segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Comentando Camarões Brilhantes (França/2019): Um Misto de Comédia e Jornada de Superação

Ontem, assisti ao último vídeo do Sociocrônica, um excelente canal sobre cinema, que eu recomendo muito, e eles focaram em filmes gays que saíssem um pouco do padrão, isto é, que não mergulhassem no drama excessivo, ou tivessem final trágico.  Dentre os filmes recomendados, estava Camarões Brilhantes (Les Crevettes Pailletées), que eles descreveram como uma comédia leve que poderia passar na Sessão da Tarde, se o Brasil não fosse tão careta.  Talvez, eu não concorde com a parte Sessão da Tarde, salvo se fosse na virada dos anos 1980 para o 1990 (*explico depois*), mas fui fisgada por uma homenagem à Sailor Moon que apareceu no meio da resenha.  Eu tinha que assistir e Júlia cismou que queria ver, também, não levei à sério, mas ela assistiu mesmo.

Camarões Brilhantes gira em torno de uma equipe gay de pólo aquático que tenta se qualificar para o Gay Games, que aconteceria na Croácia.  Os Camarões Brilhantes não tem nenhuma condição, é preciso deixar isso claro, mas eis que um nadador de elite, Matthias Le Goff (Nicolas Gob), recebe como punição por seu comportamento homofóbico com um jornalista assumir a equipe como treinador por três meses e levá-los aos Gay Games.  

Matthias está em baixa na sua carreira, como mais de 30 anos, ele não conseguia excelentes marcas nos 50 metros, sua prova, fazia tempo  e vê a punição imposta pela Federação como uma pá de cal em sua carreira, afinal, ele não teria tempo suficiente para participar das competições de qualificação do mundial. No começo, a relação com os Camarões Brilhantes é difícil, mas Matthias acaba repensando seu comportamento, ampliando seus horizontes e descobrindo que é melhor perder cercado de amigos, do que vencer sozinho.  

Não há como assistir Camarões Brilhantes sem lembrar de outro filme francês sobre uma equipe precária de outros esporte aquático (*nado sincronizado*), Um Banho de Vida.  Assim como no filme que assisti no cinema, temos uma equipe formada por desajustados e que precisa de muita força de vontade para atingir seu ideal.  Temos os altos e baixos, brigas na equipe, choques de personalidade, a antevisão do fracasso e a superação que não significa, vejam bem, um final feliz adocicado. Em Um Banho de Vida, eram depressivos, desempregados, fracassados aos olhos da sociedade; havia um casal gay, na equipe, mas eles não ocupavam os papéis principais.  Em Camarões Brilhantes temos uma equipe LGBTQIA+, porque, sim, há um conflito ligado à sigla.

Os Camarões Brilhantes são uma equipe gay, mas um de seus membros, Fred (Romain Brau), sai em viagem de férias e retorna cirurgiada e trans.  A mudança de gênero de Fred não incomoda a maioria dos Camarões, mas é inaceitável para Joël (Roland Menou), um militante das antigas que vê pessoas trans como uma ameaça à própria existência da identidade gay.  É como se eles tivessem lutado, apanhado, ido presos para que divas cheias de cirurgias plásticas (*o termo é dele*) pudessem colher os louros.  O que se estabelece nesse embate não é somente a resistência à presença da mulher trans na equipe, mas, também, um conflito geracional.  Aliás, Camarões Brilhantes faz humor, pode ser acusado de estereotipar suas personagens, mas coloca em cena discussões bem sérias e atuais.  

No fim das contas, Joël é voto vencido e como democrata aceita a presença de Fred no time, mais para o final do filme, ele se esculpa com a colega, que o ajuda a conseguir valorizar o fato de, sim, ser um homem mais velho em um meio que valoriza a juventude e beleza.  E não sou eu que estou acusando a comunidade gay de se comportar desse jeito, trata-se de uma discussão feita internamente e recomendo o canal Gay Nerd e Be40tona, que têm vídeos sobre a questão.  O fato é que há espaço para todo mundo e Joël, mesmo com seu caminhão de traumas, pode encontrar alguém que veja mérito nele, há quem prefira um daddy, não é mesmo?

O fato é que cada uma das personagens têm seus problemas, algumas delas, como Joël, Fred e Jean (Alban Lenoir) têm mais espaço que outras.  Jean, que é chefe de cozinha e dono de um restaurante, é fundamental para que Matthias seja aceito pelos Camarões.  Ele acredita não somente no aspecto pedagógico na vida do nadador, quanto deseja que a equipe consiga se qualificar para os Gay Games.  Jean acredita no potencial dos Camarões, quer mostrar para seu pai que homens gays podem jogar pólo-aquático tão bem quanto os hetero e tem pouco tempo de vida.  Sim, Jean vai morrer, mas ele vai dar o seu melhor até o fim.

Ao longo do filme, a relação de confiança entre Matthias e seu time é construída e testada a todo momento e quem serve de mediador é sempre Jean.  Além disso, Matthias queria se livrar da tarefa, mas sua filha adolescente Victoire (Maïa Quesemand), a quem ele negligenciou em favor da carreira, cai de amores pela equipe e acaba servindo como motivador para que o protagonista mostre que se importa e se empenhe em levar os Camarões até a Croácia.

Outro personagem de destaque é Cédric (Michaël Abiteboul), bem sucedido no trabalho, ele tem um marido, Bertrand (Pierre Samuel), e dois filhinhos gêmeos prestes a completar um ano e idade.  O marido de Cédric, que trabalha boa parte do tempo em casa, se sente abandonado e sobrecarregado, para ele, o companheiro o deixa para trás para se divertir com os amigos.  Na relação dos dois, vi uma questão que presenciei entro da minha família, há uma tolerância imensa para o trabalho, o dever, e Cédric mente que recebeu uma promoção e precisa permanecer mais tempo no escritório, mas nenhuma para o esporte e o lazer.  

O pólo-aquático é importante para Cédric e ele mente descaradamente para ir aos Gay Games.  Resta saber como ele vai se explicar com o marido no filme dois, porque há continuação.  Para se ter uma ideia, ele chegou até a simular um ataque homofóbico para conseguir despistar Bertrand.  Na equipe temos ainda Alex (David Baïot), que foi companheiro de Jean e rechaçado por ele durante a doença; Damien (Romain Lancry), que é tímido e um tanto enrolado; Xavier (Geoffrey Couët) que tem um comportamento promíscuo e um tanto destrutivo; e Vincent (Félix Martinez), que acaou de sair do armário e não sabe muito bem o que esperar da comunidade gay, mas é muito empolgado.  Voltando para Cédric, ele é acusado de parecer hetero (*na verdade, ele faz mais o tipo urso*) por Alex, que é a representação do gay efeminado.

Algo que choca Matthias no relacionamento com os Camarões Brilhantes é que entre eles, os jogadores usam vários xingamentos homofóbicos.  "Privilégio das minorias", explica Joël, mas há de se convir que é preciso perceber o quanto há de conflito e relações conturbadas dentro da sigla LGBTQIA+.  A transfobia é colocada desde o primeiro momento, mas quando os Camarões jogam com um time de lésbicas, as Lenhadoras, todos os estereótipos sobre os conflitos entre homens e mulheres explodem.  

Lésbicas que não se depilam (*para horror de Fred*), todas elas são meio caminhoneiras, musculosas e violentas, gays são homens fracotes e por aí vai.  Sobra até para Matthias que é rechaçado pela treinadora das Lenhadoras.  No fim das contas, eu acredito que o objetivo da película é fazer refletir através do riso, mas é um festival de obviedades preconceituosas e reforço dos papéis de gênero.  E, no fim das contas, os Camarões vencem, porque se perdessem, não iriam para a Croácia.  É, também, um teste de caráter para Matthias, porque a derrota poderia liberá-lo mais cedo de seu "castigo" e permitir que ele se preparasse para as seletivas para o mundial.

Uma das sequências que eu gostaria de comentar, porque é fundamental para a reta final do filme, é que os Camarões Brilhantes estão indo no seu ônibus para a Croácia e sofrem um ataque homofóbico.  Há uma briga entre eles e decidem votar a desistência.  Joël, que é a favor da democracia, é voto vencido, mas dá um jeito de assumir o volante do ônibus e trancar todo mundo na parte superior do ônibus.  Para ele, estar no Gay Games era uma vitória, a existência dos próprios jogos fruto de anos de luta dos gays, como jogar tudo fora?  Ele dá a alternativa de visitarem Dachau, o campo de concentração, afinal, estava no caminho e eles não pareciam dar valor ao sofrimento de tantos gays.  

Damien, o motorista, berra que ele não tem licença para dirigir ônibus, ele retruca que tinha, sim, tirou no exército.  E, sim, mais de um dos meus tios tirou carteiras múltiplas quando estavam no serviço militar.  Ao que parece, rola a mesma coisa na França.  Enfim, nem sempre Joël milita certo no filme, mas, desta vez, ele acertou, sim, e a cena é ótima.

E Júlia viu o filme comigo.  Peguei Camarões Brilhantes com legendas em inglês e, mesmo assim, ela quis assistir.  Eu duvidei que fosse ficar até o fim, mas ela ficou.  Eu fazia a tradução das legendas, censurava piadas de cunho sexual e coisas que efetivamente ela não iria entender.  Lá no início, pontuei que Camarões Brilhantes não poderia ir para a Sessão da Tarde e explico os motivos.  

Há muitas bundas de fora, bundas de todos os tipos, porque o elenco é diverso.  Ainda que com câmera desfocada, ou afastada, há uns dois nuns frontais, que não estão em cenas de com conteúdo sexual, que fique claro.  E temos uso de drogas.  Nesta hora, parei o filme e expliquei que drogas nunca são legais, mesmo que as pessoas possam achar que são.  Uma das personagens quase morre e os Camarões Brilhantes perdem uma das partidas por estarem de ressaca.  Clube dos Cinco, um clássico do cinema dos anos 1980, por exemplo, nunca passou na Sessão da Tarde por ter cenas com uso de drogas e sem a devida condenação.  O mesmo ocorre nos Camarões Brilhantes.

Já caminhando para o final, Camarões Brilhantes é um filme muito divertido, solar e tem um ônibus que me fez lembrar de Priscilla, Rainha do Deserto.  Segundo o próprio filme, e as resenhas, ele se inspirou na história de uma equipe real de mesmo nome e um dos co-roteiristas e co-diretor, Maxime Govare, jogou na equipe.  No início do filme, aparecem fotos dos Camarões do filme, já nos créditos finais, as fotos da equipe real.  Em ambas as seleções temos os jogadores vestidos como as sailors, o sucesso de Sailor Moon é algo inquestionável.  No filme dois, há um clipe com os meninos vestidos como as guerreiras da Lua.  Júlia quer ver a continuação, talvez seja uma das próximas resenhas a aparecerem por aqui.

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