quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Terminando o Mês da Consciência Negra comentando o que mais me irrita em Força de um Desejo até o Momento

Queria ter escrito este texto para o Dia da Consciência Negra, acabei colocando a resenha de Wakanda Forever na frente, mas estamos no último dia de novembro, então, é agora, ou nunca.  Eu fiz um primeiro post sobre a primeira semana de Força de um Desejo, mas acompanhando os capítulos, eu sinto vontade de comentar outras coisas, mesmo que quase ninguém vá ler.  É do jogo.  Poderia falar dos brancos da trama, do capítulo #15, a morte de Helena, personagem de Sônia Braga, mas quero pontuar algo que me parece muito incômodo.  Até o momento, Força de um Desejo apresenta duas novelas correndo paralelas, há a dos brancos e a dos negros, esta segundo, eis o problema, parece um desfile de vilanias e sofrimentos.  Antes que alguém diga que é uma novela de 1999-2000, eu afirmo que havia como fazer melhor e que novelas anteriores já tinham oferecido uma visão mais ajustada da escravidão e dos escravizados.

Escravidão é violência, não importa se sancionada por uma determinada sociedade, ou cultura, ela se baseia na redução de seres humanos a objetos.  Agora, a forma como a escravidão é praticada varia no tempo e no espaço, há nuances, há hierarquias entre os escravizados e, claro, nas Américas, escravidão teve cor.  Muito bem, Força de um Desejo tem um numeroso elenco negro, há inclusive algo que normalmente fica ausente, a família de escravizados, mas é uma história de sofrimentos que não leva em consideração estratégias de resistência, só as humilhações, torturas, subordinação e, claro, revisita uma personagem de Escrava Isaura que fez um enorme sucesso na época, a vilã Rosa  (Léa Garcia).  E como eu sei?  Eu reli as entrevistas de Gilberto Braga que estão no livro Autores - Histórias da Teledramaturgia e em A Seguir Cenas do Próximo Capítulo.

Rosa foi a vilã detestável de Escrava Isaura, invejosa, ela atormenta a virginal mocinha durante toda a trama e morre no final da novela ao tomar o veneno que preparara para a heroína.  Rosa usava seu corpo para conseguir vantagens, ela seduzia seu senhor e o feitor para conseguir se livrar dos castigos e porque (*Horror!  Horror!*) ela parecia gostar de sexo pelo sexo, sem se importar muito com laços afetivos mais profundos.  Trata-se de uma estratégia de sobrevivência.   Rosa  tinha inveja de Isaura, a escrava branca, bem educada e mimada pela sinhá.  Quando Isaura finalmente se liberta, se torna senhora de todos os escravos do vilão e os liberta, Rosa não aceita essa benesse, ela não pode suportar, sua inveja e rancor a sufocam, e decide matar a mocinha.  

Gilberto Braga recriou Rosa em Luzia (Isabel Fillardis).  O padrão é o mesmo, só que Luzia parece ser incapaz de sentir empatia por qualquer um. Rosa mesmo marcada pelo maniqueísmo, ainda tinha algumas nuances.  Luzia maltrata todos os outros escravizados, mesmo Zelito (Nill Marcondes), que parece ser seu amante preferencial, é usado por ela, e sua "Isaura" é Zulmira (Ana Carbatti), que era mucama da senhora e é a única negra da fazenda que sabe ler.  Para atingir Zulmira, ela faz qualquer coisa.  Não está muito claro a origem da rixa, afinal, Luzia é bem mais jovem que sua vítima, mas a jovem parece ser amante do feitor menos para fugir de maus-tratos do que para manobrá-lo contra sua vítima e por gostar de sexo mesmo.  Luzia é pintada como uma mulher com grande desejo sexual, o que é apresentado na trama como uma transgressão, algo que rebaixa uma mulher se não estiver atrelado ao amoooooor.  

Uma das situações mais recorrentes nesse jogo é colocar Luzia atiçando Clemente (Chico Diaz) contra Zulmira, lhe dá ideias de como conseguir obrigar a outra mulher a se submeter e deixar-se violentar por ele.  Realmente não me lembro se Rosa, a original, dava esse tipo de ideias para Leôncio, mas uma das questões centrais da novela dos escravos é a crueldade de Luzia contra os seus, sua falta de solidariedade, e nem vamos falar em sororidade.  Colocar uma mulher contra a outra é algo recorrente nas telenovelas. Em uma das duas entrevistas com Gilberto Braga, ele fala de como esse tipo de coisa é atrativa para a audiência.  Nesta semana, finalmente, o feitor conseguiu o que quis, Zulmira aceitou ser estuprada, porque foi o que foi, para que seus filhos não fossem vendidos.  E a coisa se desdobrou em A Escolha de Sofia.  Como Zulmira não se entregou por prazer, como ela resistiu, o feitor determinou que ela deveria escolher qual filho seria vendido.  Nada disso faz muito sentido.

Como afirmei lá em cima, temos duas novelas, a dos senhores, que gira em torno de dramas amorosos e vingança, e a dos escravizados, que é só sofrimento.  Temos os bons senhores - Inácio (Fábio Assunção), Abelardo (Selton Mello) e o Barão Sobral (Reginaldo Faria), pai dos moços - pintados como liberais, o que no Brasil da época (*1868?  1869?  1870?*) não queria dizer abolicionistas.  Só que eles adoram soltar frases como "trato meus escravos como gente" (*Subentende-se que eles não são, que é uma demonstração de boa vontade de quem fala, e não há nenhum contraponto, não existe um grilo falante presente quando alguém solta uma dessas.*), "a escravidão é um mal necessário que logo terminará", "os escravos precisam ser tratados com humanidade", blá-blá-blá.  Os vilões parecem mais sinceros sobre a questão do que os bonzinhos.  E a velha Idalina (Nathalia Timberg), sogra do barão, afirma tranquilamente que os tais liberais nem chegam perto da senzala, que é o feitor que cuida de tudo.  E o feitor é picareta, trabalha para o inimigo, Higino Ventura (Paulo Betti), e é mau, assim como a velha Idalina.  

Seria normal largar tudo na mão do feitor?  Não.  Ainda mais quando ele não é confiável, e o Barão sabe disso.  Seria até razoável largar nas mãos de Idalina a administração da escravaria depois da morte da senhora da casa?  Até seria, mas Inácio sabe que sua avó não é confiável e só seria para os escravos de dentro. Sendo os senhores tão bons, eles não seriam acessíveis para reclamações em relação ao feitor?  Rosália (Chica Xavier), por exemplo, é velha o suficiente para ter sido ama de leite da mãe dos rapazes, ela deveria ter alguma ascendência sobre eles.  Mas não tem.  Então, esta história de feitor mau torturando Zulmira, Cristóvão (Alexandre Moreno) e ameaçando Rosália, uma idosa, repito, com o tronco, é muito absurda.  Em A Escrava Isaura, a mocinha sofria tanto, porque seu senhor a desejava, não o feitor, ele era somente um minion do vilão.  Em Força de um Desejo, é como se o senhor fosse Clemente, isentando Sobral e seus filhos de qualquer responsabilidade nem se fosse por omissão, afinal, eles são os donos daquelas pessoas.

E os escravizados sentem rancor?  Não.  Cristóvão, Zulmira e Rosália sempre estão do lado dos seus senhores, olham para eles com adoração.  Má é só a velha Idalina.  Zulmira até defendeu o Barão quando sua filha, Marta (Élida Muniz), comentou que foi o patrão quem matou a esposa.  A menina, aliás, parece ser a única escravizada com algum senso crítico em relação a sua condição e alguma revolta.  E é isso, a novela é um elogio à submissão e ao sofrimento.  Nesse aspecto, Força de um Desejo não é somente decepcionante, chega a ser revoltante às vezes, e nem meteram ainda a personagem de Cláudia Abreu na história. Eu lembro que não gostava da trama dela, é uma das coisas que ficou na minha memória.  Enfim, será que Ester é que vai mudar a situação dos escravizados?  A salvadora branca que intervém para salvar os negros?  Eu não duvidaria, mas realmente não lembro dessa parte da trama.

Luzia, aqui, está até bem comportadinha, mas há a atitude e o olhar.

E há um outro problema, a escolha do figurino.  Já viram as fotos de escravizados feitas pelo francês Marc Ferrez?  As escravizadas podem até estar usando suas melhores roupas para as fotos, mas elas se vestem com uma variação empobrecida do que suas senhoras vestiam.  Nada de roupas frouxas, sem mangas, decotes profundos, cabelo solto.  Zulmira, escrava de dentro, querida por sua sinhá, teria seu cabelo preso, por ser mulher adulta, casada e certamente teria roupas mais estruturas do que a blusinha fina, com os seios soltos.  É tudo calculado para parecer sensual, assim como são as roupas de Luzia.  Um sensual que visa, também, mostrar o quão pobre e desmazelada era a vestimenta dos escravizados.  É tudo deliberadamente sexualizado, mulheres negras são alvo preferencial da cobiça dos homens e, algumas, como Luzia, gosta disso.   A escravizada que trabalha na casa de Higino Ventura, Diva (Delma Silva) também se veste na mesma linha, mas ela pouco aparece e não sofre assédio sexual.

De novo, repito que não é problema da época em que a novela foi feita, é uma escolha.  Não sei o quanto de Alcides Nogueira há na novela, em uma das entrevistas, Gilberto Braga diz que o argumento inicial da novela é do colega.  Imagino que a trama dos brancos, porque a dos negros é toda um remake enviesado de Escrava Isaura e Gilberto Braga afirma que reviu este seu sucesso e a achou muito fraca.  Se assim foi, porque investir em um remake disfarçado e distorcido?  Talvez, porque o autor se sentiu rebaixado em ser colocado às 18h, ele mesmo fala isso em uma das entrevistas, ou então, trata-se de uma opção pelo sadismo e por reforçar a representação recorrente dos escravizados como seres passivos e que aceitavam a sua condição. "Viu?  Eles mereceram.  Nunca fizeram nada para mudar a sua condição." Veja, eles nem são capazes de pedir socorro aos senhores, aos seus donos de verdade, nem quando estão cara a cara com eles.

E, reforço, há a falta de "atenção" dos senhores.  Abelardo, que é tão sensível, e Inácio, não percebem a ausência de Zulmira dentro de casa, afinal, ela é escrava de dentro.  Quando Abelardo a vê em trabalhos que não são os seus, compra a desculpa do feitor de que a mulher pediu para cuidar dos cavalos, por gostar deles.  Já Cristóvão, que parece ser um braço direito de Abelardo, desaparece, passa dias no tronco, e o sinhozinho nem dá por sua falta, assim como Inácio.  É como se eles só fossem notados quando convém e, se eu quiser ser boa com os autores, poderia acreditar que aí reside uma crítica sutil à escravidão, a quanto os senhores de escravos, mesmo os que fingiam ser bons, estavam pouco se importando com "seus" negros.

Mas há o único negro escravizado da cidade, Jesus (Sérgio Menezes).  Ele, diferentemente dos da fazenda, não está integrado a um núcleo negro, não tem família, não tem amigos, ele orbita a mocinha, Ester (Malu Mader), que, mesmo sendo contra a escravidão, não o alforriou.  Poderia ser uma forma de mostrar o quanto a mocinha moderna, é moderna também quando se trata da escravidão, alforriá-lo e remunerá-lo, mas basta ela mesma afirmar que trata Jesus como gente para nos convencer que ela é uma boa pessoa.  Ester nem tem o argumento de que precisa de escravizados nas plantações, porque ela não as tem (ainda).  Obviamente, ele vai se mudar para o Vale do Paraíba, também, é questão de tempo.  O que me intrigou é como Ester levou Jesus como escravizado para Londres e Paris, porque tanto França, quanto Inglaterra, já haviam banido a escravidão em seus territórios e nas suas colônias.  Enfim, se Ester alforriou Jesus em algum momento e eu perdi, mesmo tendo assistido todos os capítulos até agora, por favor, me digam quando foi.

Resumindo, há duas novelas que só se tocam eventualmente.  Os autores se esforçam por isentar os mocinhos de sua responsabilidade para com seus escravizados.  Imagina um senhor de escravos responsável, na medida que precisa manter e expandir seu patrimônio, que não sabe quantos escravizados tem, seus nomes, quem vai ser vendido e não tem relatório de tudo isso. É ridículo. Tudo fica nas mãos do feitor malvado, que se comporta como o Leôncio de Escrava Isaura, só que ele não é  o senhor, e consegue obrigar a mocinha dessa novela de sofrimento a se submeter e deixar-se estuprar.  Eu vou ver a novela até o fim, mas é absurdo perceber que Sinhá Moça, a primeira versão da novela, na qual tanto o senhor, quanto o feitor, eram maus, coloca escravizados menos aterrorizados e maltratados do que em Força de um Desejo.  Nem de quilombo se fala nessa novela.  E, vejam só, me vi obrigada a elogiar Benedito Ruy Barbosa... 

1 pessoas comentaram:

Eu não vi o Escrava Isaura original, apenas o remake da Record e sempre me lembro de uma cena em que Rosa explica pq odiava Isaura, fala de como foi estuprada no final da infância enquanto Isaura era educada como uma senhorinha, evidenciando sempre cada diferença de tratamento das duas que alimentou seu rancor. Lembro que gostava muito da personagem e da atriz e fiquei triste com o final dela, que se não me engano, foi por suicídio, se jogando em um rio. Lendo esse texto, me parece que a personagem foi bastante alterada com relação ao original.

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