terça-feira, 23 de janeiro de 2024

Comentando rapidamente o primeiro capítulo do remake de Renascer

Estrou ontem, com grande pompa, o remake de Renascer, novela de Benedito Ruy Barbosa, agora assinada por seu neto Bruno Luperi. O ponto de partida é a chegada do jovem José Inocêncio nos arredores de Ilhéus, Bahia, e como ele constrói seu império em conflito com outros coronéis da região.  Como estou falando na primeira fase da trama, que se passa em finais dos anos 1980, não vou entrar nas confusões com os filhos e agegados. O espetáculo em si foi muito bonito, o dinheiro investido era visível em todos os momentos, além disso, o elenco escalado merece somente elogios.  Eu vi a novela original, que estreou em 1993, quando eu estava no meu primeiro ano de faculdade.  Nessa época, eu era obrigada pela família a assistir novela das oito.  Era um programa obrigatório de família.  Como tudo que é imposto, especialmente, a um adolescente, vocês podem imaginar que as minhas recordações não são lá muito boas.  

Só que eu tinha parado para reassistir o primeiro capítulo da novela original quando ele entrou no Globoplay.  Por livre vontade, antes de anunciarem o remake, então, eu tenho uma impressão recente e positiva desse começo de Renascer, mesmo não sendo fã de Benedito Ruy Barbosa e sabendo, já escrevi em outros textos meus essa informação, que desde os Imigrantes e Paraíso, ele recicla pedaços das suas tramas.  

Meu compromisso, porque eu realmente não gostava da então fase atual de Renascer, assistirei a primeira fase da novela.  A nova versão foi menos impactante emocionalmente que a original, porque eu realmente considero o início da novela de 1993 perfeito, fora que Leonardo Vieira é melhor que Humberto Carrão, e é quase impossível conseguir alguém que tenha a doçura e beleza de Patrícia França.  A nova versão, no entanto, venceu em um quesito, a introdução de duas novas personagens, como as de Maria Fernanda Cândido e a de Enrique Diaz.  As novas personagens conseguiram ajustar pontas soltas que, na original, só existiram porque o autor foi pressionado a correr com a primeira fase da trama.  Esta nova versão terá 13 capítulos, a antiga teve somente 5.

Estabelecido isso, que a nova versão tem méritos próprios, afinal, permitiram que Bruno Luperi tivesse alguma liberdade para mexer no material original do avô, considero que essa construção da região de Ilhéus do final dos anos 1980, não da cidade, vejam bem, ela não apareceu ainda, muito estereotipada.  Se estivéssemos, como na original, nos anos 1960, OK., mas estamos quase nos anos 1990.  Coisas como luz elétrica, televisão, não tinham chegado em muitos lugares do Brasil naquele momento, mas será que não estavam naquela região muito mais próspera, por exemplo, que o distrito rural de São Cristóvão (SE) em que parte da minha família morava?  

Por exemplo, em janeiro de 1994, a casa do meu tio-avô, que morreu duas semanas atrás com 93 anos, tinha luz elétrica e TV, as pessoas que não tinham, iam para a casa dele ver a novela das sete e o Jornal Nacional, depois, todo mundo ia dormir, porque o dia começava cedo, 4h30 da manhã.  Havia uma escola de Ensino Fundamental 1, para além disso, era preciso ir para a cidade, São Cristóvão, o ônibus era escasso e ruim.  Mas existia.  Tinha posto de saúde e telefônico.  As pessoas se vestiam como quem morava nas cidades do Sudeste, em especial, os jovens. Outra coisa, mesmo que a honra e a vergonha ainda pudessem nortear a vida de muitos, a maioria das filhas que "se perdiam" eram acolhidas, não iam parar na rua, não, ainda que, e isso acontecia, também, na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro, as mulheres ainda fossem divididas entre as para casar e as que não eram.

Sabe o que mais dividia a comunidade?  A chegada da Assembleia de Deus, as conversões dividiram a comunidade.  Pensem que as sociabilidades giravam em torno dos ritos católicos tradicionais.  Os evangélicos pentecostais não apadrinhavam mais, não iam mais às missas em memória dos mortos, não iam às festas dos santos, nem ao benzedor, que era vizinho do meu tio.  Observar a guerra religiosa quase declarada, era muito curioso.  E eu sou protestante, batista, mas minha família católica considerava minha mãe e seus filhos, os "bons protestantes", porque, no geral, a gente "respeitava" as crenças tradicionais alheias. Enfim, Sergipe era muito mais pobre que a Bahia.  Não acho que a região da novela, em 1988-1990, estivesse em condição pior que a das Pedreiras.

Sim, sim, eu sei que estão usando a mesma fazenda da novela original.  Aliás, eu, se fosse a dona, teria preservado ao máximo a propriedade, porque há turismo ligado à fazendas antigas, há gente que pode querer ver onde a novela foi gravada, o remake poderia vir.  Nessas minhas férias, que estão acabando, estive em Piacatuba, em Leopoldina (MG), a cidade é locação para cinema e TV.  É uma vila o século XIX preservada ao máximo, mas temos a rede elétrica, por exemplo, além das antenas de TV e tudo mais.  As pessoas, no geral, se vestem como as da cidade.  Tem escola pública e ensino fundamental, premiada inclusive.  Não é somente a estrutura, são os usos e os costumes, também.

Concluindo, a novela pode acionar os gatilhos nostálgicos de algumas pessoas, mas de um passado mais distante que o final dos anos 1980, trata-se muito mais de um interior do nordeste, que nem é tão  imaginário, do que uma representação próxima da realidade. É como a Itália do autor, que eu revi em Rei do Gado, porque meu pai estava na minha casa e assistia, algo que reforça até representações defasadas da economia e da sociedade de um país.  É bonito, mas me causa desconforto.  Esses remakes deveriam ser novelas de época, pelo menos para mim, funcionaria melhor.  

Obviamente, invadir terras alheias do nada, como faz o protagonista na primeira sequência da novela, para cravar um facão no chão e fazer um juramento grandioso como o de Scarlet O'Hara poderiam lhe trazer problemas ainda hoje.  Inegável que a luta por terras só se acirrou em muitas regiões do país.   poderiam trazer problemas.  Nisso a coisa foi realista, um mascate em um burrinho aparecer em cena vendendo mercadorias que parecem saídas de uma novela de época do horário das seis e, não, quinquilharias chinesas compradas no Paraguai, não.  É muita suspensão de descrença para mim.  Enfim, é isso.

6 pessoas comentaram:

Pra mim não é muita suspensão de descrença, porque Renascer não é uma novela realista como Sinhá moça. Ela é muito mais próxima de uma Velho Chico, só que sem uma direção lúdica, com uma infinidade de plot sobrenaturais. Ela é mítica.

E acho que você deve assistir um pouco da segunda fase também, para ver como vão lidar com o plot de espiritismo (original da novela de 1993, irão sumir com isso pra agradar a bispa?) e a abordagem que vão inserir do protestantismo: Padre Lívio virou Pastor Lívio, o que já modificou o amor impossível dele com Joaninha. E dona patroa virou irmã da igreja, nas aspas da própria Camila Morgado, intérprete da personagem:
"Ela acredita que, através da fé, ela vai conseguir mudar o marido. O Bruno [Luperi, autor do remake] fez essa mudança que eu achei muito pertinente. Por que essa mulher, a Dona Patroa de hoje, em 2024, aceitaria todas as coisas que que o marido faz, todas as perversões? Aí, foi acrescentada essa questão da crença, de ela ser uma crente muito fervorosa, de ter uma visão bem dogmática sobre as questões religiosas",

Júlio, eu assisti a primeira Renascer, vi a primeira fase de Velho Chico, o que me interessava, e estou acompanhando esse início de Renascer. São propostas diferentes. Renascer tem um conteúdo místico muito forte, mas está longe de se apresentar como um material sem temporalidade demarcada. Adocica no primeiro capítulo já sugere a época, 1988. Há, também, um certo ar de faroeste e um diálogo com o material sobre o cangaço. Renascer é realista e, ao mesmo tempo, reforça representações idealizadas sobre o Nordeste brasileiro. Coisa de Benedito Ruy Barbosa, assim como o bom coronel, que, mesmo quando é mau, caso do Barão de Araruna em Sinhá Moça, se redime no final.

Eu fui obrigada a assistir tudo o que esse o novelista fez até que me tornei dona do meu tempo e eu li análises acadêmicas da obra dele. A obra de Benedito Ruy Barbosa é um repetir-se sem fim de esquemas e personagens tipo. Ele nem disfarça, seus grandes coronéis, de Paraíso até Renascer, todos são José e tem um diabinho na garrafa.

Quanto a ver a segunda fase. Não. Agora, nada me impedirá de ver as cenas de alguns personagens e eu acredito que essa mudança de padre para pastor foi um erro, como a mudança de Buba e mesmo essa Dona Patroa crente pode ser um problema.

Benedito não é o único autor que se repete. Vi recentemente os capítulos que sobraram de "Coração Alado" no projeto Fragmentos do Globoplay e percebi que Janete Clair já estava se autoreciclando naquela época. A trama é muito semelhante à de "Selva de Pedra", pois apresenta um protagonista que parte do interior para a cidade grande e se envolve com duas mulheres de classes sociais diferentes: uma é a mocinha e a outra, a maluquinha da trama.

Novela, mangá, cinema, enfim, essas mídias todas são feitas de clichês. Em alguns casos, as inspirações vêm de longe, das mitologias, inclusive. O meu problema com Benedito Ruy Barbosa, e está em mais de um texto de novela dele que eu tenha comentado, é que ele recicla os mesmos temas e estereótipos faz uns 40 anos. E, claro, o que ele escolhe repetir, como o bom coronel, que mesmo quando não é bom pai, quando é adúltero, seja o que for, se reabilita no final. Aliás, o da vez é o José Inocência.

A Glória Perez também com a estrutura perua alienada (Melissa, Maysa, Haydée, Joyce ) + filho problemático ou com algum tema social (Tarso, Mel, Raissa, Ivana ) + pai empresário omisso (Lucas, Glauco, Ramiro, Eugênio).

Sem falar nas "psicopatas" : Alicinha, Irene, Yvone.

Todos os autores e autoras, em especial de novelas populares, tem seus tipos repetitivos. A questão, pelo menos para mim, é a ideologia que vem junto com certas personagens recorrentes. Uma perua solitária é muito menos problemática que a ideia do bom coronel, pelo menos, aos meus olhos.

O Walcyr Carrasco inova nos protagonistas, mas raramente consegue fugir das repetições em seus núcleos caipiras de comédia nas novelas de época.

Falando nisso, não sei como deixaram o Bruno Gagliasso ser o núcleo caipira de um homem só no remake de Sinhá Moça é um mistério para mim. Aquilo é muito absurdo e destona não somente do original, mas da novela de 2006.

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