Um dos meus posts começados e não terminados em 2023 é meu balanço geral de Vai na Fé. Comecei a escrever no dia em que a novela terminou, em 11 de agosto de 2023, e simplesmente não concluí. Por qual motivo? Não sei, mas está quase pronto. Então, para efeito de registro, ele será terminado, porque falta pouco:
Anteontem (*deixei a palavra para marcar a última vez em que mexi no texto*), acabou Vai na Fé, a muito bem sucedida novela de Rosane Svartman (*e seus colaboradores*). Sucesso de público e de crítica, ela foi uma das maiores audiências da Globo, enquanto esteve no ar. Mesmo não acreditando que isso seria possível, ela me prendeu do início ao fim, mas só fiz três posts sobre ela (*1 - 2 - 3*) ainda que, no geral, tenha gostado bastante do que vi. Eu nunca tinha assistido nenhuma novela de Svartman, mas acompanhei os comentários positivos sobre Bom Sucesso, sua obra anterior. No geral, Vai na Fé foi uma novela com muito mais acertos do que erros e mesmo o último capítulo, apesar dos seus clichês, foi bem digno e fechou bem a trama.
Para quem não assistiu a novela, Vai na Fé trouxe a primeira mocinha evangélica, uma aposta vista como ousada pela Rede Globo e baseada também no fato das obras de Svartman terem boa aceitação com este público. Tínhamos um núcleo central liderado por uma mulher pobre, negra por volta dos 40 anos, Solange, chamada por todos de Sol, que morava com as duas filhas, a mãe, e, no início da trama, o marido em Piedade, Zona Norte do Rio de Janeiro. Ela guarda um grande segredo da filha mais velha, Jenifer (Bella Campos), a garota é fruto de uma violência sexual e seu pai biológico não era o marido de sua mãe, Carlão (Che Moais).
Sol é vendedora de quentinhas, mas tem um grande sonho, ser cantora, além disso, ela ama dançar, mas está inserida em um ambiente religioso que não vê a atividade com bons olhos. Só que Sol tem um passado e a gravidez antes do casamento (*ela só compreende que foi estuprada muito mais adiante na trama*), é usada contra ela a cada instante pela mãe (Elisa Lucinda), muito religiosa, que associa a gravidez da filha a um comportamento desregrado da juventude. Já Carlão, mesmo amando a esposa, não lida muito bem com a questão e se sente inferiorizado por estar desempregado e/ou subempregado e depender do dinheiro da mulher para pagar as contas.
Ainda nas primeiras semanas da trama, Sol fica viúva e termina reencontrando o seu amor do passado, Benjamin (Samuel de Assis), só que, junto com ele, o homem que a violentou, Theo (Emilio Dantas), melhor amigo do advogado. Mesmo contra a vontade da protagonista, esse passado precisa ser revisitado, porque Jenifer quer descobrir quem é seu pai biológico. Algo que foi usado ao longo de toda a trama, foram sequências em flashback que mostraram tanto o amor de Ben e Sol, que se conheceram em um baile funk, quanto a forma como Theo agiu para separá-los e se aproveitar da mocinha.
O elenco jovem (Jê Soares/Sol, Isacque Lopes/Ben, Matheus Polis/Theo, Hanna Romanazzi/Lumiar etc.) que participou das passagens em flashback merece todo o elogio, porque mesmo que as semelhanças físicas não fossem tão evidentes em alguns casos, conseguiu entregar interpretações que não deixaram a qualidade da história cair. Os flashbacks, na verdade, ajudaram muito na trama, servindo para que tivessemos uma melhor compreensão do psicológico das personagens.
Ainda antes da morte de Carlão, com a desculpa de pagar as contas, Sol tem a chance de se tornar artista como dançarina de Lui Lorenzo (José Loreto), um cantor brega com uma carreira um tanto decadente, e que é dominado pela mãe (Renata Sorrah), uma atriz de novela aposentada, mas que foi um dia uma grande estrela. Neste começo de novela, houve a possibilidade de explorar uma série de incompatibilidades da vida artística com a vivência religiosa de Sol e ela quase desistiu em alguns momentos, porque havia oposição dentro de casa e o julgamento dos vizinhos e irmãos de igreja, com destaque para a fofoqueira Dona Neide (Neyde Braga). Depois da morte de Carlão, Lui e Sol terminam se envolvendo amorosamente, mas, com o passar da história, a mocinha tem que acertar as contas com seu passado, inclusive resgatando o amor que ficou no passado.
Fora isso, Lui precisava amadurecer como homem e se encontrar como profissional antes de ser capaz de se envolver de verdade com alguém. José Loreto defendeu muito bem a personagem que sempre foi dominada e emocionalmente abusada pela mãe. Mesmo que a Wilma tenha sido uma das melhores coisas da trama, ela era uma mulher egoísta e cruel. Aliás, com o remake de Vale Tudo, que ninguém pediu, mas virá, eu pensaria seriamente em dar-lhe o papel de Odete Roitman. Fora isso, a Globo perdeu uma bela chance de aproveitar o sucesso da novela para fazer um falso documentário sobre a carreira de Wilma Campos.
Acredito que para além de uma história bem construída, o grande trunfo da novela foi seu elenco muito afiado. Há muita gente a se destacar, mas a novata Clara Moneke foi a minha favorita. Ela começa como uma jovem suburbana cabeça oca, que muita gente identifica como um dos tipos recorrentes na obra de Svartman, uma Fatinha, cujo primeiro exemplar foi Juliana Paiva em Malhação (2012-13). Aliás, eu cheguei a parar para ver cenas desta temporada de Malhação por causa dela, nem sabia que era de Svartman. Com o passar do tempo, a personagem de Moneke, Kate, se envolve com o vilão e é moldada por ele para se tornar uma versão da Sol jovem. Kata passa por poucas e boas acreditando que está se dando bem na vida.
Quando o relacionamento tóxico termina, Kate decide ser mais responsável e reconciliar-se com mãe, de quem se afastou para ficar com o homem rico, casado e mais velho. O que a gente não poderia esperar, mas que a trama desenvolveu muito bem, foi o relacionamento da moça com Rafa (Caio Manhente), que ela, pelos menos no início, não sabia ser o filho com graves problemas emocionais e psiquiátricos de Theo. Caio Manhente também se destacou e o público comprou o romance dos dois, torcendo por eles.
Ainda no núcleo de Theo, o destaque foi Regiane Alves, esposa do vilão. Clara, este era o nome da personagem, abriu mão da carreira de modelo e se tornou dependente emocional e financeiramente do marido que a humilhava e fazia de tudo para que ela se sentisse uma pessoa inferior. O bom de Clara é que Svartman nos faz ter simpatia por ela em alguns momentos, mas, ao mesmo tempo, não a transforma em uma personagem boazinha. Ela é uma dondoca carregada de preconceitos, um ser humano, afinal. E Regiane Alves terminou indo parar no centro das discussões sobre representação LGBTQIA+, porque sua personagem termina engrenando um romance com Helena (Priscila Sztejnman), sua personal trainer e as cenas de afeto das duas terminaram sendo censuradas.
O fato é que Svartman soube desviar o foco do núcleo central para outros da novela impedindo, no geral, o desgaste de Sol e das personagens diretamente ligadas a ela. Por exemplo, já no final da novela houvei o drama vivido pela personagem de Cláudia Ohana, Dora, mãe da (ex) esposa de Ben, Lumiar (Carolina Dieckmann). A autora abordou o tema da morte, tanto para quem está partindo, quanto para os que ficam, além da questão do tratamento paliativo. Foi bonito, foi tocante e duvido que não tenha ajudado mais de uma pessoa que assistiu a novela.
Outras tramas menores criadas ao longo da novela, e que ocupavam duas ou mais semanas, foram:, o filme alternativo estrelado por Wilma, o golpe dado pelo primeiro namorado de Jenifer, que entrou por cotas sociais no curso de Direito sem precisar, a perda da virgindade da filha de Sol, o deboche aos grupos masculinistas etc. Houve, claro, a ênfase nas discussões jurídicas, que eu, como leiga, gostei bastante. Jenifer, filha de Sol, cursava direito em uma faculdade particular de elite (*falei das minhas restrições à abordagem em meu primeiro texto sobre a novela*) com bolsa de estudos. Havia o grupo de estudantes, algumas rivalidades de classe, era como um núcleo Malhação, mas com a presença de Ben e, especialmente, Lumiar muita coisa legal saiu do núcleo do ICAES. Achei até uma matéria do site quero Bolsa falando da boa representação do curso de Direito feita pela novela. Está aqui.
Lumiar tinha várias questões pessoais mal resolvidas. Ela rejeitava a vida alternativa dos pais, dois hippies que se mantiveram fiéis aos seus valores da juventude. Advogada de reconhecida competência, professora universitária, era um poço de inseguranças e muito dura consigo mesma. Sua vida amorosa acidentada, fazia com que se agarrasse com unas e dentes ao marido, Ben, o que a levou a cometer uma série de irregularidades, crimes até, ao longo da trama. Os projetos de vida dos dois, no entanto, não eram muito harmônicos e uma das questões discutidas através das personagens foi a da maternidade como destino. Lumiar não queria ter filhos, algo que era desejo do marido. Não querer ter filhos é um direito, mas algo importante é deixar isso claro para o parceiro, o que Lumiar nunca fez. O desgaste da relação dos dois, no entanto, teve outros motivos e, claro, o dedo do vilão.
A verdade é que algumas discussões foram muito bem desenvolvidas, outras, nem tanto. Houve a aluna aleatória que sofreu um estupro, fez um aborto caseiro e foi presa. Assunto tão sério precisava de mais atenção, mas foi corrido. Foi um dos momentos ruins da trama, inclusive, porque não houve a devida atenção ao que seria o drama de Jenifer, ela foi fruto de um aborto, ela é a única do grupo a se posicionar contra a outra jovem.
Outra trama capenga que não posso esquecer é a da menopausa. Bruna, amiga de Sol, a excelente Carla Cristina Cardoso, é a protagonista deste entrecho. Ora, ela e Sol tinham a mesma idade, mais ou menos 40 anos, um pouco menos, um pouco mais, não importa. Não é bem o momento de uma menopausa, salvo se for precoce. Por qual motivo introduzir uma discussão de forma tão apressada? Aliás, outra questão muito jogada, e que chegou até a me ofender, foi juntar Lumiar e Lui Lorenzo.
Eles se acreditavam irmãos, há inclusive uma cena muito bonita, ainda antes da morte da personagem de Cláudia Ohana na qual fica claro que Lumiar se comportava como meia-irmã mais velha de Lui. Não eram irmãos de sangue, mas cresceram com essa ideia firme dentro deles. De repente, é revelado que Wilma mentiu. Simplesmente, a autora começa a forçar situações para juntar os dois. Não é fácil desligar e ligar uma chave como essa. Se houvesse qualquer sentimento antes incestuoso entre eles, OK, mas não havia. A relação dos dois só foi comprada, porque ambos os atores eram muito talentosos. E, bem, o bom trabalho feito com Ben e Jenifer, família é quem a gente elege, não foi bem trabalhado aqui.
Falando da filha da protagonista, o drama da virgindade foi jogado e abandonado rapidamente. Sendo Jenifer tão religiosa, a coisa precisaria render mais, inclusive com a discussão do casamento como dever, algo que ainda está presente em parte do meio evangélico.
A igreja da trama estava mais para o tipo tradicional. Otávio (Gabriel Contente), o primeiro namorado de Jenifer, ficou sem função na trama depois do caso da fraude nas cotas e poderia desaparecer que nem sentiríamos falta dele. O problema é que ele ficou em uma situação de constrangedora figuração. Verdade seja dita, boa parte do elenco jovem terminou um tanto subaproveitado do meio para a reta final da trama. Aliás, os bons novelistas, ou os que tem liberdade para trabalhar, não veem problema em retirar personagens se necessário. Outro erro da novela, que veio de forma muito corrida nos capítulos finais, foi cometido já no finalzinho, com uma abordagem sofrível da adoção tardia ainda interseccionando com a questão étnico-racial.
Voltando para Jenifer, um dos problemas de Vai na Fé foi tentar impor à protagonista jovem de Bella Campos a necessidade de um romance, quando era evidente que a personagem tinha dois eixos, um deles a busca pelo pai biológico, o outro, seu desenvolvimento acadêmico e profissional. Mas novela tem que ter romance e, com as redes sociais, criou-se a ideia de que é preciso oferecer casais para serem shippados pela audiência. Assim, primeiro houve Otávio, depois, criou-se um triângulo entre a protagonista jovem oficial, o jovem missionário chatíssimo Eduardo (Matheus Abreu) e Hugo (MC Cabelinho), que tinha sido ex apaixonadíssimo por Kate.
Aliás, preciso comentar que a personagem de Hugo, que começou marginal e conseguiu sair do crime, passando pela conversão religiosa no caminho, foi muito bem trabalhava. Quem tem a vivência do meio evangélico e não estivesse de má vontade com a novela perceberia o quanto esta questão foi bem desenvolvida pela autora e seus colaboradores. Da mesma forma, o preconceito enfrentado pelo recém-convertido foi bem abordado, também. E o "chefe" e padrinho de Hugo, Orfeu (Jonathan Haagensen), parceiro de crimes de Theo, foi outra boa personagem. Na verdade, a novela deu para os atores negros personagens diversos e complexos. Este é um mérito de Vai na Fé e acredito que poucas novelas conseguiram se sair tão bem nesse quesito.
Sharon Menezzes recebeu sua grande chance de mostrar o seu talento e Samuel de Assis foi um par perfeito e a sua altura. Aliás, que homem bonito, talentoso e carismático é o Samuel de Assis! E uma das questões importantes de Vai na Fé é que o casal protagonista era negro e terminou junto. Reproduzir as hierarquias juntando o homem branco e a moça (pobre) negra é fácil. Criar um protagonista negro e bem sucedido e deixá-lo com a mulher negra no final é algo muito raro na dramaturgia e inverte aquilo que foi a regra na nossa colonização, isto é, a apropriação de mulheres negras e indígenas por homens brancos. Já José Loreto estava divertidíssimo como Lui Lorenzo e eu torci durante algum tempo para que ele e Sol ficassem juntos. Reconheço que foi melhor como foi, especialmente, pelo simbólico da coisa.
E o que dizer de Emílio Dantas? Sem dúvida, ele viveu um dos grandes vilões das telenovelas. Manipulador, cínico, vulnerável e muito cruel. E ainda cantava! Houve quem reclamasse, mas eu adorei as inserções musicais, porque elas diziam muito sobre a personagem e outras que cantaram junto com ele, como Lumiar e Rafa. Ele encarnou tão bem a personagem, mais um vilão em seu currículo, que periga ficar preso nesse tipo de papel. Espero que não. Theo amava os filhos? Não sei. Ele desejava Sol? Também não sei. Amou Lumiar? Como saber. O que eu sei e tenho certeza é que ele tinha uma paixão perversa e reprimida por Ben, este era o centro de tudo A questão era o amigo. Theo desejava as mulheres que Ben ama/amou, a filha que Ben que ele queria ter tido, tudo era uma forma de feri-lo. Eu acredito que o que Theo sentia por bem era um desejo muito reprimido e, talvez, oculto para ele.
E eu ainda não falei de algo fundamental, Vai na Fé foi uma tentativa da Globo de representar os evangélicos, dialogar com um público que, na opinião da emissora, ela perdeu e precisa recuperar. Sem dizer de qual denominação Sol e sua família pertenciam e representados de forma positiva, a igreja da trama era capaz de acolher quase todos. Vejam bem, quase todos. Alguém comentou, acredito que foi o Fábio do Coisas de TV, que os crentes da novela das sete são com a Globo deseja que eles sejam e, não, como eles são. E eu concordo.
Os evangélicos no geral não são como Sol, parecem mais com a Dona Marlene do início da novela, e, boa parte deles, rejeita os produtos da Globo, em especial, as novelas. É um afastamento que foi sendo construído ao longo de muitos anos. Desde sempre houve denominações evangélicas que não viam TV, ou que não viam novela. A campanha contra as novelas da Globo mais antiga da qual me lembro foi na época de Corpo à Corpo (1984-85) de Gilberto Braga, porque o vilão da trama poderia ser o diabo e a mocinha se chamava Eloá, uma variação do nome do deus do Velho Testamento. Uma afronta, portanto.
A partir daí, lembro que os discursos contra as novelas emergiam vez por outra. Eu cresci em uma denominação histórica e tradicional, a Batista, nunca houve impeditivo para assistir televisão, mas, nos últimos anos, a radicalização política dos evangélicos azedou a relação com a Globo e sua teledramaturgia. Isso quer dizer que todos os evangélicos deixaram de ver novela? Claro que não! No entanto, os que deixaram dificilmente vão voltar, ainda mais quando a novela está sendo jogada claramente como uma isca para eles. Já os que nunca assistiam, ou que preferem o SBT, ou a Record, continuarão longe da Globo, simples assim.
Estabelecido isso, não sei se Vai na Fé conseguiu atrair parte do público evangélico por ser uma boa novela, no entanto, conseguiu angariar um público geral mais amplo. Isso é certeza. Em um ano fraco para a emissora, Vai na Fé foi um sucesso. Por exemplo, eu não vejo novela das sete. É muito raro, mas eu fui conquistada por Vai na Fé. Voltando ao ponto, o fato é que os evangélicos, sejam eles protestantes históricos, pentecostais, ou neopentecostais, não se parecem tanto assim com as personagens da novela, em especial, quando o assunto é tolerância. É muito mais uma representação ideal, vide o casamento interreligioso do fim da trama, com pastor e mãe de santo. Desculpem, a igreja teria que ser muito alternativa, muito mesmo, para aceitar algo assim. A própria igreja da trama não tinha um perfil tão liberal.
Enfim, houve uma boa pesquisa, mas muita coisa ficou a desejar. Uma bobagem, por exemplo, foi não aparecer em nenhum momento a esposa do pastor. Pastor normalmente precisa ser casado, há igrejas que não admitem pastores solteiros. Esposa de pastor é figura que precisa ser presente, ou o marido fica mal falado. Mas isso, é coisa que eu sei, só que pode não ser do conhecimento da audiência comum. Agora, a forma como a novela tratou a sexualidade de Jenifer e Sol foi muito complicada. Fazer sexo fora do casamento não é algo bem aceito, tornado público, não em uma igreja tradicional como parecia ser a da novela. Se acontece, é no sigilo e a culpa de Jenifer foi pouco explorada na trama. Já no final da novela, Sol fica transando com Ben sem culpa. Agora, só de não terem anulado a igreja ao longo da trama já foi surpreendente.
Falando em Jenifer, Bella Campos foi meio que odiada por causa da personagem. Jenifer era chata? Sim, durante boa parte do tempo. Agora, querer saber quem era seu pai biológico é um direito, mesmo houvesse o drama de Sol como contraponto, esconder isso de um filho ou filha é algo muito ruim. A busca da moça ajudou a fazer a história andar, isso é inegável, mas o grande problema de Jenifer foi a necessidade de criar um par romântico. E não precisa, aliás, a mocinha da novela era Sol.
No último capítulo, com a vitória da novela assegurada, Jenifer se recusa a tentar pegar o buquê, afirmando que ela e Hugo, com quem terminou ficando, tinham muito tempo ainda. A trajetória da moça era profissional e a busca pelo pai, não amorosa. Olha, o quanto Jenifer poderia render se a autora pudesse ter desenvolvido a história da personagem nessa linha somente, ou principalmente. E a personagem de Bella Campos acabou sendo engolida pelo furacão Clara Moneke. Por outro lado, houve uma grande coragem da autora em manter que Theo era o pai biológico da moça.
Seria muito mais fácil dar o que o público queria, revelar no último capítulo que o vilão fraudara o DNA e que a garota era filha de Ben. Foi, a meu ver a grande ousadia da novela e que se coadunou com o que as pesquisas do genoma dos brasileiros aponta. Nossa nação mestiça foi construída pela violência. Fora isso, o fato de Jenifer ser filha do vilão permitiu reforçar que família não precisa ser biológica, que a afinidade entre a filha de Sol e Ben permitiu a construção de uma relação de pai e filha, porque laços de sangue são somente parte do que somos, família vai muito além disso. Esta mensagem foi poderosa e muito bonita.
Verdade que tivemos alguns derrapes no final da trama, ao invés de focar na carreira de Sol, por exemplo, com a trama do empresário sendo introduzida antes, a autora criou situações que não tinham grande uso para a novela. O sequestro absurdo arquitetado por Kate; Rafa e Jenifer morando com Theo; Fred tendo uma recaída sem sentido com Bia e se encrencando com a namorada. Aliás, todo o núcleo dos alunos do ICAES, que parecia ser a única faculdade de Direito de elite do Rio de Janeiro (🙄), ficou um tanto abandonado nas últimas semanas. Sem a faculdade, e com Jenifer deslocada tentando descobrir os podres de Theo, o núcleo jovem ficou meio perdido, como pontuei mais lá em cima do texto.
E houve a censura, claro, os casais LGBTQIA+ foram prejudicados no seu desenvolvimento, por decisões vindas de cima. A autora, diferentemente de Walcyr Carrasco, não teve como desenvolver sua história de forma adequada. Beijos foram cortados, cenas de afeto reduzidas, personagens excluídas da trama. O mais prejudicado de todos foi a personagem Yuri (Jean Paulo Campos), que terminou enfiado em um relacionamento hetero com a patricinha Guiga (Mel Maia). E, no último capítulo, Vitinho (Luis Lobianco), amigo de Sol e empresário de Lui, e Antony Verão (Orlando Caldeira) tiveram seu único beijo escondido por um garçom que passou na frente, uma lástima mesmo. Mas eu escrevi um texto sobre isso, ele já está linkado lá em cima.
Concluindo, finalmente e depois de quase seis meses, Vai na Fé foi uma novela muito boa. Nada do que eu pontuei de problemas ofuscou o brilho do elenco e do texto. Rosane Svartman coleciona sucessos e tem construído muito bem suas protagonistas, neste caso, uma mulher madura, negra e evangélica. E a novela não é atípica para o horário das sete. Não era uma comédia rasgada, mas não era um drama pesado, e ainda trouxe a música inserida de várias formas. As músicas de Lui Lorenzo foram um sucesso, por exemplo. É isso. Eu vou parar por aqui. É lamentável que este texto tenha vindo tão tarde, mas deixo abaixo o vídeo que eu gravei, coisa curtinha, quando a trama terminou.
@shoujofan_1976 #vainafé novela da #globo ♬ som original - Valéria Fernandes da Silva
2 pessoas comentaram:
Tivemos a Isabel e o Zé Maria de lado a lado e a Ellen e o Foguinho de cobras e lagartos, casais negros que terminaram juntos. Só pra pontuar.
Sim, mas nem Foguinho, nem Ellen eram protagonistas, mesmo que o Lázaro Ramos tenha conseguido muita atenção por causa de seu papel e ambos eram pobres e núcleo cômico. Isso pesa. No caso de Isabel e Zé Maria, e eu tenho uns quatro ou mais textos sobre Lado à Lado, ninguém nunca se importou de verdade com o romance dos dois. Os dramas de ambos eram outros, o filho, no caso dela, o racismo, no caso de ambos e por aí vai. Houve até tentativas de arrumar outro par para a personagem de Lázaro Ramos. E, claro, ambos começam no núcleo pobre, Zé Maria nunca saiu de lá. O casal de Lado à Lado, o que mobilizou a audiência a ponto de gente vir me encher o saco aqui por eu ter feito uma análise muito dura da Marjorie Estiano, eram Laura e Edgar. De qualquer forma, veja quantos casais com homem negro e mulher negra você conseguiu lembrar e, repito, são casos bem diferentes.
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