Mês passado fiz a resenha do álbum norueguês A Queda do Patriarcado - O Combate ao Machismo Através dos Séculos e, quando estava pesquisando para o meu texto, descobri que a Companhia das Letras tinha publicado em 2019 outro trabalho de Marta Breen (roteiristas) e Jenny Jordahl (artista com um traço muito dinâmico e divertido), Mulheres na Luta - 150 Anos de Liberdade, Igualdade e Sororidade. Olhando as informações e imagens de Mulheres na Luta, desconfiei que este trabalho anterior das autoras era melhor que o mais recente e, sim, eu estava certa. Se na minha resenha de A Queda do Patriarcado, fiz várias críticas, algumas bem sérias, agora, com Mulheres em Luta, acho que terei quase que somente elogios. É realmente muito, muito bom.
Talvez, as chaves para que Mulheres em Luta seja tão competente sejam duas, em primeiro lugar, o recorte temporal; em segundo lugar, a diversidade de personagens abordadas. As autoras delimitaram o século XIX como ponto de partida e não buscam abordar uma temporalidade imensa de forma reducionista, além disso, estabelecem o Ocidente como o seu espaço principal. A ideia é explicar as lutas feministas em cento e cinquenta anos de caminhada e as autoras cumprem.
Logo no início, as autoras estabelecem como fio condutor o que elas chamam de "As Três Principais Lutas do Movimento Feminista": "O Direito à Educação, de Exercer uma Profissão e Ganhar o Próprio Dinheiro", "O Direito de Votar em Eleições Políticas" e "O Direito de Decidir sobre o Próprio Corpo". A partir daí, elas apresentam várias personagens, lutas femininas coletivas, as três ondas do feminismo e, o que faltou no primeiro livro, que direitos adquiridos podem, sim, ser perdidos. É importante ressaltar que a obra é muito didática e acessível. Aliás, vou testar com a Júlia quando ela voltar das férias, se ela quiser, claro, ela pediu para ler A Queda do Patriarcado.
O outro ponto interessante do volume é que elas não se apegaram mulheres brancas, tivemos Harriet Tubman, Sojourner Truth, Táhirih e Malala recebendo atenção ao longo das páginas. Há uma preocupação em apontar que a luta pelo voto era global, inclusive, colocando a cronologia da obtenção do voto feminino em vários países, começando com a Nova Zelândia, e as placas pelo direito de voto em vários idiomas e levantadas por mulheres diversas. Tubman e Truth estão ligadas à luta contra a escravidão nos Estados Unidos e, posteriormente, à luta pelo direito de voto para todas as mulheres, brancas, ou negras.
Nesta parte do livro, somente uma crítica, elas falam de A Cabana do Pai Tomás e sua autora, Harriet Beecher Stowe, o livro coloca que Lincoln era abolicionista (*OK*) e que libertaria os escravos como razão da Guerra de Secessão. Lincoln não anunciou a abolição, contra parte do seu partido, ele afirmava que a escravidão era questão estadual e que o que ele não aceitaria é a secessão, a ruptura. A escravidão foi a desculpa do Sul e as autoras compram isso.
Enfim, Malala, acredito que vocês conheçam, mas e Táhirih? Eu conheci a iraniana Táhirih (1814/1817-1852) lendo Mulheres em Luta e ela é apontada como a primeira mártir na luta pelo feminismo, eu diria, pelos direitos das mulheres. Ela era filha de um importante especialista em lei islâmica e foi educada em casa (*as autoras dizem que o pai lhe negou educação, isso não procede*) como era mais comum para uma mulher, tornou-se escritora e especialista na religião. Teve um casamento infeliz arrumado pela família, porque ela queria continuar buscando sua elevação espiritual e, nesse caminho, ela se converteu ao Babismo (*antecessor da Fé Baha'i*) e isso virou um problema, porque ela rompeu com o Islã e passou a pregar sua nova fé, ou seja, não era somente uma questão de direitos das mulheres, a coisa vai bem além.
Seu marido pediu o divórcio e levou seus filhos, sua família se sentiu envergonhada, ela foi presa várias vezes e se tornou um grande problema quando em uma assembleia da sua própria nova fé, retirou o véu diante de todos. Afinal, se todos ali eram irmãos e irmãs não haveria problema em retirar seu véu. Acabou presa e, anos mais tare, condenada à morte. É uma figura bem interessante. Agora, as autoras representam as iranianas com o rosto coberto, as mulheres no Irã normalmente não cobrem os rostos, salvo em alguns grupos étnicos muito específicos.
Uma parte muito interessante do livro é quando elas representam a luta pelo voto focando nos Estados Unidos e na Inglaterra. Millicent Fawcett e Emmeline Pankhurst, líderes sufragistas, recebem atenção especial e são rotuladas no livro, uma como pacifista, a outra, como adepta da ação direta. Durante um bom tempo, elas estiveram juntas, mas, enfim, as autoras mostram as formas e ação do grupo de Emmeline Pankhurst, suas filhas (Christabel, Sylvia e Adela), e como a União Social e Política das Mulheres (Women's Social and Political Union/WSPU) organizava suas ações. Elas entravam em confronto com a polícia, elas colocavam bombas (*não, bombardeavam, como está na tradução*), elas entravam em confronto com a polícia etc. E algumas delas lutavam Jiu-jítsu. Há um quadro que sugere isso, mas as autoras não explicam e seria importante. Aliás, recomendo o filme Sufragistas, minha resenha está aqui.
Outro problema dessa parte, dois, na verdade. Elas não falam das americanas contemporâneas, seria enriquecedor, e o livro não faz a ponte entre a posição do WSPU e o Socialismo, que é o capítulo seguinte. Pankhurst era uma patriota e suspendeu as ações do seu grupo aderindo ao esforço de guerra, por conta disso, sua filha Sylvia, que era socialista, rompeu com o movimento, porque os socialistas eram pacifistas. O livro coloca essa atitude do WSPU sendo retribuído com o voto feminino no pós-guerra para as mulheres maiores de 30 anos. Não é tão simples assim.
Como o capítulo das socialistas vem quase em seguida, daria para fazer a ponte perfeita. Enfim, uma favorita das autoras é Clara Zetkin, ela aparece no A Queda do Patriarcado, e Rosa Luxemburgo são as protagonistas desse capítulo que começa falando das condições péssimas das mulheres no mercado de trabalho e de como elas vão se organizar a partir a luta sindical socialista. É neste capítulo que se fala do pacifismo de guerra, mas ficou isolado em relação ao capítulo das sufragistas. O curioso é que as autoras não falaram da URSS, que deveria entrar aqui, mesmo que rapidamente, e não tocaram no nome da Alexandra Kollontai, já que trouxeram de volta a Zetkin. Mas o capítulo é muito bom, mesmo com esse problema.
A antepenúltima seção do livro é sobre o direito e decidir sobre o próprio corpo. Temos a biografia a pioneira norte-americana pelo controle de natalidade, Margaret Sanger, e sua importância para o desenvolvimento da pílula anticoncepcional. A seguir, as autoras fazem a discussão sobre o direito de aborto, enfatizando a importância da Roe vs. Wade de 1973 e a guerra em torno o tema nos Estados Unidos, inclusive as violências contra funcionários das clínicas de aborto.
Como as autoras o publicaram sua obra em 2019, não viram o horror que foi a decisão da Suprema Corte dos EUA, no ano passado, tornando a questão do aborto um assunto estadual e sem salvaguarda da constituição. Mas isso combina com algo que está muito claro no volume, direitos podem ser perdidos e, não somente, no Afeganistão. E é triste constatar que isso tem se tornado mais comum do que as pessoas pensam, vide retrocessos nos direitos das mulheres em vários países, mesmo dentro da Europa, como a Polônia.
A Penúltima parte é para falar da luta das pessoas LGBTQIAPN+ pelo direito à existência, ao amor, aos direitos civis. É interessante que as autoras começam com Safo, no período Arcaico, passam pelas perseguições às pessoas que não se ajustavam à heteronormatividade, falando inclusive da perseguições dos nazistas aos gays e da invisibilização (*e estupro corretivo via casamento*) das lésbicas, passando por Stone Wall até nossos dias. A Dinamarca foi o primeiro país a reconhecer a união civil de pessoas do mesmo sexo em 1989. Achei muito interessante, porque as autoras deram alguma visibilidade às mulheres trans nessa seção e valorizaram a luta dos LGBTQIAPN+ como um todo. E isso causa contraste com o vazio que foi A Queda do Patriarcado nesse aspecto.
Antes dessa parte do direito ao amor e à cidadania, temos o reconhecimento da luta coletiva das mulheres nesses 150 anos, dá destaque às (poucas) mulheres que foram chefes de estado, começando com três primeira-ministras no continente asiático: Sirimavo Bandaranaike (Sri Lanka, 1960), Indira Gandhi (Índia, 1966) e Gola Meir (Israel, 1969). Até nossa Dilma aparece, ❤️ como são poucas mesmo até 2019, até hoje, na verdade, cabe em uma página. E, não, rainhas não contam nesse caso, elas não foram eleitas.
E terminamos com Malala e a demonstração de que a luta continua, que direitos tios como naturais não o são, mas resultam da luta de gerações de mulheres de várias classes sociais e em todos os continentes; algumas se identificavam como feministas, outras somente, como se fosse pouco, percebiam a injustiça e se insurgiam contra ela. Lembremos dessas mulheres e honremos o seu legado.
O livro fecha com um posfácio da Prof.ª Bárbara Castro, do Departamento de Sociologia da UNICAMP, comentando a história dessa mesma luta no Brasil e uma bibliografia. Alguma quadrinista poderia pegar esse texto, que começa lá na colônia, e transformar em um quadrinho, porque precisamos de obras assim em nosso país, não é mesmo? E, para quem quiser comprar Mulheres na Luta, está no Amazon, é só clicar aqui. Há uma amostra do livro na página da Cia das Letras, eis o link.
2 pessoas comentaram:
Por falar em direitos das mulheres, essa lamentavelmente se esqueceu dos direitos das mulheres na ex-URSS... e outros países socialistas ou ex-socialistas
https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/uniao-sovietica-foi-pioneira-nos-direitos-das-mulheres-diz-historiadora/ Inclusive 1 historiadoria estadunidense falou disso
Além disso, vale lembrar que a URSS lançou ao espaço a 1ª mulher... Tereshkova...
Vale lembrar do papel importante das mulheres em Cuba.... tbm...
https://www.prensalatina.com.br/2022/06/18/vilma-espin-foi-uma-mulher-a-frente-de-seu-tempo/
https://capiremov.org/experiencias/vilma-espin-uma-revolucao-dentro-da-revolucao/
https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/america-latina/55192/em-cuba-a-luta-das-mulheres-e-um-dos-pilares-de-resistencia-e-continuidade-da-revolucao
A importância de Evita e o voto feminino na Argentina
https://www.argentina.gob.ar/noticias/voto-femenino-historia-y-acciones
Essa tem que abordar a luta das mulheres
PS:Sororidade... me lembrei de "Sorella"(italiano) "Sora" (romeno e napolitano) e "Soeur"(francês) e também de "Sóror"
Stephano, eu fiz resenha do outro livro, elas falaram muito dos direitos das mulheres na URSS lá. De resto, o livro tem três eixos, que eu transcrevi na resenha. Educação, voto e controle do próprio corpo. Os recorte, inclusive os temporais, foram bem executados. Não dá para falar de tudo e Evita Péron não foi responsável pelo direito de voto feminino em seu país, ela instrumentalizou a favor do Peronismo uma luta que vinha de muito tempo e que deve muito mais à mulheres como Julieta Lanteri.
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