava o corpo.  É o episódio mais impactante, acredito, porque há uma unidade narrativa, um assunto só.  Daniella sumiu, será que foi sequestrada?  O desespero vai crescendo e eu consegui sentir também, porque o desfecho é conhecido e a gente imaigna o quão terrível era a situação dos envolvidos.  Quem a viu pela última vez?  Ah, ela tirou fotos com umas crianças na porta do estúdio.  Guilherme de Pádua estava lá, também.  Marilu Bueno, atriz que faleceu recentemente e fazia sua mãe na novela, é procurada, ela não teria saído com Daniella do estúdio.  Os amigos falam do que sentiram, do que viram, de Guilherme de Pádua indo até a delegacia prestar solidariedade.  O enterro, que virou atração para um público enorme, é algo que gera angústia.  Há gente rindo, tentando fotografar, em cima dos muros do cemitério, é um espetáculo.  

Quando chegamos ao final do capítulo, o delegado, graças a um sujeito que tinha anotado as placas de dois carros parados na borda de um matagal na Barra da Tijuca, já sabem que Pádua está envolvido no crime e pedem silêncio para Glória Perez, pois ele poderia fugir.  Este capítulo foi o que mais me impactou.  Eu chorei em vários momentos.  Neste episódio é comentado que Daniella estaria com 6 mil dólares emprestados pela mãe na bolsa para pagar um carro que estaria comprando.  A bolsa sumiu, assim como os bilhetes que Pádua teria lhe enviado e este assunto não volta a aparecer em momento algum do documentário.  Além de homicídio, teria ocorrido roubo.  Achei realmente estranho que em nenhum outro momento esta questão tenha voltado a ser discutida.

O segundo capítulo é a prisão e confissão de Guilherme de Pádua e a tentativa, inclusive do delegado do caso, de deixar Paula Thomaz fora do caso, apesar dos indícios de sua participação.  Há destaque para o papel da imprensa tanto para forçar o indiciamento (*nem sei se é o termo correto*) de Paula Thomaz, quanto para romantizar o ocorrido.  Guilherme teria matado para parar o assédio que sofria por parte de Daniella, sendo um homem casado e com esposa grávida, além de temeroso quanto a sua carreira, ou ele teria cometido o crime por ter sido recusado por ela que se negou a ter um caso com ele, ou queria terminá-lo.  De qualquer forma, o comportamento da vítima passou a ser escrutinado e as capas das revistas e jornais apontam para a confusão que foi feita entre a ficção, a novela, e a realidade.  Aqui, temos o depoimento de funcionários do estúdio (maquiadoras, camareiras, coreógrafa etc.), além de colegas de elenco, apontando que Guilherme de Pádua parecia preocupado com a diminuição do seu papel na novela, algo que seria fruto de sua imaginação, e como ele perseguia insistentemente Daniella Perez.  Aqui, a tese de que Pádua teria matado Daniella Perez para atingir sua mãe é reforçada a todo momento e que ele teria manipulado o ciúme da esposa para que ela fosse coautora do crime.

O episódio três foi outro que me comoveu muito, e reconheço que foi o que teve mais ritmo de novela mesmo, e mostra a luta de Glória Perez para conseguir tanto que os frentistas que testemunharam o crime se apresentassem, quanto para mudar a lei de crimes hediondos aprovada em 1990.  Esta lei incluía como crimes os crimes de sequestro, estupro e latrocínio, negando aos seus autores o direito à liberdade provisória e progressão de regime.  O homicídio qualificado não era arrolado, o que aponta que o estado burguês se preocupa mais com os bens, vide o latrocínio, do que a vida.  Obviamente, não se discute isso no capítulo, mas abre-se o leque para falar da dor de outras mães que tiveram seus filhos mortos, como as Mães de AcariJocélia de Castro, que teve sua filha Miriam, de cinco anos, assassinada brutalmente no mesmo ano de 1992.  Perez se empenha junto com um monte de gente para colher as assinaturas, que precisavam ser milhões e de todo o país, para uma lei de iniciativa popular.  Ela quase não passou e o objetivo era para o futuro, para outras mães, já que a lei não pode retroagir.

E há a questão das testemunhas.  Glória Perez passou a receber ligações anônimas dizendo que procurasse informações sobre a morte de sua filha em um posto de combustíveis perto do estúdio onde ela tinha feito as últimas gravações.  Guilherme e Paula tinham interceptado Daniella ali, na saída do posto, ela foi agredida e colocada dentro de um dos carros.  Os donos do posto e o gerente não quiserem contribuir e os frentistas estavam muito assustados para falar.  O difícil de digerir foi a recusa e a demissão dos rapazes, o fato de terem mandado o cheque usado por Daniella para pagar o combustível para outra filial, enfim, não houve colaboração.  Glória Perez, no entanto, conseguiu o endereço de um dos frentistas, um rapaz de 19 anos e teve que insistir muito para ser recebida, para que a mãe do moço, muito assustada, permitisse que ele falasse. Se mataram a filha de uma mulher famosa, o que não fariam com seu filho? As fotos do corpo dilacerado de Daniella foram utilizadas para demovê-la.  

Outra informação conduziu ao homem que tinha lavado o carro ensanguentado de Guilherme de Pádua.  Este senhor, negro e pobre, evangélico (assembleiano) e profundamente religioso, sequer via novela, mas ao ver a foto de Pádua no jornal, se desesperou.  Aqui, foi fundamental a intercessão da deputada Benedita da Silva, que acionou o pastor Manoel Ferreira, o líder do maior ramo das Assembleias de Deus no Brasil, o de Madureira.  Para convencer o lavador de carros, tiveram que usar do arsenal discursivo religioso mesmo, porque ele acreditava que poderia ser a próxima vítima de gente poderosa.  O que ficamos sabendo é que Daniella Perez tinha começado a ser apunhalada no carro.  Com o depoimento do porteiro do prédio de Guilherme de Pádua, dizendo que Paula teria saído com o marido carregando lençóis e travesseiro, começa a ser desmontado o álibi de que ela teria passado horas e horas no Barra Shopping, quando, na verdade, estava escondida no carro esperando pela chance de cometer o crime.  Viram que escrevi um monte sobe o capítulo três?  Sim, ele talvez seja o mais importante, ainda que muito comovente.

O capítulo quatro é o mais complicado, irregular até.  Ele se dedica tanto a falar da personalidade dos assassinos usando, sempre que possível, as suas próprias palavras, quanto a discutir as motivações do crime e tocar no espinhoso tema do ritual macabro.  Aqui, acredito que acertaram ao mostrar a personalidade de Guilherme e Paula, especialmente ele, porque ele sempre falou, se expôs, escreveu sobre o tema, tornou-se uma celebridade dentro da cadeia.  Ele chegou até a dizer que estar na prisão, uma das piores do Rio, era uma experiência interessante.  Agora, para falar de Paula tiveram que recorrer a testemunhos de ex-noivo, pessoa que ia visitar outra presa e ouviu coisas.  Aí, complica um tanto.  E o ritual macabro apareceu, poderia nem ser referenciado, aliás, porque não conduziu a nada que enriquecesse a narrativa.  De importante fala-se que a arma do crime foi um punhal, que desapareceu, e não uma tesoura recorrendo-se à perícia.  O maior esforço aqui foi tentar desvencilhar a suposta crença de Paula e Guilherme de quaisquer religiões de matriz africana. 

Para falar da personalidade de Guilherme e Paula é preciso mergulhar no passado dele, seu começo como ator, que ele negou ter participado de um espetáculo erótico chamado de Leopardos e como Paula, com então 18 anos, foi proibida de entrar na Galeria Alaska por seus ataques de ciúme.  Se houve machismo na abordagem do crime na época e até hoje, nos anos 1990, houve muita homofobia, também.  Para degradar ainda mais Guilherme de Pádua era utilizado o fato dele ser um "pervertido sexual".  Para escapar dessa armadilha, o documentário investiu em duas linhas, a de que ele era capaz de fazer tudo, inclusive transar com quem quer que fosse, para subir na carreira, e que Pádua se ofendia mais por ser chamado de gay do que de assassino, sendo que neste ponto, usaram falas dele mesmo.  No episódio quatro é mostrado, também, a forma como o túmulo de Daniella foi seguidas vezes profanado, frases desconexas eram pichadas, a ponto de seus restos mortais estarem em um cofre e, não, no jazigo bonito que a família mandou construir.

O último capítulo foca no julgamento e o que veio depois. Paula e Guilherme já tinham se separado, quando ela rompe o que parecia ser um acordo, ele a coloca na cena do crime, que ela nega até hoje ter cometido. Julgamento é teatro e teremos dois, o de Guilherme, com um defensor bem midiático e que tentou desqualificar as testemunhas, os frentistas em especial, inclusive desqualificando a gagueira de um deles; o de Paula, muito caro, afinal, ela era de uma boa família e dinheiro nunca foi um problema.  Raul Gazolla, que participara pouco dos capítulos 3 e 4, volta a aparecer bastante.  Ele era o viúvo, fala de seus sentimentos, que não conseguiu assistir aos julgamentos.  O de Paula, ele ainda tentou, mas acabou saindo.  Ambos foram condenados ao máximo possível para que, pela legislação da época, não tivessem direito automático a um novo julgamento.  Pegaram 19 anos e meses e cumpriram o mínimo da pena necessário por bom comportamento.  Guilherme, ao ser solto, virou pastor.  Paula mudou de nome, casou-se de novo, teve outros filhos, mas foi fazer Direito.  E, aqui, algo fala sobre a personalidade dela.  Ela vai cursar Direito na mesma faculdade onde Daniella e o irmão estudaram.  Ela vai fazer uma disciplina dada pelo promotor do caso que ficava em outra unidade e em turno que não era o seu.  Não quero entrar em questões de psicopatia e coisas do gênero, mas é um comportamento tão esquisito quanto o exibicionismo de Pádua.

Em suas falas neste e em outros episódios, Glória Perez clama por leis melhores, ela não prega o "bandido bom é bandido morto" ou coisas do gênero, ela diz acreditar em mudança de vida e tudo mais. Isso é importante, mas ela destaca que nunca viu arrependimento da parte de Pádua e da ex-esposa.  Como pontuei, ela é meio uma incógnita, agora, ele é um livro aberto.  Mesmo agora, e não vou colocar o link, ele veio à público para dizer que não ia comentar os documentários, sua fala, na verdade, já coloca uma série de pontos a respeito do que ele diz pensar e sentir.  Enfim, o nosso sistema de justiça precisa ser aperfeiçoado, não para que ele amplie as punições por encarceramento de forma homogênea, mas para que penas mais duras sejam aplicadas aos crimes graves e outras opções sejam impostas aos que cometeram crimes de menor agressividade.  Mas eu não sou jurista, nem entendida do assunto eu sou.

O capítulo cinco termina com Glória e Gazolla vendo um álbum de fotos de Daniella falando do que ela foi e do que poderia ter sido.  De como ela se casou com Gazolla aos 19 anos mesmo sem o consentimento da mãe, que achava que ele era muito mais velho que Daniella e que eles poderiam esperar, mas para acalmar seu coração e o dos avós que não aceitariam que ela fosse morar junto somente.  É uma sequência tocante e que aponta para os objetivos da série que não é somente rever o crime de forma fria, mas chocar, fazer refletir e emocionar mesmo.  Comigo conseguiu. E há um trecho de entrevista com Daniella que é apesentado, também.  Mostrá-la viva, cheia de alegria é um contraste perfeito com suas fotos morta.  É uma forma indiscutível de mostrar a brutalidade. 

Como apontei lá em cima, os episódios 1 e 3 foram os mais impactantes para mim.  O 4 foi o mais desconexo e problemático.  E o "pacto" do título não ficou lá muito bem explicado, exatamente, porque era algo que deveria ser aprofundado no episódio 4, que pisa o tempo inteiro é ovos por conta da suposta conexão ritualística-religiosa do crime. Os episódios 2 e 5 foram muito bons, mais frios que o 1 e o 3, mas muito importantes.  Há inúmeras participações de gente de várias áreas, próximos de Daniella, ou não.  A maioria absoluta são pertinentes, só não vi função em Roberto Carlos ser chamado para dizer que ama as novelas de Glória Perez, porque, bem, não colaborou em nada para os episódios.  Vi gente reclamando de Sônia Abrão e ninguém falando dele.  E, gente, por favor, De Corpo e Alma nunca será reexibido, não tem como, seria muito dolorido para um número enorme de pessoas.  É uma novela que, graças ao Sr. Guilherme de Pádua, se tornou maldita.  

2 pessoas comentaram:

Em termos jurídicos é complicado, por que a lei em qualquer estado moderno segue o princípio da conformidade, ou seja, ela precisa se aplicar, se não a todos, ao maior número possível de indivíduos. E esse princípio se estende aos benefícios que figuras deploráveis como Guilherme de Pádua, Suzane e Elize se tornaram aptos a conseguir. Não existe prisão perpétua no Brasil e a intenção do sistema carcerrário brasileiro é ressocializar o detento, e se o detento faz jus, não se pode negar o benefício, é uma só lei para todos.

E é o correto. A série não vende outra ideia, nem meu texto, aliás. O que se espera é que as penas sejam proporcionais aos crimes cometidos e, neste aspecto, o sistema não parece ser muito coerente. Temos gente, normalmente, preta e pobre, presa sem julgamento por delitos ínfimos, e gente mais importante recebendo penas bem leves, ou nenhuma. Que a socialização é o objetivo, sem dúvida, mas cabe reformar as leis e adequá-las aos crimes e aos novos tempos.

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