terça-feira, 15 de novembro de 2022

"(...) a 4 chaves dentro do quarto do casal": Janja nem assumiu como Primeira-Dama e já começa a incomodar

Surgiu nesses últimos dias, uma polêmica sobre o papel que Janja, esposa do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva terá em seu governo.  Na  verdade, poderia ser sobre qual o papel de uma primeira-dama, este acessório que parece ser fundamental para a existência de qualquer chefe de governo, mas é sobre ela mesmo.  A esposa do novo presidente vai se tornar alvo de toda a sorte de ataques, seja porque é a prática atacar as mulheres para atingir os homens aos quais estão ligadas, seja porque a lua de mel contra o fascismo foi curta e Lula continua não sendo bem-vindo nos círculos frequentados pela burguesia brasileira e aqueles que mesmo não sendo, acreditam que são parte dela.  Mas comecemos por ela, Rosângela da Silva nasceu em 1966 e é militante do PT desde os 17 anos.  Socióloga, está aposentada, mas trabalhou no setor público e privado.  Janja conheceu Lula pouco antes de sua prisão política, que inviabilizou sua candidatura à presidência em 2018, e casou-se com ele depois de sua libertação.  

A futura primeira-dama foi ativa na campanha e diz que será ativa no governo, na excelente entrevista dada ao Fantástico, ela disse que suas duas fontes de inspiração são Evita Perón e Michelle Obama.   Deixou claríssimo o seu desejo de ser atuante no governo.  Se será, não sei.  O fato é que, ao se colocar no teatro político, a primeira dama, que não é cargo eletivo, vejam, bem, poderá se tornar alvo de críticas que, via de regra, respingarão sobre o marido.  Mas para atacá-la, utilizarão um arsenal de representações machistas e até misóginas disponíveis no nosso imaginário social, como de praxe.

Seguindo essa linha, antes mesmo da posse, Eliane Catanhêde, a jornalista do partido de massas cheirosas e que que se deslumbrou com o inglês de Bolsonaro, quando na verdade era do intérprete, decidiu atacar o suposto protagonismo de Janja.  Entre outras coisas, disse“Como a Janja, [Ruth] tinha o brilho próprio. Era professora universitária. Uma mulher super respeitada na área dela e cuidado da comunidade solidária, mas ela não tinha protagonismo, ela não tinha voz nas decisões políticas (...) Se tinha, era a 4 chaves dentro do quarto do casal. Ou seja, já incomoda, sim, porque ela [Janja] vai começar a participar de reunião, já vai dar palpite e daqui a pouco, ela vai dizer ‘esse aqui vai ser ministro, esse aqui não pode’. Isso dá confusão. Se é assim na transição, imagina quando virar primeira-dama”.  Caranhêde reduziu a esposa de um presidente a um artigo de cama e mesa.  Ela poderia ter feito a mesma crítica sem cair no machismo, bastaria destacar que primeira-dama não é cargo e que lhe parece errado que a esposa do presidente tenha ingerência em assuntos públicos.  No entanto, Catanhêde foi particularmente venenosa e não pensem que, com tanta experiência nesse meio, ela não sabe disso.

Falando em Dona Ruth, antropóloga com carreira própria e feminista, dentro dos parâmetros de sua classe social e geração, não foi figura apagada no governo do marido, mesmo rejeitando o rótulo de primeira-dama.  É público e sabido que ela tinha participação ativa na criação dos programas sociais do governo FHC, alguns herdados e aperfeiçoados pelo PT, e que não era simplesmente uma rainha do lar.  Programas sociais são, sim, políticos, porque são escolhas de governo e podem se tornar programas de Estado.  Claro, a personalidade de Ruth Cardoso talvez não lhe permitisse fazer o que Janja  vem fazendo, mas FHC também não é Lula, são contextos e personagens diferentes, mas ela nunca foi mulher de falar somente no quarto do casal e depois de passar a chave.  Há vídeos e fotos para provar.  Por isso mesmo, Catanhêde, que nem ficou corada ao expressar suas opiniões machistas para rebaixar Janja (*e atingir seu marido. Afinal, como ele a deixa atrapalhar seu governo que nem começou?*), teve que ouvir de um colega jornalista homem que "lugar  de mulher é onde ela quiser". 

Se pensarmos em uma primeira-dama doméstica, aos moldes do que Catanhêde parece defender, poderíamos lembrar da própria segunda esposa de Lula, Marisa Letícia, que foi babá, operária, costurou a primeira bandeira do PT, foi uma primeira-dama reservada e que cuidava do marido, mas com uma atuação pública muito discreta, especialmente, se posta em contraste com a sua antecessora.  Vou repetir de novo, ela não foi eleita, e não foi a primeira primeira-dama do Brasil a não querer (ou poder) ter papel de destaque no governo do marido. E o que diziam dela?  Bem, reclamavam que ela não participava muito dos eventos e viagens, que não assumia a frente de projetos sociais (*coisa de mulher de presidente, lembrem bem*), alguns apontavam que não fazia nada, como se ela tivesse efetivamente algo a fazer no governo.  Como primeira-dama é adereço, precisa ser exibida como uma forma de mostrar que o marido tem um lar modelo, sua timidez ou falta de interesse era objeto de crítica.  

Até hoje dizem que quando ela não ia às viagens, Lula levava as amantes.  Provas e as tais amantes nunca foram mostradas.  Enquanto isso, FHC manteve uma amante secreta, sustentada com possíveis remessas de dinheiro púbico para o exterior, e a imprensa nunca disse nada.  Só depois da morte de Dona Ruth o caso veio à tona e, ainda assim, o zum-zum-zum durou pouco.  Voltando para Dona Marisa, na falta de escândalos, transformaram em ofensa o fato dela plantar canteiros em forma de estrela no Palácio do Alvorada.  Era partidarização e/ou ofensa ao projeto original, que é tombado.  Tentem comparar com tudo o que Jair e família fizeram durante quatro anos e isso fica parecendo o que foi de fato, perseguição.  

Estabelecido isso, eu detesto o primeiro-damismo importado dos Estados Unidos, onde esse papel da esposa do presidente, ou quem esteja em seu lugar (*filha, irmã, cunhada*), é visto como fundamental para o exercício da gestão do sujeito que efetivamente foi eleito.  Apesar de não ser um cargo eletivo, a primeira-dama é objeto de curiosidade e crítica.  Ela deve estar sempre sorridente ao lado do marido.  Ela deve cuidar das recepções e manter-se elegante.  Ela deve se dedicar a causas sociais sem parecer interferir no que acontece na Ala Oeste (West Wing) da Casa Branca, que é onde as coisas sérias são decididas.  Se ela tiver uma carreira, deve esquecê-la, porque seu trabalho é promover a imagem do marido.  Eleanor Roosevelt, Hillary Clinton e Michelle Obama foram criticadas por fazerem demais, por não aceitarem ficar na caixinha que lhes fora destinada. Michelle Obama fora o machismo, enfrentou ataques racistas, também, o tempo inteiro, mesmo depois de deixar a Casa Branca.  Melania Trump foi criticada por fazer de menos, delegando funções para a enteada, Ivanka Trump, quando ela era a primeira-dama.  

O fato é que primeira-dama não é cargo eletivo, essas mulheres não deveriam ser obrigadas a assumirem funções simplesmente por serem mulheres de alguém, pois não se exige o mesmo dos consortes das poucas mulheres que ocupam cargos de governo.  Aliás, é bom que eles nem apareçam, porque é algo que poderia enfraquecer a imagem pública de suas consortes.  Lembro inclusive da polêmica em torno da foto das primeiras-damas da OTAN de 2017 com a presença, pela primeira vez, de um homem, o marido do primeiro-ministro de Luxemburgo.  Pela primeira vez, uma foto com esposas de homens de estado incomodou muito, porque expôs que o primeiro-damismo poderia sair do esperado e promover valores fora do modelo tradicional de família.

Agora, e se a primeira-dama quer sair da caixinha esperada, ou seu marido quer que ela saia?  Na França, Macron foi duramente rechaçado ao tentar promover o primeiro-damismo ao estilo norte-americano no país.  No Brasil, há uma tradição, desde Getúlio Vargas e a criação da LBA (Legião Brasileira de Assistência), de que as esposas de presidente se dediquem às causas sociais, leia-se, à promoção do bem estar das crianças, das mães e sem entrar em querelas sobre os papéis que as mulheres devem exercer na sociedade.  A função da mulher, assim, no singular e de forma universal, é cuidar.  Marcela Temer, que era discreta e foi cantada, sem que lhe deixassem falar, como "bela, recatada e do lar", foi obrigada a assumir esse tipo de função para dar uma face mais humana a um governo golpista e que confiscava direitos sociais.  Não deu certo e foi o único momento em que a critiquei, porque foi somente no lançamento da tal campanha que a deixaram falar, ou que ele emprestou sua voz e corpo para uma personagem criada por outros.  Nunca saberemos.

E usei o "obrigada", porque foi o que pareceu à época.  Mesmo silenciosa e discreta, até matéria misógina de jornal estrangeiro comparando Marcela à Maria Antonieta foi produzida.  Como o nome de "Maria Antonieta" é maldito quando a questão são os gastos públicos, mesmo que qualquer historiador que mereça o nome sabe que a rainha gastava dentro dos padrões da corte francesa de sua época e atendendo às exigências de seu  status como soberana, prevalece o senso comum e a difamação.  O Daily Mail, partindo dos padrões ingleses aplicados às camadas médias, talvez, destacava que Marcela tinha duas empregadas domésticas (two maids).  Para as classes altas brasileiras isso é nada, mas, repito, através da primeira-dama se busca atingir seu marido.  Eu abomino Temer, mas estender a coisa para a sua esposa é exercício de machismo mesmo.  Simples assim.

Se Marcela Temer era discreta e doméstica, e linkei os dois textos que escrevi sobre ela ao longo do texto, Michelle Bolsonaro sempre me pareceu ter uma agenda política própria não necessariamente conectada a do marido.  E ela nunca foi usada por ele, ela é sua sócia, ela lhe empresta certa leveza e humanidade. Já em sua festa de despedida na igreja que frequentava na Barra da Tijuca, em 2018, havia uma homenagem interessante e eu cito o Jornal Extra: "No local também chamou atenção uma parede com fotos de mulheres emblemáticas na política como Princesa Isabel, a mãe da Lei Áurea, Michelle Obama, ex-primeira-dama dos EUA e Evita Perón, que também foi primeira-dama, mas na Argentina. Encabeçando a lista, no alto, aparece uma foto de Michelle Bolsonaro, acenando para o povo, quando esteve em Brasília visitando Marcela Temer e o Palácio do Alvorada."  Vejam que as referências, salvo pela Princesa Isabel, são as mesmas de Janja.  

Se Michelle não participou mais do governo, muito provavelmente foi porque a extrema-direita é muito misógina e seus machos preferem dar espaço para seus coleguinhas, estar com eles, do que conceder oportunidades para uma mulher, mesmo quando ela acredita fazer parte do grupo.  Por outro lado, seu nome esteve ligado a vários escândalos dos cheques das rachadinhas ao favorecimento de pessoas de suas relações e a defesa de evangélicos membros do governo acusados de corrupção.  Todos esses casos nunca foram devidamente explorados pela imprensa, que sempre se distraía com outras coisas, e os sigilos impostos por seu marido, inclusive a quem visita a primeira-dama em sua residência oficial tiveram o papel de jogar as suspeitas em relação ao comportamento da primeira-dama para o fundo da nossa memória.

Só que a campanha obrigou Michelle a aparecer e ela se mostrou muito competente em dialogar com um grupo que rejeita o seu marido, as mulheres.  Como a atual primeira-dama domina muito bem o discurso evangélico e seus jargões mais fundamentalistas, ela se engajou em conquistar o voto das religiosas.  E ela tinha ainda a seu favor o carisma e o fato de estar dentro dos padrões de beleza vigentes.  Enfim, sobre Michelle escrevi um texto só ao longo desses quatro anos, se bem me lembro, na verdade, meio texto, e tratei do seu papel como difusora dos discursos de pânico moral com direito à demonização das religiões afro-brasileiras.  O fato é que Michelle foi tão efetiva que bancou em Brasília a candidatura de Damares, mesmo o marido tendo se comprometido com Arruda, ex-governador do DF, de que sua candidata era a esposa dele.  Flávia Arruda foi massacrada nas urnas.  Michelle se mostrou um cabo eleitoral competente de Damares que, sejamos justas, tem luz própria também e não depende de nenhuma figura masculina para se promover.

As críticas feitas para Michelle durante a campanha eram mais ao conteúdo de suas falas do que ao fato dela ser parte ativa na campanha.  Sua participação  foi vista como benéfica por aliados e perigosa pelos adversários e eu tenho certeza de que ela conseguiu muitos votos para Bolsonaro.  Se reeleito fosse, será que Michelle voltaria para o "seu devido lugar"?  Eu duvido, mas não estou aqui para fazer trabalho de futurologia, porque esta não é a função de uma historiadora.  E acredito que Michelle tentará, caso tenha a oportunidade, uma carreira política própria.  Ela se elegeria para deputada federal sem grande dificuldade. Agora, o que é inaceitável é que Michelle seja tratada como vítima, ela ainda é, pelo menos por enquanto, sócia do marido.  E sei que estou me repetindo aqui, porque há quem vitimize Michelle e outros cúmplices do governo atual.  No caso dela, se algumas críticas são machistas, esse tipo de condescendência também é. 

Como passei o dia inteiro ontem rascunhando esse texto, apareceram (*supostas*) novidades sobre Janja na rede.  Ela disse na entrevista do Fantástico que conheceu Lula quatro meses antes da sua prisão.  Um ex-amigo do presidente, sim, não é mais ligado a ele, e que foi delator da Lava-Jato (!!!) deu entrevista (*procurem o link, não vou colocar aqui*), dizendo que Janja e Lula eram amantes bem antes de Marisa Letícia falecer.  Todo mundo sabia e ninguém sabia... Sei... Sei... Imagine o Lula tendo sua vida revirada pela Lava-Jato e escrutinada pela imprensa durante meses e meses e ninguém saber de Janja.  Difícil, não é mesmo?  Parece escândalo sob encomenda.  Vale tanto quanto a entrevista dada por um ex-aliado de Bolsonaro e que acusa o presidente de bater em Michelle.  Nenhuma prova, só a palavra mesmo.  Busquem o link que vocês encontram, eu não vou colocar, também.  O que quero enfatizar aqui é que ex pode ser problema em qualquer tipo de relacionamento e não necessariamente por dizerem verdades.  

À despeito disso, os minions estavam felizes da vida no Twitter, acusavam Janja de ser "amante de porta de cadeia" e, claro, colocavam a moral da futura primeira-dama em questão.  Aqui, cabe a contradição da dupla moral.  Uma mulher ser amante é algo que a deprecia, um homem ter uma amante, o eleva, afinal, ele pode e é uma demonstração de sua virilidade.  Como escrevi antes, ataca-se a mulher, neste caso, um ataque machista mesmo, para se chegar ao homem.  Se ela foi amante dele, não teria sido amante de outros?  Uma primeira-dama precisa ter uma imagem inatacável, porque a esposa é receptáculo da honra de um homem.  A graça, claro, é que temos no poder um presidente defensor da família tradicional que está no terceiro casamento, com os dois primeiros terminando em confusão e divórcio, e há ainda aquela fala assombrosa de que ele usava imóvel funcional para comer gente.  Sim é confuso, mas quem disse que no Bolsonaristão a gente precisa ter coerência e racionalidade?

Concluindo, há uma tradição em atacar primeiras-damas no Brasil.  Nair de Teffé (1886-1981) talvez tenha sido a primeira.  Jovem, muito bem educada, bonita e moderna (*usava calças para cavalgar, foi a primeira cartunista do Brasil*), ela era a segunda esposa do presidente Hermes da Fonseca, um homem muito mais velho que ela.  Ao levar a música popular brasileira, o Corta-Jaca composição de outra mulher transgressora, Chiquinha Gonzaga, para dentro do Palácio do Catete, antiga residência dos presidentes quando o Rio era capital, foi duramente criticada por Rui Barbosa.  Ele desprezava Teffé?  Não creio, mas perdera as eleições para Hermes da Fonseca e decidiu se vingar usando o incidente.  “A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de música de Wagner, e não se quer que a consciência deste país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!”  

Imagine se Janja colocar funk na posse?  O efeito poderá ser semelhante.  Enfim, é isso, como pontuei no início deste texto desorganizado, ataca-se a esposa para atingir o marido, mas o ataque, normalmente, é machista, quando não misógino, porque o alvo é uma mulher e o agressor nunca vai querer perder a viagem.  E se Janja quer ter atuação política, ela vai ter que lidar com isso durante todo o governo do marido.  Não há escapatória.

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