segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Boku no Shotaiken talvez seja o mangá mais errado já publicado na Margaret e, ao mesmo tempo, é brilhante do seu jeito

Fazendo minha pesquisa para a segunda parte do Shoujocast sobre os 60 anos da Margaret (*Não assistiu?  Está aqui.*), acabei revisitando um dos mangás mainstream mais errados já feitos no Japão.  Sim, sim, vocês vão entender o meu ponto.  Só que, ao mesmo tempo, é um negócio tão louco, tão sem noção, que é brilhante e lembrado até hoje, porque inaugurou um tipo específico de gender bender que se consagrou em séries como Ranma 1/2 (らんま1/2), na década de 1980.  Mas vamos explicar.

O gender bender é fundador do shoujo mangá, vide A Princesa e o Cavaleiro, que está completando 70 anos este ano.  O gender bender mais tradicional é aquele em que a mocinha se vê obrigada, ou escolhe, se vestir como um garoto.  Temos desde material sério, como A Rosa de Versalhes (ベルサイユのばら) ou Kakan no Madonna (花冠のマドンナ), passando por dramédias como Hanakimi  (花ざかりの君たちへ), até comédias rasgadas como Ouran Host Club (桜蘭高校ホスト部).  Isso para ficar no shoujo somente.  Todo mundo já leu ou assistiu um gender bender e, claro, não são somente as garotas que se vestem de garotos, o inverso acontece, também.  Um exemplo interessante é o Kuranosuke de Kuragehime (海月姫). Este é o gender bender que pode é literariamente acolhido, afinal, Shakespeare já escrevia peças assim, como Noite de Reis, no século XVI.  Nenhuma novidade aí.

Agora, há outro tipo de gender bender que implica na troca de corpos, ou troca de mentes, seja por intervenção de uma divindade, ou por mágica, ou ainda por ação da ciência maluca.  Esse tipo de gender bender tem raízes bem profundas na literatura japonesa, afinal, o Torikae Baya Monogatari (とりかへばや物語), no qual um alto funcionário do imperador é amaldiçoado por um youkai e seus filho e filha gêmeos tem sua identidade de gênero trocada, é do final do século XII, início do século XIII, e tem autoria feminina, assim como boa parte dos shoujo mangá.  Chiho Saito fez um mangá belíssimo adaptando a história.

Muito bem, o mangá da Margaret ao qual me refiro é um dos fundadores desse tipo de gender bender e se chama Boku no Shotaiken (ボクの初体験), em português algo como "Minha Primeira Vez", de Hikaru Yuzuki.  Falarei do autor daqui a pouco, mas ele já tinha rascunhado a ideia em seu mangá oneshot de 1972, Doron (どろん), que é pequenininho, no qual o protagonista ativamente tomava uma droga ninja para virar menina e escapar de uma situação de assédio que ele mesmo criara.  Mas vamos ao resumo do Bakaupdates, que não dá conta da doideira da série em si: "Desanimado porque a garota que ama não retribui seu afeto, Eitaro tenta cometer suicídio. Mas seu quase cadáver é descoberto por um cientista e sua mente é transferida para o corpo de uma jovem. Quando menina, Eitaro logo descobre que a garota dos seus sonhos de fato o amava, então eles tentam fazer o relacionamento funcionar apesar do fato de Eitaro estar no corpo de uma garota."

Parece um mangá sério, não é mesmo?  Esqueça!  Eitaro, o protagonista, é um tipo de personagem que começou a aparecer nos mangás para garotas a partir da influência de um sucesso avassalador de Go Nagai, Harenchi Gakuen (ハレンチ学園), em português, Uma Escola Sem Vergonha, publicado na Shounen Jump entre 1968 e 1972.  O mangá é apontado como o inaugurador do fanservice, foi perseguido pela Associação de Pais e Professores, enfim, um escândalo.  Mas foi um grande triunfo e abriu caminho para inúmeros outros mangás.

Voltando para Boku no Shotaiken, Eitaro é apaixonado por uma garota (Michiru Saeki), é fato, mas ele não consegue não flertar e assediar qualquer outra menina que lhe passe pela frente.  Por conta disso, as VINTE MENINAS do clube da beleza da escola decidem humilhá-lo.  A garota que ele ama é uma delas.  Eitaro fica arrasado e decide colocar fim a sua vida.  Ele se atira de um penhasco em uma sequência espetacularmente desenhada e muito dramática.

Acabou?  Claro que não acabou!  Eitaro acorda e fica surpresa por estar vivo, claro, mas o pior ainda está por vir, ele está em um corpo de mulher, mas não um corpo qualquer, o de uma mulher que seria o tipo que ele perseguiria.  Vejam que isso é um clichê do gênero, PORÉM Boku no Shotaiken é de 1975, ele está criando o tal clichê.  O rapaz fica desesperado.  Está ruim para ele?  Mas pode piorar, obviamente.  

Eitaro agora está no corpo de Haruna, a esposa adolescente de um cientista maluco e pervertido de 42 anos.  Sim.  A seu favor, se é que podemos dizer isso, Haruna se aproximou do cientista quando tinha 15 anos mentindo que já estar com 18.  Quando a mentira foi descoberta, eles acabam se casando quando a moça completou 16 anos, idade de casamento na época.  Agora, a surpresa, o cientista se chama Hitora, que é a forma japonesa de pronunciar Hitler.  Sim, o cientista é a cara de Adolfinho, há suásticas na roupa dele e pela casa.  Está louco o suficiente já?  Hitora quer que Eitaro assuma o lugar de sua esposa, afinal, ele o salvou da morte e o garoto de 15 anos lhe deve isso.  E estou falando em TODOS os sentidos, inclusive esse que você, leitor ou leitora, está pensando.

Haruna morreu de câncer no cérebro e, por isso, Hitora decidiu se apropriar do de Eitaro.  O corpo do garoto não foi descartado, ele está em uma câmara criogênica.  Eitaro exige que o cientista retorne seu cérebro para o seu corpo.  Hitora avisa que o corpo do rapaz está muito machucado e, se ele fizesse a vontade de Eitaro, ele morreria.  Mas o garoto queria morrer mesmo, certo?  Pois é, mas ele se arrependeu.  O cientista avisa, inclusive, que escreveu uma carta de suicídio, coisa que o menino não tinha pensado em fazer, e a colocou em seus sapatos, que ficaram abandonados no penhasco.

O cientista então faz a seguinte proposta, ele viveria como sua esposa por três meses, cuidaria da casa, cozinharia, usaria roupinhas bonitas e sensuais, beijaria Hitora e... Bem, Eitaro se recusa ao resto, mas vai rolar e teremos piada com estupro em uma revista juvenil feminina, porque, bem, estamos no campo do absurdo.  Toda vez que Eitaro recusa algum avanço de Hitora, ele ameaça "matar" o seu corpo de menino que está se recuperando, condenando-o a ser Haruna para sempre.  É desse jeito.

Eitaro, agora Haruna, via fazer compras para a casa e temos piadinhas sobre como andar e sentar, afinal, ele é um garoto adolescente.  Curioso, Eitaro quer descobrir como as pessoas que conhece estão.  Ele vai até sua casa e descobre que está acontecendo uma cerimônia fúnebre.  Meio miolo mole, ele acha que sua mãe, uma mulher de saúde frágil, pode ter morrido, mas são os funerais dele mesmo.  Passou-se um mês, Eitaro não teve o corpo localizado no mar, mas foi dado como morto.

O que acontece então?  Eitaro é assediado pelo seu irmão mais velho (!!!), que elogia o gosto do falecido para mulheres.  O protagonista bate nele, diz que pode não parecer, mas é uma mulher casada e vai dar uma olhada no livro de condolências.  No Japão, existe o Gokoden (ご香典 – ごこうでん), uma espécie de presente para a família do morto como forma de ajudar nos gastos de cremação e outros, além de confortar.  Eitaro se delicia com o fato de seus professores, que ele tanto atormentou, darem somas de dinheiro respeitáveis, 20 mil ienes (*quase 700 reis por valores de hoje*).  E ele vê o quanto as meninas do Clube de Beleza deram, estão todas lá com cara de choro.  Elas doaram míseros 2 ienes, todas juntas.  Ele então jura vingança, porque elas estariam debochando dele mesmo depois de sua morte.  Sim, as meninas do Clube da Beleza são más, mesmo que Eitaro não valha nada, também.

Cedendo favores para Hitora, Eitaro consegue permissão para ir para a escola, afinal, ele precisa se vingar.  Apresentado como Haruna, o garoto é recebido com empolgação, afinal, trata-se de uma garota bonita.  Eis que, de repente, outra menina transferida aparece, ela conhecia Haruna, era sua colega de escola, quando a jovem abandonou os estudos para CASAR.  As garotas do clube de beleza ficam empolgadíssimas, "como é ser uma mulher casada?".  Eitaro precisa pensar rápido para despistar todos, inclusive, a antiga colega de escola.  

Aqui, temos um rombo de roteiro.  Eitaro tem 15 anos, está, acredito, no primeiro ano do colegial, perto dos 16 anos.  Haruna tem 17 anos.  Como uma antiga colega da garota estaria cursando o mesmo ano escolar de Eitaro?  Ela reprovou?  O autor se confundiu?  O que aconteceu?  Não temos explicação nesse terceiro capítulo que termina com as meninas encontrando a camisa ensanguentada de Eitaro dentro do armário da garota que ele ama, afinal, ele voltou ao colégio para se vingar.  Acabaram as scanlations, são três volumes de mangá.

Boku no Shotaiken não questiona papéis de gênero, ele mostra toda a desigualdade existente dentro de um casamento, com Haruna tendo que assumir todas as tarefas domésticas e servir sexualmente o seu marido.  É tudo em tom cômico, verdade, mas não é para reflexão, ao que parece.  O autor teve grande preocupação com questões fisiológicas.  Logo no início, temos Eitaro, que nunca sequer pegou na mão de uma menina, se recusando a ir ao banheiro e Hitora o obrigando a ir urinar, ou teria infecção urinária.  

No início, Eitaro, este é outro clichê do gênero, virgem e inexperiente, se sente estimulado pelo corpo feminino que habita, mas, com o passar do tempo, começa a ser vítima dos hormônios femininos e vai se tornando cada vez mais emocional.  Quando termina o mangá, segundo vi por aí, Haruna está grávida.  Em uma entrevista deste ano, o autor disse que introduziu a gravidez, porque esqueceu de colocar Eitaro/Haruna menstruando.  Foi a saída que ele encontrou.  Tudo dentro da lógica da série, você vai empilhando absurdos.  Segundo consta, o autor se inspirou em um livro de ficção científica do escritor norte americano Robert A. Heinlein com a mesma premissa para fazer seu mangá.

Mas vamos falar do autor?  Hikaru Yuzuki ganhou o primeiro prêmio para novos autores da revista Ribon, em 1968, dividindo o prêmio com Morita Jun e Yukari Ichijo.  Aliás, ele é amigo íntimo de Ichijo, os dois trabalharam juntos ajudando como assistentes um do outro e Hikaru Yuzuki chegou a morar na casa da autora, enquanto estava tentando resolver sua vida.  Yuzuki, que ainda estava no colegial, estudava em uma escola masculina, e escolheu um pseudônimo que escondesse totalmente a sua identidade, porque não queria que seus colegas suspeitassem dele.  Gekkan Shoujo Nozaki-kun (月刊少女野崎くん) feelings!  Ele estava entrando no universo do shoujo mangá em um momento no qual os homens estavam saindo.  Consta, também, que quando passou a trabalhar na Ribon e precisava aparecer por lá em pessoa, ele ia vestido com roupas femininas, ou seja, Yuzuki era um crossdresser de ocasião.

O traço de Boku no Shotaiken é muito bom e, pelo menos para mim, já grita década de 1980 em alguns momentos.  O fato é que Hikaru Yuzuki já produzia de tudo desde o início da carreira e vai se mudar para o shounen definitivamente nos anos 1980.  Boku no Shotaiken é muito lembrado entre suas obras, teve DORAMA em 1986, mas o autor é mais lembrado por seus mangás seinen e shounen que terminaram virando animação e/ou dorama, como Cinderella Express (シンデレラ・エクスプレス),  Amai Seikatsu (甘い生活) Minna Agechau (みんなあげちゃう♥), entre outros.

Enfim, precisava fazer um texto sobre o pouco que li desse mangá.  Por tudo que comentei e coisas que nem devo saber, Boku no Shotaiken seria inaceitável hoje, acredito que não fosse publicado desse jeito em nenhuma revista mainstream de qualquer demografia.  Agora, é inegável que se trata de um ancestral direto de mangás como Boku to Kanojo no XXX (僕と彼女の×××) de Ai Morinaga.  

No fim das contas, são todas séries que riem de estereótipos de gênero, isto é, a forma esperada de comportamentos e papéis de homens de mulheres em uma dada sociedade, mas sem questioná-los de fato.  Qualquer conclusão mais subversiva fica realmente na conta do leitor.  Infelizmente, Boku no Shotaiken só teve três capítulos traduzidos, para quem quiser ler em inglês, eles estão aqui.

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