sábado, 25 de novembro de 2023

História vs. Cinema: críticas ao filme Napoleão reacendem uma velha discussão

Para quem não sabe, sou historiadora de formação e professora da disciplina, além de gostar muito de cinema e fazer resenhas de filmes para o blog sempre que possível, este ano, o recorde deve ser negativo, mas, ainda assim, tenho um bom acervo de textos que se acumulam pelo menos desde 2009 por aqui.  Enfim, por causa do filme Napoleão, que eu não irei assistir agora, porque jurei, depois de Prometheus não assistir mais nada de Ridley Scott no cinema, e da grosseria do diretor com os historiadores que questionaram as escolhas que ele fez na película, voltamos à velha discussão sobre cinema e história. Velha, porque já se gastou muito papel e tinta com isso e muito ainda se vai gastar. Mas vamos para as minhas ponderações.

Um filme não precisa ser historicamente preciso, mas se ele se vende como tal, ou como a "verdadeira história", ele está atraindo a atenção para si e o diretor, ou os roteiristas, devem ter a maturidade para receber as pedradas.  Ao que parece, Ridley Scott decidiu escolher o que mostrar e como mostrar, direito dele, mas as críticas mais consistentes que eu vi sobre o filme apontam que ela nao conseguiu ser convincente e que o filme é mal estruturado.  Para maiores detalhes, sugiro a crítica do Pablo Villaça, ele discute os problemas do filme como cinema, sem entrar na discussão da fidelidade histórica.  

É possível arrancar boas discussões históricas até dos filmes mais insuspeitos e rasteiros, seja porque há material para pensar o passado que ele julga apresentar, seja porque ele dá muita bandeira do momento no qual foi feito ou dos interesses de quem o fez.  A página do PEM-UFRJ (Programa de Estudos Medievais), volta e meia sugere filmes que dialoguem de alguma forma com a Idade Média.  Sabendo explorar o material, há sempre alguma coisa a se discutir, destacar e desmistificar.

Estabelecido isso, eu adoro citar o Robert Rosenstone (A História nos Filmes, os Filmes na História), porque este historiador faz uma excelente discussão sobre como os filmes históricos falam mais do momento em que foram produzidos do que do passado que buscam retratar.  São as questões contemporâneas que muitas vezes direcionam o olhar do cinema sobre o passado.  Querem um exemplo? Peguem Spartacus (1960) e analisem o filme à luz do Marcathismo e toda perseguição e repressão política e sexual que marcaram a década de 1950 e ele ganhará outra dimensão. A própria cena censurada de entre Antoninus (Tony Curtis) e Crassus (Laurence Olivier) já daria um artigo inteiro cheio de discussões sobre gênero e sexualidade, não necessariamente na Roma Antiga, mas nos EUA dos anos 1950.

Sim, um filme pode ser bom como cinema e ruim como material histórico e isso é OK, porque o objetivo da película é entreter.  Ainda assim, eu me preocupo sempre em analisar as escolhas que a a produção fez. Por qual motivo omitir isso e mostrar aquilo? Como se buscou construir as personagens?  Quais representações sociais de masculinidade, feminilidade, bem, mal, beleza, covardia, de poder etc. estão em destaque? Isso é, sim, muito importante e eu não consigo assistir filme, série, ou o que seja sem atentar para essas questões. 

Vou fechar o post com um exemplo. Coração Valente (1995), que eu assisti em cinema lotado, é considerado um excelente filme por muita gente, mas em termos históricos analisá-lo é como chutar cachorro morto, porque ele não tem compromisso com fatos, ou cronologia.  Agora, para discutir questões de gênero e sexualidade, temos um prato cheio.  O filme pinta os escoceses como modelo de masculinidade, leais, preocupados com suas famílias e comunidade, já os ingleses como maus e divididos em dois grupos, os jovens são efeminados, os velhos são guerreiros poderosos, mas cruéis e incapazes de qualquer empatia pelos mais fracos, além de já não conseguirem mais desempenhar seu papel sexual com as mulheres. Eduardo I olha para sua nora, Isabella de França, a esposa negligenciada por seu filho com desejo, mas ele certamente não daria  conta, quem acaba transando com a bela princesa e a engravidando é o herói escocês.  A graça é que o velho rei Eduardo hstórico casou-se em segunda núpcias com uma adolescente quarenta anos mais nova que ele e teve vários filhos com ela. 

Enfim, há uma cena específica na qual Eduardo I surpreende o filho efeminado com um amante.  O velho rei, com ar indignado, termina por atirar o amante do filho de uma janela para a morte certa.  Lembro que o cinema foi à loucura, aplausos, urros, frases exaltando o assassinato da personagem. Como o príncipe poderia trocar sua linda esposa por um homem?  Ele, o príncipe, merecia sofrer, ou morrer, também.  Nada disso que descrevi é histórico, mas a homofobia e a legitimação da violência contra os homossexuais gerou identificação com a audiência,  na verdade, naquela sessão de cinema em que eu estava, produziu catarse. O fato é que o filme trabalhou muito bem com as mais sórdidas representações da homossexualidade presentes no imaginário social dos brasileiros, mas não somente deles, nos anos 1990.  Todos sabiam quem eram os bons e quem eram os maus e que esses últimos deveriam morrer. Daí, pegamos um Mel Gibson, suas crenças pessoais, e fica evidente que a mensagem foi consciente. 

É nesse sentido que digo que um filme fala mais do presente e de nossas preocupações e, não, do passado em si.  Provavelmente, há muito mais dos questionamentos de Ridley Scott sobre a figura de Napoleão, de sua imaginação sobre a personagem, do que propriamente de História no filme e está tudo bem, mas o problema é que parece que a película não é tão boa quanto poderia ser e isso acaba atraindo a atenção negativa, inclusive, dos historiadores, que foram destratados pelo diretor.  No trailer, a Maria Antonieta grotesca, desgrenhada e de preto, quando todas as fontes dizem que ela vestiu branco a sua execução, já me deu a senha de que coisa boa não viria desse filme.  

Houve gente que falou "se quer fidelidade, pegue um documentário", mas mesmo um material documental faz escolhas, tem viés ideológico e, claro, não é representação do que aconteceu, ou seja, a lógica que vale para a ficção, aquela do Rosenstone, também se aplica em parte aos documentários.  E, para quem quiser um artigo contrapondo o filme aos fatos históricos, recomendo o artigo do History vs. Hollywood sobre Napoleão.  É fácil achar, também,  textos do pessoal da área de História Militar se rasgando por conta das "escolhas" do diretor. 

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