terça-feira, 22 de julho de 2025

Comentando Apocalipse nos Trópicos (Brasil/2024), o decepcionante novo documentário de Petra Costa que transforma Malafaia no maior líder evangélico do país

Ontem, assisti ao novo documentário de Petra Costa, Apocalipse nos Trópicos (Apocalypse in the Tropics), disponível na Netflix desde a semana passada, acredito.  Comparado com Democracia em Vertigem, ele é bem inferior.   A proposta do novo trabalho de Petra Costa é apresentar  o "papel do movimento evangélico na ascensão de Jair Bolsonaro à presidência é explorado com comentários de figuras importantes em todo o espectro político brasileiro, incluindo o antecessor e sucessor de esquerda de Bolsonaro, Luiz Inácio Lula da Silva, e o televangelista Silas Malafaia, um associado próximo de Bolsonaro." (*resumo da Wikipedia*)  O filme começa com a eleição de Bolsonaro e segue até a tentativa de golpe em 8 de janeiro.

Vamos lá, logo no início do documentário, depois de assistir um culto dentro do Congresso, conversar com o deputado Cabo Daciolo e receber uma Bíblia com sua recomendação de começar a ler pelo Novo Testamento, Petra Costa admite sua  perplexidade e ignorância (*no sentido de não conhecer mesmo*) em relação ao meio evangélico no Brasil e fora daqui.  Argumentando que sua formação foi laica, de esquerda (*não existe evangélico/protestante de esquerda, vocês sabem*🙄), e adepta de um modelo iluminista e liberal de estado, ela diz que se propôs a estudar.  Estudou pouco, eu diria, não deu voz a nenhum pesquisador do tema em seu filme (*sociólogos, antropólogos, cientistas da religião, historiadores e mesmo teólogos*), focou em somente duas figuras, Billy Graham, que ela chamou em dado momento de "Papa do Protestantismo ou dos Evangélicos", e Silas Malafaia, chamado de "Kingsmaker", ou o "Fazedor de Reis".  🙄

Billy Graham era um pastor batista e evangelista internacional.  Ele participou dos esforços norte-americanos durante a Guerra Fria, inclusive promovendo a maior Cruzada Evangelística de todos os tempos no Brasil.  Todos os velhos que eu conheço, nasci em uma família batista, cresci e congrego em uma igreja batista, falam de quando o Maracanã se encheu para ouvi-lo pregar em 1974.  Consta que havia cerca de 225 mil pessoas no estádio.  Graham atraia muito mais do que batistas, não tenham dúvida, mas jamais ouvi ou li que ele foi apelidado de papa.  Revirei essa internet atrás da informação.  Primeiro, porque o meio protestante/evangélico é muito fragmentado, segundo, porque existe um anticatolicismo arraigado e que, pelo menos até algum tempo atrás, era fortíssimo nos Estados Unidos e foi trazido de lá para o Brasil.  Aqui, para piorar, os evangélicos eram (*ainda são*) uma minoria, tinham que marcar de forma muito evidente a sua diferença em relação aos católicos e uns em relação aos outros.  Os Batistas, aliás, eram especialistas nisso, estabelecer cercas entre a denominação e as demais.  Beirava a antipatia, às vezes.

Falando em Malafaia, ele é o protagonista do documentário, maior que Bolsonaro e Lula, afinal, ele foi apresentado como "Kingsmaker" e, bem, o filme lhe dá uma importância que ele não tem e isso é perigoso.  Malafaia é estridente, é vaidoso, certamente é próximo de Jair Bolsonaro, mas ele não o elegeu sozinho.  O meio evangélico é diverso e mesmo que 70% dos evangélicos tenham votado em Bolsonaro em 2022, conforme afirma o documentário, não fui checar os números, não foi o pastor Malafaia que assegurou todos os votos dos evangélicos, muito provavelmente, nem mesmo 1/3 deles.

Malafaia é líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, um ramo menor das Assembleias de Deus no Brasil, a maior denominação evangélica do país, com aproximadamente 12 milhões de membros.  Só que o ramo mais importante é o do Ministério de Madureira e seus líderes apoiaram Bolsonaro, também.  E eles não precisam estar gritando em falsete no microfone para se fazerem ouvir.  Outra coisa, como você faz um documentário sobre a influência evangélica sem ressaltar a diversidade e falar sobre líderes como Bispo Macedo e RR Soares?  Poderiam até ignorar o apoio aberto da maioria dos batistas, que tem míseros 1,8 milhões de membros, agora, como ignorar a Universal com tudo que Macedo tem nas mãos?

O documentário acerta ao falar da Teologia do Domínio e como os líderes evangélicos adeptos dessa visão de mundo, desejam governar o país.  Só que ao calar sobre o Bispo Macedo ignora o sujeito que primeiro se posicionou publicamente sobre chegar ao poder e lançou livro, em 2000; o nome dele é exatamente Plano de Poder.  A Universal tem TV, rádios e até partido político, o Republicanos.  E como deixar de falar, também, dos pastores perseguidos por se posicionarem contra a Teologia do Domínio e o apoio a Bolsonaro?  Como não dar voz pelo menos ao pastor presbiteriano Antônio Carlos Costa, da ONG Rio de Paz?  Como não citar o pastor Ricardo Gondim, que, em 2015, escreveu o polêmico texto "Deus nos livre de um Brasil Evangélico" e foi demitido de uma das principais revistas evangélicas do país e ostracizado?  Só que o objetivo era colocar os holofotes em Malafaia, transformando-o no líder máximo dos evangélicos brasileiros e, em dado momento, até dos cristãos do país.

E se a história de Kingsmaker é tomada ao pé da letra, vejam só, foi Malafaia quem elegeu Lula em seus dois primeiros mandatos?  Ridículo.  E se ele é o Kingsmaker, como ele não elegeu Serra e Aécio Neves, porque o próprio filme diz que ele os apoiou.  O documentário compra, também, o discurso de Malafaia e seu fantoche Sóstenes, de que os evangélicos brasileiros só passaram a se interessar por política nos últimos 10, no máximo 15 anos.  E o livro do Bispo Macedo?  E as campanhas da Universal contra a eleição do Lula?  Lembro da minha finada Tia Ruth chegando lá em casa e dizendo que Lula iria fechar todas as igrejas, que o pastor tinha dito isso no culto.  Era papo reto. Fora as principais rádios evangélicas do Rio fazendo campanha aberta por FHC e contra Lula, isso lá nos anos 1990.  Mamãe ouvia todos os dias e, se eu estava em casa, ouvia por osmose.  Petra Costa foi estudar, mas não estudou direito, eu diria.  Nem ela, nem quem a ajudou a fazer o roteiro.

Enfim, não é um documentário inútil, ele traz vídeos, imagens, entrevistas muito importantes, documentos dessa época tenebrosa em que vivemos.  Agora, ele é raso ao falar dos evangélicos, ignora sua diversidade, ignora as elites que abraçaram o neopentecostalismo.  Se a maioria dos evangélicos é negra, pobre e mulher, os que têm assento no Congresso, os que foram recebidos por Bolsonaro, que se tornaram ministros (*um genro do Sílvio Santos, inclusive*) não são bem esses.  O documentário é condescendente ainda, porque os evangélicos são apresentados como gente curiosa, um tanto inculta, fácil de manobrar.  E dá-lhe pintar Malafaia como o gigante que ele não é. Ele é perigoso, mas há gente tão ou mais perigosa que ele que nem foi citada. E sorte nossa que o ego desses empresários da fé seja enorme e isso os impeça de se unirem de verdade, ou já seríamos o Evangelistão.  Decepcionante esse Apocalipse nos Trópicos.


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